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Desenvolvimento Sociocognitivo

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 122-126)

4. AQUISIÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA PELOS SURDOS

4.4 Desenvolvimento Sociocognitivo

Para pensarmos a aquisição da leitura e escrita é importante retomar o conceito de letramento emergente (emergent literacy), que diz respeito aos comportamentos relacionados à leitura e escrita, porém, que acontecem antes do letramento dito convencional, normalmente entre o início da vida e os cinco ou seis anos. Segundo Williams (2004), este conceito marca uma mudança na teorização, pesquisa e educação acerca da aquisição da leitura e escrita, vindo substituir a ideia de prontidão para a leitura (reading readiness). Essa última se sustenta na noção de pré-requisitos para a aprendizagem da leitura, tais como comunicação oral, discriminação visual e auditiva e reconhecimento das letras, além de pensar a leitura como

pré-requisito para a escrita. Já as pesquisas que adotam o paradigma do letramento emergente demonstram que a linguagem, a leitura e a escrita se desenvolvem de forma concomitante, além de contribuírem para o desenvolvimento umas das outras (WILLIAMS, 2004; PHILIPS; LONIGAN, 2013).

É importante também tratarmos da função constitutiva da linguagem. É por meio da linguagem que nos relacionamos com os objetos de conhecimento, inclusive quando nós mesmos somos esse objeto. É por meio de uma linguagem compartilhada que conhecemos o mundo e buscamos dar sentido àquilo que experienciamos. A linguagem, portanto, constitui o mundo e seus sujeitos e é constituída por eles, explicitando essa relação de simultaneidade expressa no conceito de letramento emergente.

Na base da aquisição e domínio da leitura e escrita está a possibilidade de simbolização, e de sua outra face, a interpretação. A língua escrita, tal como qualquer língua compartilhada, exige a entrada em um sistema normativo. Se a regra constrange e limita, é apenas por sua introjeção que podemos subvertê-la, criar novos sentidos e novos modos de expressão. O simbólico presentifica o que está ausente, prescinde da coisa em si, instaura a polissemia. O simbólico precede a leitura e a escrita, mas é também enriquecido por essa aquisição, que vem ampliar a possibilidade significante (CARVALHO; RAFAELI, 2003).

Ao tratar dos efeitos da apropriação da língua e da escrita sobre a subjetivação, Carvalho e Rafaeli (2003) entendem que, assim como a língua de sinais, a escrita pode vir a ser, para o surdo, uma possibilidade de se dizer, porém, na condição de que a materialidade da letra se torne fundo para dar lugar ao simbólico da escrita. A noção de desenvolvimento sociocognitivo aqui adotada tenta dar conta justamente dessa dimensão ontológica – vamos nos tornando quem somos na medida em que estamos inseridos em um meio social e que vamos construindo conhecimento sobre este meio. Os estudos realizados com crianças surdas, filhas de pais surdos usuários de línguas de sinais, são uma forma interessante de abordar a centralidade do desenvolvimento sociocognitivo para a aquisição da lectoescrita.

De modo geral, essas crianças apresentam melhor leitura e níveis acadêmicos mais elevados, quando comparadas às crianças filhas de pais ouvintes, não fluentes em línguas de sinais. Para Leybaert (2013, p. 409), nas vantagens apresentadas por crianças surdas inseridas nas línguas de sinais de forma precoce, o que está em jogo é um “maior conhecimento de mundo e um conhecimento linguístico mais avançado em termos de vocabulário ou morfossintaxe”. Para esse grupo, que, no entanto, corresponde a apenas cerca de 5% a 10% das crianças nascidas surdas, podemos supor que a relação com os pais se estruture de forma mais natural, uma vez

que esses terão melhor habilidade comunicativa e estarão mais aptos a adaptar suas expectativas em relação aos seus filhos, favorecendo o desenvolvimento sociocognitivo. Philips e Lonigan (2013) reportam que pesquisas corroboram a influência que as crenças e expectativas dos pais quanto ao seu comportamento e ao de seus filhos com relação à escola exercem sobre o desempenho das crianças. A valorização do letramento pelos pais pode se refletir na quantidade e qualidade das situações de leitura e escrita domésticas a que estão expostas as crianças, favorecendo seu aprendizado escolar. Mas não é só isso, o interesse na leitura sofre influência também da dimensão afetiva envolvida nas atividades de leitura. Além disso, fatores econômicos podem afetar a disponibilidade de recursos materiais e simbólicos, para a promoção do que os autores chamam de ‘letramento como entretenimento’. Outros fatores que se relacionam ao desempenho escolar são a etnicidade, o nível de aculturação, a formação educacional dos pais, o estilo de criação, a ênfase na conformidade ou no esforço e motivação, a história perinatal da criança etc, mostrando que múltiplas situações de risco interagem de forma dinâmica.

Os autores relatam, ainda, a importância de avaliar a distância de um determinado grupo em relação à cultura dominante. Embora eles se refiram aqui a grupos étnicos e imigrantes, podemos traçar um paralelo com a criança surda de quem se espera um esforço de adaptação à cultura ouvinte vigente. De que maneira essa distância interfere na exposição da criança a fatores favorecedores do letramento emergente? Como a criança surda é apresentada ao mundo letrado e ouvinte?

Segundo Williams (2004), crianças com comprometimento auditivo importante e atraso significativo da linguagem apresentam comportamentos de letramento emergente e se engajam, de forma consistente e interessada, em atividades de leitura e escrita. De fato, segundo a autora, as crianças surdas preferem as atividades de leitura, escrita e desenho em comparação com todas as outras e recorrem muito cedo à linguagem gráfica (desenho e escrita) como forma de comunicação. Essas atividades são experimentadas como atividades sociais, ou seja, compartilhadas com e incentivadas por outras crianças.

