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Língua Escrita como Segunda Língua

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 111-118)

4. AQUISIÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA PELOS SURDOS

4.2 Língua Escrita como Segunda Língua

Ainda que cheguemos à conclusão de que a língua de sinais seja um ponto de partida viável para a aquisição da língua escrita, é preciso compreender as especificidades desse processo, que Virole (2015) qualifica de transmodal. É comum que se compare a aquisição da lectoescritura pelo surdo com a aquisição de uma segunda língua por um ouvinte. Porém, esta comparação é ainda imprópria. Para o surdo, a aquisição da leitura e escrita não é apenas a aprendizagem de duas modalidades de uma mesma língua, ou de duas línguas distintas em uma mesma modalidade, mas, a aprendizagem de duas línguas diferentes, em modalidades diversas.

A isso soma-se o fato de que, muitas vezes, no caso dos surdos, a aprendizagem da língua escrita é concomitante à aprendizagem da primeira língua, seja ela oral ou de sinais. Isso acontece, no primeiro caso, pelo fato de a língua oral não ser aprendida de forma natural pelo surdo, mas depender de um processo de reabilitação, que pode levar muitos anos até que se chegue a uma oralização satisfatória. De modo análogo, mesmo quando se opta pela inserção na língua de sinais, o mais comum é que isso se dê de forma tardia, uma vez que, como vimos, a maior parte das crianças surdas pré-linguais são filhas de pais ouvintes que, raramente, são fluentes em língua de sinais. Em geral, esse contato virá a acontecer apenas na escola.

Isso não é sem efeito para a produção escrita do surdo, especialmente quando há unanimidade quanto à importância de uma linguagem estruturada para o bom desenvolvimento do letramento. Em que pese a essas especificidades, é recorrente na literatura, como afirmado anteriormente, compreender a aquisição da leitura e escrita pelo surdo como aquisição de uma segunda língua. De tal modo que a educação de surdos é (ou deveria ser) concebida como uma educação bilíngue.

Desde 2005, pelo decreto 5.626 (BRASIL, 2005), foi reconhecido, no Brasil, o direito do surdo de ter a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) como língua de instrução, juntamente com o português, na modalidade escrita. Essa conquista

responde a uma demanda do movimento surdo, por uma educação bilíngue. No entanto não existe um consenso quanto ao formato do bilinguismo, também referido como multilinguismo, que tem sido implementado com configurações diversas. Configurações que, de modo geral, não chegam a atender às necessidades dos alunos surdos (NEVES; QUADROS, 2015), seja por se manterem presas a modelos de alfabetização pensados para ouvintes (PEREIRA, 2015), seja por terem sido elaboradas para os surdos, mas não com eles (RIBEIRO; SANTOS; FURTADO, 2015). Um fator complicador, já mencionado, é o fato de que, muitas vezes, a escola é o primeiro espaço de contato do aluno com a LIBRAS, que precisa, portanto, ser ensinada. Ao que Niederberger (2007, p. 259) qualificou como ‘dupla tarefa’ do aluno surdo: descobrir o funcionamento da língua escrita e aprender palavras e estruturas que ele desconhece.

Nas experiências em curso, temos, de modo combinado ou isolado: professores bilíngues, que ministram suas aulas em LIBRAS e em português oral; a presença de intérpretes, que mediam a relação do aluno com professores, com colegas e com o conhecimento; ensino de LIBRAS no turno oposto; atividades complementares realizadas nas salas de recursos multifuncionais,

com foco na apredizagem do português; entre outros modelos. Para além dessa diversidade, Neves e Quadros (2015) advertem que o bilinguismo não se resume a uma questão linguística, mas deve possibilitar ao aluno uma imersão tanto na cultura surda, quanto na cultura ouvinte, de modo que a língua de sinais e a língua majoritária sejam instrumentos de construção de si e de uma relação crítica com o mundo. Como pontua Virole (2009), uma língua não opera apenas na comunicação e na construção de pensamento, mas carrega em si uma cultura e seus significados compartilhados.

