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A Entrevista Compreensiva e Aspectos Metodológicos

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 169-176)

4. AQUISIÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA PELOS SURDOS

6.1 A Entrevista Compreensiva e Aspectos Metodológicos

Para a construção, condução e análise das entrevistas, apoiei-me nas ideias apresentadas por Jean-Claude Kaufmann acerca da prática que ele denomina: Entrevista Compreensiva. Este tipo de entrevista é apresentado pelo autor de forma sistematizada em um pequeno livro publicado pela primeira vez em 2011 e intitulado L’Enquête et ses Méthodes: L’Entretien Compréhensif, tendo sido consultada a 3ª edição, de 2014. Além disso, exemplos de seu emprego foram recuperados nos livros do mesmo autor: La Trame conjugale, analyse du couple par son linge e Corps de femmes, regards d’hommes, sociologie des seins nus, de 1992 e 1995, respectivamente.

Como nos adverte o autor, ainda nas primeiras páginas do livro L’Entretien Compréhensif, a proposta desse tipo de abordagem resulta do esforço de sistematização da sua forma de fazer pesquisa, que, reconhece ele, é por vezes contrária a certas recomendações clássicas encontradas nos livros de metodologia. Por outro lado, em alguns aspectos, a Entrevista Compreensiva apresenta muitas semelhanças com outras práticas, em especial da etnografia, e da entrevista semidiretiva, porém mantendo sua especificidade. Portanto sua originalidade não se deve a uma inovação metodológica, propriamente dita, mas à tentativa de diminuir a distância entre a prática e o que é apresentado nos manuais de metodologia de pesquisa.

Segundo o autor, esta distância gera o procedimento não saudável, mas corriqueiro, de descrever nos relatórios, dissertações e teses um percurso que se encaixe na teoria e que seja consistentemente fundamentado nesta, mas que não representa o que foi realmente realizado na pesquisa. De fato, Kaufmann (2014) denuncia o costume de expor o método expurgado de suas dificuldades, improvisos, imprevistos, idas e voltas. No terreno da Entrevista Compreensiva, o autor legitima esse fazer complexo e considera essa itinerância como parte necessária à sua construção e não como um erro. Para ele, a prática da entrevista reside sobre “um saber-fazer artesanal, uma discreta arte de bricolagem” (p.09)41

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Talvez por isso seja tão difícil alcançar uma formalização metodológica da entrevista enquanto técnica de coleta de dados, ao mesmo tempo tão próxima da situação corriqueira de conversa e tão distinta desta. Como descrever a justa medida entre deixar o entrevistado à vontade e manter o foco no objetivo da pesquisa? Qual é o ponto exato em que o diálogo transcorre com naturalidade e confiança, mas os diferentes papéis de entrevistador e entrevistado permanecem preservados?

Com a Entrevista Compreensiva, Kaufmann (2014) não nos oferece respostas, mas a possibilidade de pensar sobre essas e outras questões de maneira franca. Na verdade, parece- me que, quanto mais nos deparamos com respostas prontas, mais a condição de perguntar fica obliterada e menos nos aprimoramos na prática da entrevista. Uma vez que as dificuldades não são legitimadas, tendem a ser vividas pelo pesquisador como signos de sua incompetência, que deve ser mascarada, escondida.

A meu ver, este é o primeiro sentido do termo “compreensiva” que se destaca do texto de Kaufmann: a compreensão que ele demonstra em relação à situação do pesquisador, em especial do iniciante, diante das dificuldades em que a prática da entrevista nos coloca. O autor trata dos diferentes impasses vividos ao longo de uma pesquisa e nos conta como lida com cada um deles, sem, contudo, apresentar suas soluções como universais. Ao contrário, os inúmeros relatos retirados de sua prática, mais do que casos exemplares, são escolhidos de modo a ressaltar o quanto as decisões estão inexoravelmente ligadas a cada contexto.

Embora se organize em torno da entrevista, é importante ressaltar que o método exposto por Kaufmann (2014) faz sentido apenas quando tomado no contexto amplo da pesquisa. Ela se delineia desde os momentos iniciais da escolha do tema e influencia até os momentos finais

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da redação do relatório. Além disso, inscreve-se em uma maneira particular de compreender a relação entre pesquisador e participante e seus respectivos papéis e em uma conceituação específica do que seja ciência. É isso que garante sua coerência interna e seu rigor, ao mesmo tempo em que mantém a leveza da técnica.