Williams (2004) e Courtin (2005) afirmam que o contato precoce e consistente com uma rotina familiar e escolar de leitura é um fator chave para o letramento, uma vez que estimula o desenvolvimento de conhecimentos e comportamentos próprios da leitura e escrita. Portanto é fundamental pensarmos sobre a produção e distribuição de livros infantis adaptados às crianças surdas, que contenham a representação gráfica dos sinais que descrevem a imagem apresentada e narram a história, servindo ambas de ponte para a compreensão da função de

representação da letra escrita e suas regras (WILLIAMS, 2004). A escrita do sinal faz a mediação entre a imagem e a palavra escrita, tal como a fala o faz para crianças ouvintes. Estudos mostram que, quando favorecemos o letramento emergente, com atividades de leitura compartilhada, também a linguagem, como um todo, é favorecida (WILLIAMS, 2004). Para Philips e Lonigan (2013), embora a magnitude do efeito esteja em debate, há abundante evidência científica de que a leitura compartilhada tem influência significativa sobre o letramento e sobre a habilidade oral das crianças, particularmente pelo favorecimento de comportamentos afetivos entre adulto e criança. Ainda assim, é preciso salientar que um ambiente letrado não se define apenas pela ocorrência de leitura compartilhada, mas pela conjunção de diversos fatores que, isoladamente, não têm valor preditivo. Os autores reforçam que é perigoso pensar que todas as crianças precisam dos mesmos tipos de estímulos ambientais – as diferenças de habilidades e experiências devem ser consideradas.

É importante resaltar que há particularidades na forma como se conduz a leitura de livros para crianças surdas. Por exemplo, a criança ouvinte pode olhar o livro e ouvir a leitura simultaneamente, e o leitor pode mostrar elementos ao mesmo tempo em que interage oralmente com ela. Já no caso da criança surda, é preciso segurar o livro, mostrar elementos, sinalizar a história, quando se tratar de uma criança usuária de língua de sinais, ou garantir que a criança faça a leitura labial, quando esta for sua via de comunicação; ou seja, a criança precisa focar o olhar em diferentes estímulos, que não poderão ser emitidos simultaneamente. Para que a atividade seja significativa, é preciso buscar a maior fluidez possível na conjugação dos estímulos. Alguns pais e professores poderão precisar de orientação específica, de modo a enriquecer a experiência da criança com artefatos textuais. Um suporte interessante é observar como os pais surdos envolvem seus filhos, também surdos, em atividades de leitura.

Para Guarinello (2005), as dificuldades dos surdos com a lectoescritura persistem, uma vez que persiste o não “acesso a práticas discursivas significativas que propiciem o desenvolvimento da linguagem escrita” (p. 246). A autora nos mostra a importância de, nos posicionarmos como interlocutores qualificados frente ao sujeito surdo, assumindo que ele tem algo a dizer, tem uma razão para dizê-lo e tem alguém genuinamente interessado naquilo que tem a dizer. O processo dialógico que aí se estabelece será motivador para a construção da coerência e coesão, uma vez que, como bem pontua a autora, essas não são características imanentes ao texto, mas que ganham forma apenas na relação.

De fato, a compreensão e apropriação da leitura e escrita passa pela compreensão e interiorização do próprio processo dialógico da comunicação humana, em que operam, segundo Benoit (2005), dimensões afetivas, sociais e cognitivas. Ao lado da compreensão da função original da escrita como codificação da língua oral e da construção de uma linguagem interior rica, o autor ressalta a importância do desenvolvimento de outras competências, como o saber sobre o mundo, conhecimentos sociais, familiaridade com o universo da leitura e escrita e com diferentes estruturas textuais.

Para Pereira (2015), experiências ricas e prazerosas com a língua escrita são pouco comuns para as crianças surdas no seu contato com adultos ouvintes. Também Vanbrugghe (2005) afirma que a relação social de surdos com ouvintes muitas vezes fica no nível superficial. Barros (2015), por sua vez, chama atenção para o acesso limitado que os surdos têm aos contextos sociais em que circulam e para o quanto isso interfere na sua habilidade de interpretação.

As dificuldades de interação acabam interferindo na qualidade e quantidade de suas experiências de linguagem. Niederberger (2007) lembra que os surdos ficam significamente privados de experiências promotoras de aprendizagem incidental, de modo que as informações que possuem sobre o mundo são, sobretudo, aquelas que lhes são direta e explicitamente dirigidas. Certamente que isso tem efeitos sobre o arcabouço com o qual se apropriam e dão sentido ao texto escrito.

Vanbrugghe (2005) adverte que a ideia de que a inserção no meio regular seria suficiente para garantir o banho de linguagem necessário ao desenvolvimento é uma compreensão bastante simplista da experiência da surdez, posto que desconsidera a importância do grupo linguístico. Para muitos surdos, a comunicação com ouvintes gera um desconforto tal que ela pode se limitar ao nível superficial. Por tudo isso, e pensando na supremacia da interação para o desenvolvimento sociocognitivo, a importância do contato das crianças com outros surdos, inclusive com adultos surdos, é bastante enfatizada na literatura (OLIVEIRA, 2009; PERLIN, 2010; SACKS, 1996); permitindo, como afirma Vanbrugghe (2005, p. 88), “a emergência de uma língua de aprendizagem”, que sobrevém do pertencimento a um grupo.

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 122-126)