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PRIMEIROS MOMENTOS DA EXPERIÊNCIA COM A SURDEZ, UM TEMPO EM

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 197-200)

QUE A PSICOLOGIA FALTA50

A histórica discussão sobre as concepções de surdez e sobre o modelo de educação que melhor atende às necessidades dos surdos, embora longa, ainda desperta polêmicas. É bem provável que nunca cheguemos a um consenso, uma vez que os surdos e a própria surdez se modificaram ao longo dos séculos, de modo que novos dados e dilemas são constantemente incorporados às discussões e precisam ser elaborados. Algumas mudanças tecnológicas e científicas recentes vêm acrescentar novos elementos, ressaltando a enorme diversidade que co-existe sob o significante ‘surdo’. Seja por ter se mantido tradicionalmente à parte das discussões sobre a surdez51, seja pela novidade dos acontecimentos, podemos identificar importantes lacunas deixadas pela ausência da atuação e do pensar psicológicos neste campo. Esse artigo tem como objetivo identificar esses espaços, analisando, em particular, mudanças na infectologia e neonatologia, e seus efeitos sobre a etiologia da surdez, e o implante coclear, aliado ao diagnóstico precoce da perda auditiva.

A surdez pode ter etiologias diversas, nem sempre identificadas, variando desde causas genéticas até sequelas de traumatismos decorrentes de acidentes. Com os avanços das Ciências da Saúde e campanhas abrangentes de vacinação, cada vez menos casos de surdez são decorrentes de agentes virais, como no caso da meningite e da rubéola, por exemplo. Por outro lado, também graças aos avanços tecnológicos que permitem a viabilidade de bebês nascidos cada vez mais prematuros, mais casos de surdez são associados à ototoxicidade dos medicamentos usados para estimular a maturação do sistema respiratório desses neonatos e a outras condições associadas à prematuridade.

O implante coclear, por sua vez, é um aparelho introduzido por meio de procedimento cirúrgico, que substitui, parcial ou totalmente, as funções da cóclea. A depender da etiologia da surdez, idade de implantação, condições emocionais e cognitivas do paciente, entre outros fatores, o implante coclear associado à reabilitação pode restituir a capacidade auditiva, em diferentes níveis, podendo mesmo chegar a níveis próximos ao da audição considerada normal. Essa tecnologia tem sido empregada em um número cada vez maior de casos, em

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Esse artigo nasceu da convocação do XV Congresso Brasileiro de Psicologia do Desenvolvimento, para pensarmos a inovação científica e seus efeitos no desenvolvimento humano. Um trabalho inicial foi apresentado no evento, que ocorreu em novembro de 2015, em Belém-PA.

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idade cada vez menor, graças, entre outras coisas, ao diagnóstico precoce da surdez. No Brasil, esse diagnóstico precoce tem se tornado uma realidade a partir da promulgação da Lei que implantou o programa de Triagem Auditiva Neonatal Universal (TANU), em 2010 (BRASIL, 2010).

Essas considerações apontam mudanças no conceito e na própria existência da surdez como a conhecemos. Caminhamos para o desaparecimento dos surdos, enquanto comunidade linguística e cultural? A ideia de uma identidade surda se sustenta diante dessas transformações? O implante coclear representará o fim das línguas de sinais? A etiologia da surdez tem efeitos sobre a subjetivação do surdo? Para pensar sobre essas questões, me apoio em dados estatísticos referentes às cirurgias de implante coclear e em artigos que relatam pesquisas empíricas sobre as transformações na etiologia da perda auditiva, bem como, em dados produzidos a partir do contato com surdos e profissionais que trabalham com a surdez. Na medida em que estamos em meio a mudanças significativas, o tema exige de nós reflexões, não permitindo, contudo, uma abordagem mais conclusiva, o que talvez nos ajude a acompanhar as transformações em curso, mantendo uma postura crítica e ativa. De qualquer modo, e talvez por isso mesmo, são identificadas demandas de atuação dos psicólogos, que não podem se furtar a assumir seu papel frente aos surdos e suas famílias.

7.1 MUDANÇAS NA ETIOLOGIA DA SURDEZ: DEFICIÊNCIA OU DIFERENÇA? Tradicionalmente, a surdez tem sido compreendida de duas maneiras distintas: como uma deficiência ou como uma diferença. A compreensão da surdez como uma deficiência tende a salientar seus aspectos negativos e associa à perda auditiva danos emocionais, cognitivos e sociais, preconizando a reparação da audição e a aquisição da fala como formas de minimizar ou eliminar as dificuldades. A compreensão da surdez como uma diferença foca nas possibilidades de constituição psíquica, construção de conhecimento e relação social aportadas pelo uso das línguas de sinais, preconizando a garantia de condições para o exercício de sua forma particular de comunicação como mecanismo de inclusão do surdo na sociedade.

A surdez, nos seus diferentes graus e tipos, pode ter origens diversas. Aspectos genéticos, má formação congênita, traumatismos, viroses, síndromes variadas, envelhecimento e exposição a agentes ototóxicos são algumas delas. Além disso, encontramos ainda um grande número de casos em que, não obstante a investigação, a causa não pode ser identificada, são as chamadas

causas idiopáticas. O contato com profissionais que trabalham em serviços e instituições de acompanhamento de surdos aponta para uma transformação na prevalência de etiologias nos últimos anos, no sentido de uma diminuição de causas por infecções virais, notadamente a rubéola e a meningite, e aumento no número de perdas auditivas decorrentes de prematuridade e complicações perinatais. A partir dessa constatação empírica, pergunto-me se as diferentes etiologias têm um efeito sobre a construção identitária do surdo e sua estruturação psíquica.