Silva (2015) analisou as consequências da aquisição tardia da primeira língua, especificamente, da LIBRAS, para a compreensão da leitura, em sujeitos surdos. Para a construção do seu estudo, a autora se baseou na noção de período crítico para a aquisição da linguagem e em pesquisas que demonstraram que a aquisição tardia da primeira língua não só tem efeitos negativos na construção da estrutura linguística desta, como prejudica a proficiência nas línguas que, por ventura, venham a ser aprendidas posteriormente. Seu delineamento considera a língua de sinais como primeira língua e o português escrito como segunda língua e os resultados encontrados apontam uma relação negativa entre a idade de aquisição da LIBRAS e a capacidade de compreensão do texto escrito, mesmo que todos os participantes tenham alcançado o nível máximo no teste de compreensão da língua de sinais. A autora (SILVA, 2015) chama atenção para a inadequação do ensino do português escrito hoje oferecido aos alunos surdos, que não considera suas necessidades como aprendizagem de uma segunda língua. Algumas pesquisas têm focado nessa questão. Peixoto (2006), por exemplo, recupera estudos que mostram que muitos dos assim entendidos erros cometidos por alunos surdos na produção escrita correspondem, justamente, a transposições diretas de construções próprias à língua de sinais, de modo que o olhar pejorativo sobre essas produções precisa ser ressignificado.

Também Silva (2001) afirma que as especificidades da escrita dos surdos advêm do fato de ser sustentada na língua de sinais. A autora recupera a noção de bimodalismo, que caracterizaria essa língua terceira, formada pela mescla entre a língua de sinais e a língua escrita majoritária. Como características comumente encontradas nas produções textuais de surdos, Neves e Quadros (2015) citam: o emprego de frases curtas, a omissão de artigos e o uso inadequado de preposições; que são, segundo as autoras, características também comuns aos textos daqueles que estão aprendendo o português como segunda língua. Niederberger (2007) também encontra essa semelhança entre os textos dos alunos surdos franceses e de estrangeiros em processo de aquisição do francês. Silva (2001) trata da frequente falta ou mau

uso de conectores e um dos alunos surdos, participante da pesquisa de Gomes (2015), se refere à dificuldade em “arrumar a frase”, ou seja, em expor a ideia de acordo com as regras sintáticas da língua escrita.

Ora, é importante salientar que a LIBRAS não possui preposições, artigos e conectivos, além de possuir uma sintaxe diferente do português, de modo que a organização da frase segue regras próprias. Pereira (2015) chama atenção ainda para o fato de algumas trocas de letras se apoiarem em semelhanças visuais, como p, d, b e q ou l e t, diferentemente das trocas normalmente feitas pelos ouvintes, que costumam se apoiar em semelhanças sonoras.

Capovilla et al. (2006) apresentam o Teste de Nomeação de Figuras por Escolha, que, além da competência de leitura, fornece dados sobre o tipo de erro cometido. Neste teste são apresentadas 36 figuras, com quatro palavras, sendo uma delas a palavra alvo. As palavras distraidoras são escolhidas de modo a identificar o possível processo empregado na leitura. Os autores trabalham com três tipos de erros de leitura: semântico, quando o participante escolhe uma palavra com significado próximo à palavra alvo; ortográfico, quando a palavra escolhida tem grafia parecida a esta, e; quirêmico, quando a palavra distraidora escolhida é representada por um sinal em LIBRAS semelhante ao sinal da palavra alvo.

Os resultados relatados sugerem que o leitor surdo recorre, de modo espontâneo, ao processo de sinalização interna como forma de mediação do acesso ao léxico semântico, em atividades de leitura e escrita. Isso evidencia, segundo os autores, a importância da língua de sinais no armazenamento, processamento e recuperação das informações necessárias à execução das tarefas de leitura, no caso de surdos sinalizadores.

Em pesquisa com crianças surdas, ainda em processo de aquisição da escrita alfabética, Peixoto (2006) investigou as teorias iniciais sobre a escrita por elas desenvolvidas. Neste estudo, as crianças eram convidadas a escrever as palavras correspondentes aos sinais efetuados pela pesquisadora. Para sinais conhecidos e de fácil representação gráfica (‘flor’, ‘Brasil’, ‘onça’), as tentativas de escrita foram acompanhadas de desenhos. Diante de sinais desconhecidos ou de difícil representação gráfica (‘comunicação’, ‘mau’, ‘profissional’), a escrita vinha acompanhada de uma tentativa de representação do próprio sinal. Essa é uma estratégia interessante em que a criança demonstra compreender o caráter representacional da escrita, ou seja, o que se escreve é o significante (palavra ou sinal), não o significado. Toda criança em processo de alfabetização, seja surda ou ouvinte, precisa fazer essa passagem.