O autor destaca três influências fundamentais: Max Weber, de cuja teoria o próprio termo “compreensiva” foi retirado; Norbert Elias, por sua exigência quanto à estreita relação entre hipóteses e fatos, e; Anselm Strauss, pela importância que atribui ao campo na construção da teoria. Quanto à posição do pesquisador, Kaufmann se alinha à ideia de Wright Mills, do “artesão intelectual” que constrói uma teoria e personaliza o método no contexto concreto de cada projeto de pesquisa.

Ora, à figura do artesão se opõe aquela da produção em série. Kaufmann (2014, p. 15-16) chama atenção para o paradoxo que se estabelece entre a “industrialização da produção de dados e a especialização crescente”, que resultam na compartimentalização e assepsia dos resultados, e os temas que despertam atualmente o interesse para a pesquisa, centrados na “análise de articulações e processos”. Portanto o autor defende que o debate metodológico é antes um debate teórico e afirma sua posição de que a sociologia dos processos deve “permanecer estritamente ligada à invenção teórica” (p.16).

É nesse contexto que Kaufmann (2014) destaca a demanda atual para que o cientista social – aqui ele trata especificamente do sociólogo – torne-se um expert. Essa posição responde aos critérios da produção industrial, apoia-se no método pelo método, visa à produção de dados em quantidade e afasta-se da interpretação. Nesta posição, o método se torna o instrumento de objetivação. Pois bem, a proposta em torno da qual se constrói a Entrevista Compreensiva situa-se na contramão dessa postura.

Apesar desse debate, a entrevista tem seu uso bastante consolidado nas ciências humanas e sociais. Isso se vincula a dois aspectos essenciais: a importância crescente que foi atribuída à fala e ao saber do informante na pesquisa e sua flexibilidade e possibilidade de adaptação a diferentes métodos, de modo que, como afirma Kaufmann (2014), ela nunca deve ser empregada da mesma maneira em pesquisas diferentes. Talvez por seu uso comum e por ser considerada uma técnica fácil, Kaufmann (2014) afirma que a entrevista é tida como um método suspeito, ou seja, seu uso expõe o pesquisador a uma série de questionamentos, que abarcam desde os critérios para seleção dos entrevistados, até a validade das interpretações empreendidas. Porém a facilidade da realização de entrevistas é apenas aparente, ou, como destaca o autor, fazer uma entrevista pode ser simples, o difícil é se aprimorar nessa técnica.

Quando adotada em uma pesquisa, a entrevista pode assumir diferentes funções, ora como instrumento complementar, ora como principal. Segundo Kaufmann (2014), quando a entrevista é o instrumento principal, ela se presta normalmente a dois objetivos: a compreensão ou a mensuração. Entre esses dois termos se revela uma “misteriosa maldição” (p. 17), que assombra a entrevista e a pesquisa qualitativa de modo geral: quanto mais ela se volta para o formalismo metodológico, mais empobrecidos são os dados que se produzem. Para escapar a essa armadilha, é preciso redefinir os conceitos de objetividade, de rigor e de validade, no contexto da abordagem qualitativa.

Segundo Kaufmann (2014), notadamente na Sociologia, dois caminhos diferentes em direção à objetivação são empregados e defendidos. O primeiro, que expressa uma adesão ao modelo das ciências duras para a construção da cientificidade, apoia-se sobre o rigor formal, tendo na modelização matemática sua forma mais bem acabada. O segundo, por sua vez, entende que a objetividade se atinge pelo rigor teórico, que se caracteriza pelo trabalho de construção das hipóteses, dos conceitos e das teorias de forma articulada, partindo do campo e a ele retornando. Segundo o autor, o rigor formal enquanto parâmetro de cientificidade em si mesmo resulta na produção de dados superficiais, enquanto a busca pelo rigor teórico pode nos levar a níveis mais profundos de compreensão dos fenômenos.

