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Psicologia da Surdez

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 40-47)

Nas décadas de 1950 e 1960, a proposta de uma Psicologia da Surdez baseava-se na associação direta entre a perda auditiva e um conjunto de características cognitivas, psíquicas e, mesmo, psicopatológicas, que afetariam os surdos de modo geral (BERNARD, 2004; BISOL et al., 2008). A difusão destas ideias incide, diretamente, sobre a proposição de intervenções terapêuticas e pedagógicas, mas, também, sobre a construção de uma visão social a respeito dos surdos, cristalizando concepções errôneas até hoje presentes no imaginário popular.

Essa compreensão se inscreve em uma visão médico-clínica da deficiência, que, na sua forma mais pura, infere uma relação direta entre uma lesão orgânica ou uma perda sensorial e um conjunto predeterminado de limitações e sintomas (BARTON; OLIVER, 1997; DINIZ, 2007; SCHMITT, 2014). A visão médico-clínica, neste formato, ignora, portanto, os aspectos sociais, e mesmo pessoais, que se somam à lesão, contribuindo para as limitações e especificidades às quais estão expostos os surdos, quando vivendo em uma comunidade formada, majoritariamente, por ouvintes.

A essa visão, opõe-se o Modelo Social da Deficiência, ou concepção socioantropológica, que quer resgatar os aspectos contextuais que marcam a experiência de portar uma lesão no corpo, em um meio social marcado pelo ideal de normalização. No âmbito específico da surdez, esse modelo é desenvolvido pelos Estudos Surdos. O modelo social traz as discussões e intervenções sobre a deficiência para fora do domínio da patologia e, consequentemente, da terapia, focando sobre o papel do social na definição das barreiras impostas aos deficientes.

Como principal consequência, essa mudança faz recair também sobre o social a responsabilidade pela construção de um ambiente inclusivo, substituindo a ideia de superação pessoal pela de justiça social (DINIZ, 2007).

Segundo essa nova visão, a proposta de uma Psicologia da Surdez, tal como descrita acima, carece de complexidade e conduz a explicações espúrias sobre o desenvolvimento psíquico e cognitivo dos surdos. A tradicional associação da psicologia ao modelo médico e a assunção de um papel essencialmente reabilitador tiveram como consequência o empobrecimento de suas discussões. Como espólio desse debate, podemos identificar diversos espaços de teorização e atuação que deveriam ser ocupados, de forma mais contundente, pela psicologia. Algumas dessas lacunas serão apontadas e discutidas ao longo do trabalho, com destaque para o acompanhamento do processo do diagnóstico e primeiros momentos de convivência da família com a surdez de seu novo membro.

Uma reinserção da psicologia, no entanto, depende de uma abertura dos profissionais e pesquisadores desse campo do saber aos conhecimentos que se construíram pela adoção do paradigma da surdez enquanto diferença cultural e linguística e por tudo aquilo que conquistaram os surdos, impulsionados pelo desenvolvimento dessa perspectiva. Porém, não obstante, todas as importantes transformações aportadas por esse paradigma, ao fazer pender radicalmente o foco do biológico ao social, ele pode incorrer no mesmo erro de apagamento da subjetividade, agora pela sua diluição no contexto. O risco é mais presente quanto mais o social for pensado como uma entidade desencarnada e em relação de oposição direta ao individual, hoje cada vez mais ancorado numa compreensão geneticamente determinada do humano. O desenrolar da história dos surdos no mundo, com atenção ao momento atual no qual as questões identitárias se transformam de forma vertiginosa, é testemunho inconteste de que essas velhas formas de pensar não dão conta das novas demandas.

A análise, que apresento, dos artigos produzidos por psicólogos, no Brasil, sobre a surdez, parece apontar no sentido de uma crescente superação dessa dicotomia. Se, entre 1996 e 2005, Bisol et al. (2008) puderam identificar uma tendência de predomínio da adoção do modelo sócioantropológico pelos pesquisadores, a análise dos artigos produzidos entre 2006 e 2016 não permitiu classificar os trabalhos segundo essas duas formas de pensar a deficiência, sem incorrer em simplificações forçadas.