Diante de sinais desconhecidos, as crianças também recorreram a transposições quirêmicas, como na pesquisa de Capovilla et al. (2006) relatada acima. Algumas vezes, faziam a escrita de uma palavra conhecida que apresentasse parâmetros semelhantes aos da palavra sinalizada. Outras vezes, diante de dois sinais parecidos para os quais desconheciam a grafia, as crianças apresentavam hipóteses de escrita também semelhantes – para pequenas diferenças de parâmetros, faziam corresponder pequenas diferenças na ortografia. Além disso, sinais compostos por dois ou mais radicais eram reproduzidos como tal na escrita, mesmo correspondendo a uma palavra não composta na língua portuguesa.

O que a autora ressalta, a partir dos seus achados, é o papel ativo que o sujeito assume frente à língua escrita. Diante dos conflitos postos pela demanda de escrever, as crianças analisam, comparam, formulam hipóteses, se adaptam às dificuldades. A criança transita entre as modalidades da língua, recolhendo e reconfigurando os recursos de que dispõe. Reconhecer a lógica empregada pelo aluno surdo e encará-la como esforço de construção, e não como erro, é fundametal para pensar uma pedagogia adequada ao seu processo de aquisição da leitura e escrita, que legitime a língua de sinais como suporte.

Oliveira (2009) extrapola o recurso à língua de sinais e trabalha com o conceito de linguagem visual, que, segundo ela, inclui também a utilização de símbolos visuais convencionados. Para a autora, a linguagem visual, além de suporte para a aquisição da escrita pelo aluno surdo, favorece a interação entre surdos e ouvintes convivendo no espaço coletivo da escola inclusiva. Construir uma prática pedagógica que considere a especificidade da experiência visual depende de uma compreensão aprofundada dessa forma de apreensão da realidade e da proposição de ações cuidadosamente planejadas para esse fim, defende a autora.

Quando pensamos nas diferentes modalidades, assim como a língua oral, a língua de sinais conta com outros elementos que contribuem para a compreensão do sentido, como a expressão facial e corporal. Além disso, em boa parte das vezes, é produzida na presença do interlocutor ou pressupõe a possibilidade de interpelação. Na aquisição da língua escrita, o aluno precisa compreender que é preciso empregar recursos específicos para favorecer a compreensão do leitor, que, em geral, não tem como interpelar o autor do texto de forma imediata, tampouco se apoiar em elementos não textuais para melhor compreender a mensagem.

Por tudo isso, Pereira (2015) e Ribeiro et al. (2015) recomendam que o ensino da leitura e escrita ao surdo deve incluir, necessariamente, a comparação sistemática entre as produções textuais e a LIBRAS, ajudando o aluno a compreender que se tratam de línguas com regras

gramaticais e usos sociais distintos. As pesquisas de Oliveira (2009) e de Gomes (2015), realizadas com alunos surdos, salienta a importância de que o professor seja proficiente em LIBRAS e faça uso dela como mediadora da aprendizagem da leitura e escrita, quando essa for a primeira língua dos alunos. Barros (2015) também reforça a necessidade de que o professor conheça a língua de sinais usada por seus alunos, quando for o caso, de modo que a comunicação se dê de forma fluida. Ao tratar do papel do outro para a produção escrita do surdo, Guarinello (2005) dá enfoque à necessidade de que criança e adulto tenham uma língua comum, não apenas para servir de modelo formal, mas, principalmente, de modo que a interação concorra para a construção de sentidos.

Para Silva (2001), as características das produções textuais dos surdos devem ser encaradas como material norteador do trabalho pedagógico, não como empecilhos. Niederberger (2007), além de apontar aqueles que seriam os pontos frágeis enfrentados pelos alunos surdos no seu processo de aprendizagem da língua escrita, mais ligados à dimensão morfossintática, ressalta também os pontos em que estes apresentam um bom desempenho. Um exemplo disso é a facilidade com homófonos com grafias distintas – como sexto e cesto, acento e assento, voz e vós –, que costumam causar dificuldades aos alunos ouvintes. Os surdos desenvolvem um bom léxico ortográfico, que depende de uma boa memória visual e também os sinais de pontuação costumam ser aprendidos com facilidade.

Barros (2015) propõe que o reconhecimento de padrões morfológicos e ortográficos pode ser favorecido por estratégias que prescindam da consciência fonológica. Além disso, para esse autor, um trabalho de familiarização com os gêneros textuais, por exemplo, pode ser um instrumento rico para a interpretação de textos escritos, uma vez que informa sobre os significados e objetivos comunicativos do texto em questão, ajudando o aluno a construir o que chama de um acesso informado às formas de utilização da língua. Barros (2015) lembra que essas competências são importantes não apenas para o aprendizado da língua portuguesa, mas de todo o curículo escolar. De fato, ele considera as dificuldades de aquisição da língua escrita como principal barreira ao sucesso escolar dos alunos surdos.

