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Efeitos sobre a Entrada do Bebê Surdo na Linguagem

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 60-65)

2. EFEITOS SUBJETIVOS DO NASCIMENTO DE UMA CRIANÇA SURDA EM UMA

2.3 Efeitos sobre a Entrada do Bebê Surdo na Linguagem

Solé (2004), retomando Freud e Lacan, aponta o caráter privilegiado da voz, e de sua escuta, como instrumento de estruturação, ainda que estes salientem a existência de outras vias de acesso à linguagem. A mesma autora, agora retomando Saussure, afirma que “o inato ao homem é sua capacidade de constituir uma língua, um sistema de signos distintos correspondentes a idéias distintas” (SOLÉ, 2004, p.268), mas não necessariamente orais. Por que, então, a primazia da comunicação oral?

Como vimos, o bebê humano reconhece a voz materna antes de poder identificá-la, à mãe, visualmente. A voz, e outros ruídos internos e externos, têm um papel integrador dos outros sentidos. Ao coincidirem temporalmente com a experiência prazerosa, os sons estabelecem uma sincronia entre os sentidos e têm, portanto, efeito organizador. Aqui, o fato de o ouvido permitir esse contato com o mundo externo o tempo todo dá à audição um papel privilegiado. Uma hipótese, então, é a de que o ouvido, por não poder se fechar, estaria mais exposto a estímulos do que o olhar e os outros sentidos.

Além dessa impossibilidade de evitar o estímulo sonoro, especialmente no bebê, Azevedo e Jofilly (2009) chamam atenção para o fato de a audição, muito precocemente, poder ser autoalimentada pela atividade fonatória da própria criança. A retroalimentação permite que a criança vá estabelecendo uma relação prazerosa com a escuta: depois de ouvir o outro, o prazer de se ouvir caracteriza o segundo tempo da pulsão e precede a possibilidade de fazer-se ouvir.

Para o bebê surdo, no entanto, a voz e os ruídos não assumem este lugar privilegiado, não se constituindo como instrumentos de inserção deste bebê na linguagem. No bebê ouvinte, o ouvido vai se constituindo como zona erógena ao ser marcado pelo prazer de ouvir a voz materna e pelo desprazer de deixar de ouvi-la. No surdo isso não se dá. Segundo Solé (2004, p. 273), “não havendo encontro entre a zona-ouvido e o objeto som da voz materna não se formará uma imagem pictográfica desse encontro”. Lembro de uma paciente adolescente, surda congênita. Suas orelhas não faziam parte de seu esquema corporal, para ela, era como se não existissem. Depois de algum tempo de trabalho, ao longo do qual ela pôde ressignificar seu lugar na linguagem, isso mudou. Um sinal significativo dessa mudança foi seu desejo de passar a usar brincos, o que não fazia antes.

A não experiência do ouvir como um prazer vai incidir sobre o desejo de entender o que é dito, e, consequentemente, sobre o desejo de falar. Isso significa que não será pelo som da voz que o bebê surdo será capturado para ser lançado a se apropriar da linguagem. Porém Alcântara (2016) chama atenção para a necessidade de diferenciarmos som e voz. Mesmo na ausência do som, a voz materna faz função.

Antes mesmo do bebê poder ouvir e falar, já está inserido na linguagem, uma vez que é pela linguagem que se estrutura o inconsciente materno. Como afirma Jerusalinsky (2001), um sujeito nasce quando passa a ocupar um lugar na fala da mãe. Logo, não é apenas o estímulo sonoro produzido pela voz da mãe, mas o que sua fala significa, a marca que faz no corpo do bebê, que vai deflagrar a entrada do bebê na linguagem. O que se diz não tem efeito pelo significado da palavra, ainda inacessível ao bebê. O próprio manhês demonstra que não é o conteúdo da fala da mãe dirigida ao bebê, mas sim a forma como ela fala que vai convocar o bebê à relação. São as emoções, desejos, medos, fantasias, insatisfações transmitidas pela voz que engancham o corpo do bebê ao simbólico.

Ao analisar o manhês produzido por mães que, diante de um filho surdo, optam por usar língua de sinais, Alcântara (2016, p. 180) afirma que: “é lícito supor que no manhês a musicalidade da fala materna será identificada pelo bebê surdo à gestualidade, que o capturará

no sistema simbólico posto em movimento pela língua de sinais – ‘movimento’ nos sentidos metafórico e literal”. O autor nos lembra que as crianças, surdas ou ouvintes, balbuciam com gesticulação e com vocalização. Se um ou se outro predominará como ponto de partida para o desenvolvimento da linguagem, vai depender da modalidade linguística privilegiada pelo meio.