Penso que a psicologia, por sua posição de fronteira, tem potencial para apontar caminhos de superação da dicotomia férrea que se estabeleceu entre partidários de um e outro modelo, de forma ainda mais potencializada quando se trata da surdez. Se bem que a radicalização de

posições possa ter sido necessária, em um dado momento histórico, a falta de diálogo entre essas duas visões é, hoje, fonte de empobrecimento e distorções. Penso caber à psicologia trazer para a cena o sujeito surdo que, com frequência, se perde em meio a verdadeiras batalhas travadas entre saber e ideologia.

Embora já não seja mais comum, entre boa parte dos profissionais, defender a existência de uma diferença psicológica entre surdos e ouvintes, exclusivamente determinada pela deficiência auditiva, encontramos, nos artigos e discursos, afirmações sobre aspectos de personalidade ou quadros psicopatológicos mais correntemente encontrados em surdos. Ainda, a garantia de medidas inclusivas, sustenta-se, muitas vezes, em critérios orgânicos, que acabam por reforçar essa suposta relação entre a perda auditiva e dificuldades de aprendizagem e socialização, por exemplo. Essa contradição é compreensível. A deficiência auditiva, entre todas as outras, talvez seja a que mais claramente pressione, até os seus limites, o conflito entre diferença e igualdade. Afirmar ou negar uma diferença psicológica originária entre surdos e ouvintes implica um posicionamento ético e traz desdobramentos políticos que podem afetar profundamente a vida dos surdos e de seus familiares. Ainda que espinhosa essa discussão deve ser encarada.

Para Solé (2005, p. 19), não existe Psicologia da Surdez, na medida em que “a escuta de pessoas surdas não gera uma especialidade e não necessita de um profissional especializado”, embora a autora saliente a necessidade de que o profissional seja competente na língua do paciente. No entanto, a autora identifica especificidades no psiquismo dos surdos. Ela pontua, por exemplo, “o sentimento de solidão que acompanha a maioria dos adultos e adolescentes surdos” (SOLÉ, 2005, p.17) e afirma que a constituição subjetiva dos sujeitos surdos é marcada pela ausência da audição como via de apreensão do mundo. Para a autora, a surdez é “no mínimo, problematizadora da constituição do Eu” (p. 20).

Outra característica que ela percebe como comum é o alongamento da infância ou da adolescência. Ela afirma, ainda, que a surdez, para alguns sujeitos, pode facilitar o surgimento de ou potencializar patologias. Solé (2005) afirma que, além da representação familiar sobre a surdez e das possibilidades de elaboração que foram postas em ação, a ausência de audição, em si mesma, e pelo impedimento de inserção na língua em tempo hábil, traz embaraços à constituição psíquica. Portanto, conquanto se mostre contrária à existência de uma Psicologia da Surdez, sua vasta experiência na clínica e educação de surdos lhe permite identificar diferenças importantes entre surdos e ouvintes.

Em 1980, Martin-Laval considerava que a psicologia, como jovem ciência que era, podia ainda se permitir algumas incertezas, entre as quais a ambiguidade quanto à existência de uma diferença psicológica entre surdos e ouvintes. Vinte e cinco anos depois será que já podemos responder, assertivamente, à pergunta que dá título ao livro de Martin-Laval (1980): A Psicologia do Surdo: Mito ou Realidade? A seguir, apresento algumas considerações sobre essa indagação, que, ao que parece, é o alicerce sobre o qual podemos pensar as interlocuções possíveis entre a psicologia e a surdez.

Algumas perguntas se colocam no início desse percurso: assumir a existência de uma Psicologia da Surdez, ou dos Surdos, implica necessariamente afirmar uma diferença psicológica originária entre surdos e ouvintes? Qual e quanta diferença engendra uma psicologia diversa, que justifique a adjetivação? A que ou a quem serve uma psicologia assim? Uma proposta de Psicologia da Surdez está sempre e exclusivamente vinculada ao modelo médico? Vejamos onde nos leva a busca por algumas respostas.