A Entrevista Compreensiva é construída, portanto, por adesão a este segundo modelo, afastando-se dos ideais de uniformização e impessoalidade. A tentativa de uniformização do procedimento, para que as variações entre as entrevistas sejam mínimas, desconsidera, de uma só vez, as especificidades do contexto em que cada entrevista se produz, as diferenças individuais entre os diversos entrevistadores, quando este é o caso, e, o que é ainda mais grave, não deixa margem pra transformar o procedimento e as perguntas a partir do que é apresentado pelo entrevistado. O rigor não pode ser igualado à uniformização. Para Kaufmann (1992, p. 19), o que a uniformização “ganha em extensão, perde em relevo”.

A questão da validade no âmbito da pesquisa qualitativa, embora legítima, é, para Kaufmann (2014), além de inflada, mal colocada. Para o autor, nesse caso, a validade é alcançada pela inversão na lógica da construção do objeto que se opera nas pesquisas qualitativas indutivas. Ao contrário das pesquisas dedutivas, em que se parte da teoria para os dados, na pesquisa indutiva o próprio campo oferece limitações iniciais e as hipóteses são elaboradas a partir da observação. O teste de validade, portanto, não é uma etapa posterior, mas ocorre ao longo da pesquisa, como resultado das operações simultâneas de formulação e falsificação das hipóteses em diálogo contínuo com o campo.

Neste contexto da pesquisa qualitativa e, de modo ainda mais gritante, no caso da entrevista, de nada nos serve apoiar a objetividade sobre a adoção de uma conduta impessoal por parte do entrevistador. Por impessoal entenda-se a tentativa de

anular toda e qualquer influência que o entrevistador possa exercer sobre o entrevistado, por seus gestos, expressões, sentimentos, opiniões etc. Para Kaufmann (2014), ao invés de apagar a influência sobre o entrevistado, uma postura impessoal, desengajada, do entrevistador tem como efeito a adoção, agora por parte do entrevistado, de uma postura também impessoal e desengajada. Como resultado, sob o ponto de vista da Entrevista Compreensiva, são produzidos dados pouco úteis para a compreensão do objeto de estudo e que permitem apenas uma interpretação limitada por parte do pesquisador (KAUFMANN, 2014). Logo anular a influência sobre o entrevistado não só é impossível como contraproducente.

6.1.1 Participantes

Foram entrevistados seis psicólogos, com atuação no contexto escolar, tanto em educação especial, quanto no suporte à inclusão em escolas regulares; no contexto hospitalar; e no clínico. Dois entrevistados atuam no Brasil e os outros quatro, na França. A possibilidade de contato com os profissionais franceses se deu por ocasião do estágio sanduíche realizado na Universidade de Lorraine42. Este país foi escolhido por conta de sua relevância histórica para a educação de surdos no ocidente, em geral, e no Brasil, em particular.

Quanto a isso podemos citar a importância do educador surdo francês Eduardo Huet, que, em 1855, sustentado em sua experiência como professor do Instituto dos Surdos-Mudos da cidade de Bourges, na França apresentou ao imperador Dom Pedro II o projeto de criação de um colégio que atendesse aos surdos brasileiros. O então Collegio Nacional para Surdos-Mudos encontra-se ainda hoje em funcionamento, desde 1957 com o nome de Instituto Nacional de Educação de Surdos, o INES (ROCHA, 2014; SOFIATO; REILY, 2012). Sofiato e Reily (2012) destacam também a importância do primeiro dicionário de LIBRAS, produzido em 1875, por Flausino da Gama, aluno do instituto de surdos. Este dicionário foi chamado de Iconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos. As autoras analisam a forte semelhança que a obra de Flausino guarda com o trabalho do surdo francês Pierre Pélissier, de 1856, salientando

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Estágio realizado entre outubro de 2014 e setembro de 2015, sob co-orientação do Professor Saeed Paivandi, do Laboratoire Interuniversitaire des Sciences de l’Education et de la Communication, LISEC, e com financiamento da Capes.

a impotância da língua francesa de sinais nos primeiros esforços de legitimação da língua brasileira de sinais.

Algumas das mais importantes instituições de atenção ao surdo, em porte e em relevância histórica, foram contatas e duas delas se dispuseram a me receber, franquendo acesso aos psicólogos de suas equipes. Além disso, foi entrevistado Benoit Virole, cujos livros influenciaram a própria proposição dessa pesquisa; e Alix Bernard, cujo trabalho conheci durante o estágio e que guarda grande aproximação ao tema dessa pesquisa; ambos com mais de trinta anos de experiência no cuidado de surdos e suas famílias.