Portanto, embora a importância, aparentemente original, da voz da mãe não possa ser negada, é preciso também reconhecer os outros elementos do discurso materno – instrumento usado no processo de estruturação subjetiva. O discurso materno se constitui da voz, do olhar, do toque e dos cuidados, do estilo materno ao cuidar do bebê. Portanto ascender à linguagem não depende de ouvir a voz materna. Para a criança surda, outros sentidos, em especial o olhar, serão sua via de entrada na ordem simbólica.

Solé (2005, p. 275) afirma que a voz não é imprescindível, por outro lado, o desejo da mãe em relação ao filho e sua inserção na ordem simbólica é que serão decisivos para o estabelecimento da união entre mãe e bebê. É o afeto e não o som da fala que oferece acolhida ao desamparo e necessidades do filho. Se aceitamos essa ideia, vemos que é a lesão fantasmática e não a surdez que podem impedir a alienação do bebê à mãe. Segundo Bergés (1988a), a lesão fantasmática diz respeito ao modo como a deficiência é tomada pelo outro. Neste caso, ao modo como o nascimento de um filho surdo vai se inscrever na realidade fantasmática familiar e social.

Vimos que outras vias de acesso à linguagem podem se tornar pontes entre o bebê surdo e sua estruturação. Porém é fundamental pontuar que esta alternativa pode ficar fragilizada pela ausência de um diagnóstico precoce. Antes do diagnóstico, não há uma ação consciente da família em substituir o estímulo auditivo organizador por outro. E, mesmo depois disso, a orientação específica não é corrente e não há um suporte adequado às angústias da família. Diferentemente dos efeitos do real da lesão, que oferecem algum tipo de previsão, os efeitos da lesão fantasmática não podem ser apontados a priori. Desse modo, o trabalho psicológico ofertado às famílias não pode ser de caráter meramente informativo ou de orientação, os quais, por sua lógica racional e normatizadora, podem mesmo ter efeitos iatrogênicos no processo de construção de laço. Como bem afirma Solé (2004, p. 267):

Essas especificidades estarão diretamente vinculadas à história pessoal de cada sujeito; vinculadas às suas vivências, à sua relação com essa falta de escuta, à relação com seus pais e destes com a surdez, e à história desses pais e de sua inclusão na ordem simbólica. Não podemos, portanto, antever, pressupor ou fazer generalizações sobre as especificidades que a surdez pode acarretar, mas devemos pensar sobre elas.

Dentre os efeitos que pode ter o diagnóstico, Rafaeli (2004) recorre à ideia de estrangeiro como metáfora para pensar sobre o sentimento de pais ouvintes diante da surdez de seu filho – metáfora que se ancora no conceito freudiano de estranho familiar, o Unheimlich. Para ela, o desconhecimento da família sobre as possibilidades linguísticas do bebê provoca uma suspensão de sua entrada na linguagem e, portanto, de sua subjetivação. Os pais se angustiam diante da suposta impossibilidade de compartilhar um código comum com seu filho, e de garantir-lhe, pela oralidade, o acesso à linguagem, vendo-se numa posição de estrangeiros. Freud (1919, pg.301) diz do estranho que ele “não é nada novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através do processo da repressão”, e amplia assim o desconforto da relação com o estranho para além de uma incerteza intelectual. Para Lajonquière (2010), contudo, toda criança trará algo de estrangeiro ao mundo, em relação àqueles que já o habitavam. O estrangeiro, segundo ele, pode ser recebido com maior ou menor curiosidade e simpatia, como aquele que tem algo a nos contar sobre um outro mundo.

À figura do estrangeiro, o autor junta duas outras por vezes atribuídas ao infantil: o extraterrestre e o selvagem. O selvagem, se for bom, se tornará objeto da curiosidade científica, se for mau, será objeto de extermínio. Quanto ao extraterrestre, o queremos a uma distância tal que possamos continuar a adorá-lo, mas que nos permita fugir, caso se aproxime de fato. No estrangeiro, para que topemos o desafio de encontrar uma língua comum com a qual possamos nos conhecer melhor, teremos que reconhecer algo de familiar. Lajonquière (2010) nos dá uma pista ao lembrar que um filho nos confrontará sempre com um retorno inesperado da nossa própria condição infantil e com o fato de não termos sido, nós mesmos, a criança dos sonhos de nossos pais.

Portanto o estrangeiro também pode ser tomado como um enigma, como o portador de saberes e vivências que fascinam justamente por seu desconhecimento/familiaridade. A transformação do choque, da suspensão, em enigma pode pôr em funcionamento as engrenagens para o estabelecimento de uma outra forma de relação comunicativa. Como afirma Rafaeli (2004, p. 288): “A partir dessa nova conjuntura que se articula, outras formas de comunicação devem ter investimento, para que se abram as vias de acesso para uma inclusão de fato efetiva, que transcenda as meras possibilidades de comunicação”.