Não obstante os anos que nos separam do trabalho de Martin-Laval (1980), algumas de suas ponderações ainda são atuais e nos ajudam a avançar na discussão. A primeira delas versa sobre a própria definição da surdez. Por sua complexidade e diversidade de aspectos especificadores, o termo surdo se torna pouco explicativo quando não acompanhado de uns tantos outros qualificadores, tais como pré ou pós-lingual, uni ou bilateral, moderado, severo ou profundo, oralizado ou sinalizador. Mesmo estas subclasses apenas nos informam, rudimentarmente, sobre aspectos audiológicos e de linguagem. A gama amplamente heterogênea de pessoas que se agrupam sob o termo surdo, faz do estudo sobre a surdez um terreno escorregadio, dificultando quaisquer pretensões de comparação e generalização. Para Martin-Laval (1980), a imprecisão que persiste quanto à definição da surdez, malgrado a profusão de qualificativos, seria uma das fontes primárias das inúmeras contradições que encontramos nos estudos com surdos. Diversos autores fazem eco à crítica de Martin-Laval e denunciam os prejuízos decorrentes de generalizações apressadas. Para Virole (2015), por exemplo, há que se abandonar, definitivamente, estudos que se sustentem sobre a comparação entre surdos e ouvintes, dada a impossibilidade de se compor um grupo homogêneo de surdos, que permita isolar a surdez como variável explicativa do que quer que seja.

Essa dificuldade mostra-se mais pungente no campo da psicometria, justamente no qual se registram os primeiros trabalhos que podem ser reconhecidos como estudos da Psicologia dos Surdos (MARTIN-LAVAL, 1980; SOLÉ, 2005). A questão da inteligência e de sua mensuração é, segundo Virole (2006), o eixo pelo qual a psicologia se insere no problema

clássico do conhecimento, outrora objeto de reflexão da filosofia. Para esse autor, os primeiros estudos em psicologia sobre a inteligência dos surdos contribuíram para a desvalorização das línguas de sinais que teve início no fim do século XIX, por conta de resultados obtidos com a utilização de escalas não adaptadas. Segundo ele, os surdos despertam interesse da psicologia na medida em que o estudo de seu desenvolvimento fornece argumentos para diversas hipóteses, por vezes mesmo contrárias entre si, acerca de três grandes categorias conceituais centrais à psicologia: pensamento, linguagem e percepção. No que diz respeito a uma diferença psicológica entre surdos e ouvintes, embora parta de uma pergunta, Martin-Laval (1980) deixa clara, desde o início, sua posição em prol da pertinência de uma Psicologia do Surdo, em favor da qual argumenta a partir da análise das particularidades que os surdos apresentam em quatro dimensões: a percepção, a motricidade, a função cognitiva e a personalidade.

Já em 1996, Benoit Virole reemprega o termo Psicologia da Surdez, em livro homólogo, reeditado em 2006. Sua proposta era sustentada no seu contato próximo com surdos, em contextos institucionais e clínicos. Embora afirme haver uma relação entre surdez e psicopatologia, afirmação que se aproxima da visão médico-clínica, duramente criticada pelos estudiosos da surdez, Virole (2006) explica tratar-se de uma relação conjectural, e não estrutural. Ao falar de surdez, e isso fica claro, o autor não se restringe ao déficit sensorial, mas a todo o conjunto de fatores que a circundam, como o olhar do social, a experiência familiar, a vivência escolar etc. Assim, o caminho da associação entre surdez e um retraimento intelectual, por exemplo, passa por uma história de escolarização inadequada. Para o autor, duas perguntas estão na base dessa relação entre a psicopatologia e a surdez. A primeira questiona se a surdez predisporia às formas psicopatológicas gerais. A segunda questiona se a surdez engendraria formas psicopatológicas particulares.

Para responder à primeira pergunta, Virole (2006, p. 269) analisa a relação entre a surdez e a patologia a partir de quatro tipos de fatores causais possíveis, com base no que chama de modelo clássico da psicopatologia. O primeiro tipo são os fatores de predisposição, que interferem na vulnerabilidade do organismo aos fatores provocadores. Estes, os fatores provocadores, são o segundo tipo analisado, e são responsáveis por deflagrar a patologia. O terceiro tipo são os fatores contribuintes, ou seja, que aumentam os riscos de se confrontar com um fator provocador e exacerbam uma patologia já presente. Por fim, há os fatores especificadores, que têm um papel na forma de expressão de uma patologia em cada indivíduo em particular. A partir dessa classificação, Virole (2006, p. 270) nos diz que:

podemos afirmar que a surdez é certamente, em todos os casos, um fator especificador, em alguns casos (em particular nas psicoses do tipo paranoico) um fator contribuinte, em outros casos (tais como os retraimentos autísticos precoces) um fator predisponente, porém, muito raramente, um fator provocador, salvo nos casos de perda abrupta da audição naqueles que se tornaram surdos.10

Virole assume a especificidade da surdez, porém, supera afirmações rasteiras sobre uma maior predisposição dos surdos a determinados quadros psicopatológicos.