Muitas vezes, o caráter ágrafo das línguas de sinais é apontado como fator complicador da aquisição da leitura e escrita da língua majoritária pelos surdos. Para registro, é válido informar que existem sistemas de notação de línguas de sinais. O sistema mais

popular de Escrita de Sinais, ou Signwriting, foi criado pela coreógrafa americana Valerie Sutton, ainda na década de 1970, para ser usado para a transcrição de

qualquer língua de sinais e, desde então, vem sendo estudado e aprimorado por diversos pesquisadores.

Na Escrita de Sinais, um conjunto de símbolos visuais é usado para representar os cinco elementos das línguas de sinais que são responsáveis por dar sentido ao que está sendo comunicado: a configuração das mãos, seu posicionamento em relação ao corpo, o movimento que realizam, a direção e a expressão facial (Figura 1, abaixo). No entanto, talvez pela complexidade de reprodução, ou pela popularização de outros meios de registro, ou por motivos outros que caberiam ser pesquisados, a escrita de sinais apenas começa a se popularizar entre os surdos no país e a ser usada de forma sistemática na educação e na pesquisa. Portanto, ainda são poucos os estudos nacionais que pesquisem se o uso da Escrita de Sinais tem efeitos sobre a aquisição da leitura e escrita alfabéticas, com ênfase para o trabalho de Marianne Rossi Stumpf, além de Carolina Hessel, Fabiano Rosa, Lodenir Karnopp e Fernando Capovilla (OLIVEIRA, 2009).

Figura 1 Escrita de Sinais, vocabulário da casa

Fonte: STUMPF, 2008.

Em tempo, é preciso dizer que, embora o uso da língua de sinais na educação de surdos seja um direito, ele permanece como uma escolha. Graças ao aperfeiçoamento e popularização de tecnologias assistivas, como o implante coclear, e ao diagnóstico cada vez mais precoce, há um número crescente de famílias que optam pela oralização dos seus filhos surdos pré- linguais. No entanto, é um equívoco bastante comum que se pense que, por serem oralizados, esses alunos não precisariam de adaptações escolares, estando integrados às atividades regulares. Muitas das considerações aqui arregimentadas são úteis para pensar a alfabetização e letramento também dos surdos oralizados, implantados ou não, que, mesmo que alcancem uma boa discriminação auditiva, continuarão a se beneficiar de outros suportes.

A aquisição da leitura e escrita pelos surdos é uma questão de grande complexidade, que mobiliza habilidades e comportamentos diversos e questiona nosso conhecimento acumulado

sobre alfabetização e letramento. No cotidiano da sala de aula, ela se coloca como um grande desafio, para o qual, penso, não existe uma abordagem única. Guarinello (2005, p. 246) chama atenção para o fato de que cada criança, surda ou ouvinte, desenvolverá a escrita de forma singular, sendo este, portanto, “um processo de imprevisibilidades e diferenças.” Vanbrugghe (2005), por sua vez, define a educação de surdos e sua entrada na leitura como um paradoxo, cujos pontos principais nem sempre são perceptíveis à primeira vista. Para essa autora, as tentativas históricas de proposições unívocas resultaram em prejuízos e inflexibilidades que contribuem para cristalizar o que ela chama de ‘deficiência adquirida’ pelos surdos graças à insistência em ações pouco eficazes, se não, nocivas.

Aqui, a questão da avaliação da competência de leitura assume papel crucial. Pelo exposto, fica evidente a necessidade de que esta avaliação leve em consideração as especificidades do aprendizado do aluno surdo. Para referência, cito o trabalho, realizado pelo professor Fernando Capovilla e sua equipe (CAPOVILLA et al., 2006), de desenvolvimento, validação e normatização de uma bateria composta de onze instrumentos que avaliam o desenvolvimento em língua de sinais e a competência de leitura e escrita em alunos surdos. Reafirmo que não há uma forma de ensino padrão, que atenda às necessidades de todos os alunos surdos. Cada um precisa ser compreendido nas suas necessidades, potencialidades e desejos. Além disso, analisar as experiência, sejam exitosas ou mal sucedidas, é fundamental para avançarmos um pouco mais na construção de melhores alternativas. Por isso mesmo, proponho algumas considerações sobre o uso da Língua Falada Complementada.

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 111-118)