Sobre as diferenças linguísticas entre pais e filhos, Alcântara (2016) questiona, ainda, a suposta naturalidade ou espontaneidade com que o ouvinte aprenderia a língua oral e o surdo a língua de sinais. Para o autor, nenhuma língua é adquirida, mas imposta, na medida em que

chega pela intervenção do Outro, obriga o bebê à submissão a uma ordem e o aprisiona “em seu funcionamento simbólico e em sua estrutura linguístico-discursiva” (p. 177).

Transcender as meras possibilidades comunicativas, portanto significa pensar e atuar na linguagem para além da simples comunicação, reconhecendo seu efeito organizador e seu papel de instauração da lei, do discurso social. Mais do que o uso dos gestos como possibilidade de comunicação, é preciso que se estabeleça uma nova zona pulsional, a gestual, em acréscimo às zonas oral, auditiva e visual, ainda que isto não implique, necessariamente, uma opção pelo uso da língua de sinais. Para Rafaeli (2004), o reconhecimento dos pais quanto ao estatuto de linguagem dos gestos é o que pode garantir a entrada do bebê no discurso.

Como agravante à ausência do som da voz, temos que, muitas vezes, ao abdicar da comunicação oral, os pais abdicam de toda forma de comunicação. Por não ouvir, a criança acaba também privada de todos os outros elementos comunicativos que acompanham a fala: sorrisos, olhares, expressões faciais, gestos e movimentos diversos. Por não ouvir, os pais tendem a criar pouca expectativa quanto à possibilidade de expressão de seus filhos. Por outro lado, a ênfase na aquisição da linguagem oral fetichiza a fala, que se torna um fim em si mesma, vazia de expressão subjetiva.

Segundo Villas Boas, Rodrigues e Yamada (2006), estudos que comparam a interação entre mães ouvintes e filhos ouvintes e mães ouvintes e filhos surdos mostram que mães de filhos surdos são mais dominantes e menos responsiva aos filhos, ao passo que esses são menos participativos. Para as autoras, o fato de os pais de crianças surdas serem menos igualitários e espontâneos nas interações, além de agirem de forma mais controladora, tomando mais a iniciativa e dando poucas alternativas ao filho, prejudica a comunicação e estimula uma postura passiva da criança. Esses e outros achados ratificam a importância de orientação aos pais sobre práticas de interação que favoreçam a participação da criança e o consequente desenvolvimento de sua linguagem, também como instrumento de exploração do mundo. Rossi (2003) vai recuperar a importância do brincar enquanto instrumento de construção de uma interação motivadora e duradoura entre a mãe ouvinte e seu filho surdo. A autora define o brincar como “a linguagem universal das crianças (p.99)”, portanto capaz de operar no estabelecimento de uma relação prazerosa e afetiva entre mãe e bebê. O brincar seria ainda, segundo a autora, uma forma de lidar com os efeitos que o diagnóstico da surdez de um filho exerce sobre os vínculos familiares. Por outro lado, a autora observa que os sentimentos de

pena e tristeza que se instauram no olhar dos pais sobre a criança, além do sentimento de culpa, resultam em uma diminuição nas brincadeiras e conversas com o filho.

Tanto Bergès (1988a), como Carvalho e Rafaeli (2003) trazem a escrita como possibilidade de sustentação do corte entre a mãe e a criança surda. Assim como a palavra falada, a palavra escrita requer a queda do corpo para o surgimento da letra, ou seja, é preciso se libertar da forma para que a significação se torne possível. O requisito para se constituir como representação é, justamente, a ausência do objeto representado. A leitura e escrita pressupõem a submissão a um sistema de representação compartilhado, com regras que devem ser seguidas para se ascender ao significado, logo, há que operar a castração.

Uma criança surda congênita que acompanhei, desde muito cedo demonstrou grande interesse por letras e números, os quais reproduzia incessantemente, com perfeição. No entanto, era a forma das letras e números e, talvez, a imitação do ato de ler e escrever em si mesmos que o capturavam. Porém, seu fascínio foi o gancho para um investimento familiar na sua alfabetização. A reprodução guiada apenas por seu desejo e prazer de deixar uma marca sobre o papel precisou ser interditada pelas regras compartilhadas da língua escrita, para que ele pudesse compreender sua função de significação.

Na criança surda, a linguagem escrita pode vir a se constituir como uma modalidade comum entre ela e seus pais, uma vez que sua representação gráfica pode ser mais acessível ao surdo16. Obviamente, o investimento na escrita só se faz possível em um momento posterior, mas pode promover ou reforçar o corte que separa a criança de sua mãe, inserindo-a em uma relação compartilhada com a lei e o saber.

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 60-65)