Não há consenso sobre a prevalência estimada de surdez congênita ou perinatal, na população geral no país. Cruz et al. (2009) falam de 1 para 1.000 recém-nascidos, Barboza et al. (2013) falam de 2 para 1.000, enquanto Pereira et al. (2014) falam de 3 a 4 para 1.000 nenonatos. As diferentes metodologias empregadas nas pesquisas, em especial a forma de seleção da amostra, associadas às dificuldades do diagnóstico nessa população, podem explicar a disparidade entre os achados. Há consenso, contudo, de que, com a exposição a fatores de risco, essa proporção aumenta consideravelmente, embora, também sobre esse aspecto, estudos tenham chegado a valores um pouco diferentes.

Pereira et al. (2014) apontam a permanência em unidades de terapia intensiva (UTI) como fator de risco mais presente na amostra estudada por elas. Segundo as autoras, a prevalência de alterações auditivas, no caso de bebês provenientes de unidades de terapia intensiva, é de 2 a 4% (PEREIRA et al., 2014). Botelho et al. (2010), por sua vez, encontraram a prevalência de 6,3% de perda auditiva em recém-nascidos de muito baixo peso, corroborando outros estudos. O baixo peso, contudo, está associado a diversas outras condições, não podendo ser considerado uma causa em si mesmo.

Lima, Marba e Santos (2006) apontaram como fatores de risco mais significativos para perda auditiva, em recém-nascidos internados em UTI nenonatal: malformação craniofacial, antecedente familiar para surdez congênita, síndrome genética, hiperbilirrubinemia, asfixia, peso inferior a 1.000 gramas e necessidade de ventilação mecânica por mais de cinco dias, nessa ordem. Para essa população a prevalência de perda auditiva bilateral foi de 4,9% e de 10,2%, para perda unilateral.

Barboza et al. (2013) investigaram 3.185 bebês, com e sem Indicadores de Risco para a Deficiência Auditiva (IRDA). A ocorrência de perda auditiva em crianças sem IRDA foi de 1,04%, enquanto naquelas com IRDA, foi de 8,38%, sendo 3,10% do tipo neurossensorial e 5,27%, condutiva. Os fatores de risco mais prevalentes foram: permanência em UTI neonatal por mais de cinco dias (43,41%); uso de medicamento ototóxico (29,81%); uso de ventilação

mecânica (28,88%) e; história familiar de perda auditiva permanente na infância (27,32%). Apesar desses índices, o único fator de risco que apresentou correlação com a perda auditiva foi “suspeita de síndromes ao nascimento”. As crianças enquadradas nessa categoria tiveram 18 vezes mais chances de apresentar perda auditiva neurossensorial do que aquelas sem esse IRDA.

Com respeito à etiologia da surdez, os dados encontrados a partir da análise de artigos nacionais confirmam uma diminuição das causas virais, embora sua prevalência revele um viés econômico que deve ser considerado. Estudos brasileiros sobre a etiologia da perda auditiva em neonatos são escassos (PEREIRA et al., 2014). Os estudos etiológicos pesquisados apresentam resultados variáveis e não se restringem a recém-nascidos. Enquanto Calháu et al. (2011) e Cecatto et al. (2003) encontraram em sua amostra a rubéola congênita como segunda etiologia mais frequente, atrás apenas das etiologias desconhecidas, no estudo realizado por Pupo, Balieiro e Figueiredo (2008), as causas desconhecidas também foram predominantes, porém fatores genéticos foram a causa identificável mais frequente. Foram consideradas causas genéticas quando uma mutação nos genes foi presumida (em 72% dos casos) ou pode ser identificada (em 28% dos casos). Silva, Queiros e Lima (2006) apontam a rubéola congênita como causa principal da surdez na população estudada; e Pedrett e Moreira (2012) encontraram a ototoxicidade associada à prematuridade como etiologia mais frequente. Pereira et al. (2014), em estudo com recém-nascidos, encontraram um percentual semelhante de causas genéticas e causas hereditárias presumidas. Foram consideradas causas genéticas quando uma mutação nos genes pode ser identificada, ao passo que as causas hereditárias presumidas representaram três casos de antecedentes familiares e um caso de consanguinidade entre os pais.

Características da amostra e do método devem ser levadas em conta ao analisar as diferenças encontradas, afinal, os estudos relatados não avaliam a etiologia de “novos surdos”, de modo que os dados podem não indicar corretamente a tendência verificada nos centros de assistência. O Quadro 1, abaixo, ilustra o quanto as especificidades da amostra tomada em cada estudo, no tocante ao ano da coleta, à forma de seleção e número de participantes, idade e período em que se dá a perda auditiva, interferem nos achados sobre etiologia.

Entre os estudos encontrados, o de Pereira et al. (2014) é o único que tem como participantes apenas recém-nascidos, e seus resultados confirmam a tendência mundial de diminuição de causas por infecção congênita: apenas dois casos foram encontrados, um por sífilis e outro por

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 197-200)