Uma importante pontuação de Bisol e Sperb (2010) deve ser aqui recuperada. Segundo as autoras, a concepção de surdez dos pesquisadores, se como deficiência ou diferença cultural, interfere nos resultados dos estudos sobre a saúde mental dos surdos. Pesquisadores que veem a surdez exclusivamente como deficiência, tendem a apontar percentuais mais elevados de prevalência de problemas mentais nessa população. Para as autoras, a falta de familiaridade com crianças, adolescentes e adultos surdos e as diferenças linguísticas podem conduzir a uma visão patologizante de alguns comportamentos e posturas. Cabe lembrar que boa parte dos procedimentos de avaliação psiquiátrica recorrem à linguagem verbal, tendo sido padronizados para ouvintes.

Na proposta inicial, da Psicologia da Surdez, a diferença do surdo em relação ao ouvinte é sempre da ordem do déficit, da impossibilidade. Uma nova visão se debruça sobre a diferença, porém, sem julgamento de valor, com foco nas possibilidades e na construção de uma prática que favoreça o desenvolvimento a partir daquilo que os surdos apresentam como particular. Além disso, assume a heterogeneidade da surdez e se baseia em um conhecimento construído em parceria com os surdos.

As especificidades do desenvolvimento do surdo e de seu estar no mundo, com todas as ressalvas necessárias para afastar essa afirmação de uma generalização, estão amplamente descritas na literatura. Aprofundar o estudo sobre elas, ampliando as áreas de interesse, é sinal de respeito à diversidade humana. Com o trabalho aqui apresentado, tenciono fornecer algumas pequenas peças que ajudem a compor a proposta de uma outra Psicologia da Surdez e a pensar o papel dos psicólogos e psicólogas que atuam com surdos.

Como vimos, Martin-Laval (1980) questiona a especificidade do desenvolvimento psicológico do surdo a partir de quatro dimensões: a percepção, a motricidade, a função cognitiva e a personalidade. Maqbool (2016) também identifica quatro dimensões que têm

10

Tradução da autora. No original: “[...] on peut avancer que la surdité est certainement dans tous les cas un facteur spécifiant, dans certains cas (en particulier les psychoses de type paranoïaque) un facteur contribuant, dans d’autres cas (tel les retraits autistiques précoces) un facteur prédisposant, mas très rarement un facteur provoquant, sauf dans les cas de perte brutale de l’audition chez les devenus sourds".

sido exploradas por psicólogos como apresentando um desenvolvimento particular nos surdos, porém, elas diferem daquelas apontadas por Martin-Laval, sendo: aquisição da linguagem e conhecimento culturalmente orientado; desenvolvimento cognitivo; ajustamento comportamental e emocional; e identidade social. Para o autor, essas dimensões foram inicialmente abordadas desde uma perspectiva de déficit, mas hoje são vistas desde o ponto de vista da diferença.

Na presente pesquisa, proponho olharmos para as especificidades desenvolvimentais dos surdos a partir de três dimensões: a psíquica, a cognitiva e a social. A dimensão psíquica, de algum modo, tangencia o conceito de personalidade trazido por Martin-Laval (1980), e de ajustamento comportamental e emocional, apontado por Maqbool (2016). Além disso, da forma como foi aqui trabalhada, traz interfaces com a aquisição da linguagem e conhecimento culturalmente orientado, dimensão também citada por esse último. A dimensão social, aqui interrogada a partir do conceito de Identidade Surda, tampouco pode ser pensada sem tratar de questões de linguagem e cultura. Por fim, a dimensão cognitiva é apontada pelos dois autores e permite também pensar sobre aspectos da percepção. Desse modo, apenas a questão psicomotora, estudada por Martin-Laval, não é diretamente endereçada nesta tese.

Fica clara a dificuldade em se estudar cada uma dessas dimensões de modo separado, uma vez que, no desenvolvimento, estão indissociadas e, certamente, não será possível abordá-las de forma exaustiva, portanto escolhi um tema como mote para refletir sobre cada uma delas, nos três artigos que se seguem. Ainda que seja possível identificar a ênfase dada em cada artigo a uma dessas dimensões, nunca é demais reforçar que essa categorização não reflete a realidade, que nunca é estanque e estática.

2. EFEITOS SUBJETIVOS DO NASCIMENTO DE UMA CRIANÇA SURDA EM

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