Foram entrevistados também dois profissionais brasileiros que atuam em instituições de atendimento educacional especializado e suporte ao desenvolvimento da linguagem, sendo uma com enfoque oralista e outra com enfoque no uso de língua de sinais, situadas na cidade de Salvador e de Brasília. Por ser familiarizada ao cenário baiano, o privilégio a uma instituição de outra região visou favorecer a construção de um contra-ponto dentro da realidade nacional. As instituições não serão descritas de forma sistemática para garantir o anonimato dos entrevistados que expressaram o desejo de permanecer anônimos. A Tabela 3, abaixo, traz uma breve descrição dos profissionais entrevistados.

Tabela 3 Dados sobre os participantes

PAÍS IDENTIFICAÇÃO CONTEXTO EM QUE ATUA

França Benoit Virole Consultório particular; hospital; experiência em instituições de educação Alix Bernard Consultório particular;

experiência em instituições de educação Nicole Farges Consultório particular;

instituição de educação

A. M. Instituição de educação

Brasil R. G. Instituição de educação

N. P. Instituição de educação

6.1.2 A entrevista

Algumas dificuldades que enfrentamos na realização de entrevistas foram discutidas acima. Porém um desafio a mais se colocou em nossa pesquisa: o fato de algumas delas não terem sido realizadas no meu idioma materno, mas em francês. Para uma técnica sustentada essencialmente na troca verbal entre entrevistador e entrevistado, isso tem um peso importante. No momento da realização das entrevistas, ao menos da primeira delas, eu me

sentia confortável em relação à compreensão do francês, mas não tanto em relação à expressão, especialmente em uma situação formal e frente a pessoas desconhecidas.

Como tentativa de superar, ao menos em parte, esta dificuldade, muni-me de um roteiro bem estruturado (APÊNDICE C), composto por nove questões principais, porém acrescido de algumas questões de aprofundamento. Para a elaboração do roteiro contei com a ajuda de três colegas, estudantes do master de Ciências da Educação, da Universidade de Lorraine, que melhoraram a elaboração das questões e fizeram sugestões importantes. As questões de aprofundamento pré-estabelecidas não expressavam a ilusão de prever os desdobramentos possíveis da conversa, mas tinham como objetivo me deixar mais segura para manter seu fluxo.

Contra mim pesava o fato de a Entrevista Compreensiva prezar pela fluidez da conversa e pela tentativa de conduzir a entrevista a partir de cada resposta e reação do entrevistado. Seria essa a escolha mais adequada nessa situação? A meu favor, contava com a hipótese de que os entrevistados seriam mais sensíveis a essa questão, dada a característica do seu trabalho e o fato de lidarem cotidianamente com diferenças linguísticas significativas. Apostei nisso e, felizmente, minha expectativa se confirmou.

Embora o roteiro inicial tenha servido como base para as entrevistas subsequentes (APÊNDICE C), ele foi adaptado a cada situação, incluindo questões referentes ao contexto específico de trabalho de cada participante. Em dois casos, foram incluídas perguntas suscitadas pela leitura de artigos e livros escritos pelos entrevistados. Nas duas instituições francesas, foi realizada entrevista com outros profissionais, que apresentaram o funcionamento e história dos institutos, para as quais elaborei roteiro específico. No caso dos estabelecimentos brasileiros, esse conhecimento prévio das instituições havia sido adquirido por meio de visitas realizadas em ocasiões anteriores, de modo que as questões giraram sobretudo em torno do trabalho da profissional (APÊNDICE D).

Cinco entrevistas foram gravadas em áudio. Uma participante preferiu não ser gravada. Nesse caso, as anotações sobre as respostas foram enviadas para a entrevistada, para que ela pudesse apontar mal entendidos e acrescentar aquilo que julgasse necessário. As entrevistas tiveram

duração de pouco mais de uma hora cada. Um vasto material foi produzido a partir das entrevistas e visitas realizadas, superando expressivamente os objetivos dessa pesquisa43.

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