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4. AQUISIÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA PELOS SURDOS

4.5 Em Resumo

A constatação de Niederberger (2007, p. 255), com a qual tendo a concordar, de que, historicamente, a dificuldade de aquisição da lectoescritura pelo surdo independe do método

pedagógico utilizado, reforça a ideia de Virole (2006), para quem a educação de surdos se define menos por sucessos e fracassos práticos das diferentes abordagens metodológicas, do que pelo desenrolar da história do pensamento, situando a questão no centro das relações entre sujeito, linguagem e conhecimento.

Embalada pela compreensão de que nenhuma proposta pedagógica padrão poderá dar conta da grande variabilidade contida na categoria ‘alunos surdos’, me abstenho de apresentar respostas. Creio, contudo, após as considerações relatadas, poder elencar três conjuntos de fatores que, embora não exaustivos, interferem, de forma significativa, na construção da habilidade de leitura e escrita pelo surdo. A análise cuidadosa desses aspectos, diante de cada situação de ensino e aprendizagem, pode ajudar a afinar as estratégias e adequá-las às necessidades e possibilidades de cada aluno.

Acredito que nosso percurso até aqui tenha deixado claro que as dificuldades da aquisição da leitura e escrita pelo surdo não advêm da surdez, tampouco podem ser creditadas ao aluno, mas resultam de uma forma particular de pensar a educação e, em especial, os padrões de uso da linguagem (RIBEIRO; SILVA, 2015). Desse modo, é de responsabilidade de cada profissional envolvido com o tema trabalhar pela transformação dessa fatídica realidade. 4.5.1 Consciência fonológica ou competência metafonológica

Apesar dos questionamentos sobre a hegemonia da consciência fonológica enquanto estratégia de leitura e escrita, há evidências suficientes de sua importância como suporte para nos tornamos leitores hábeis. No caso dos surdos, essa capacidade depende de diversos fatores, tais como o grau, o tipo e o momento de instauração da surdez, que irão definir a existência e a qualidade de uma experiência auditiva prévia à perda auditiva e a presença de uma memória auditiva. Somam-se a eles, a qualidade da protetização, quando ela existe, e o nível de discriminação auditiva que permite; juntamente com os resultados obtidos com a reabilitação auditiva. Interferem, ainda, características pessoais geneticamente determinadas (VIROLE, 2015).

Porém, para além de aspectos audiológicos, é importante considerar a relação subjetiva de cada surdo com o estímulo sonoro. Tal relação pode ser prazerosa, instigante, ou pode ser vivida pelo surdo como um imperativo de se enquadrar no mundo ouvinte. Não é sem efeito que as experiências auditivas tenham sido de prazer ou de desprazer, ou mesmo de como é elaborada a perda auditiva, muitas vezes vivida como uma punição (BERNARD, 2001; VIROLE, 1990). Importa também, aqui, a forma como a família lida com a surdez e como a

criança ou adolescente experimenta as terapias de reabilitação. Portanto o desejo de ascensão ao domínio áudio-oral será marcado por esses fatores que se presentificarão diante das demandas pedagógicas.

Conhecer estas características nos permite dosar o investimento que se faz sobre o desenvolvimento da consciência fonológica com a necessidade de potencializar outras estratégias. Além disso, pode nos orientar para ações que se sustentem menos sobre o estímulo auditivo e mais sobre outras dimensões do fonema, uma vez que, como vimos, há outros suportes sobre os quais apoiar o desenvolvimeto da consciência fonológica.

4.5.2 Via de entrada na linguagem e estruturação do pensamento

Não obstante muitos autores defendam o uso das línguas de sinais como meio mais eficaz de construção da linguagem pelos surdos, mesmo no caso de implantação precoce (VIROLE, 2015), a escolha da modalidade linguística continua sendo uma prerrogativa familiar, sobre a qual incidem diversos fatores. Além disso, as alternativas ideais estão pouco disponíveis no cenário nacional e ainda marcadas por questões econômicas. Mesmo quando o implante ou a protetização são realizados pelo Sistema Único de Saúde, os custos com a manutenção dos aparelhos e com atendimentos são altos. Ainda é escassa a oferta de serviços de reabilitação gratuitos adequados à necessidade das pessoas com implante e aparelhos auditivos, especialmente fora dos grandes centros. Além disso, muitas vezes, cabe às famílias arcar com os custos do aprendizado de LIBRAS e presença de intérprete, mesmo sendo direitos assegurados por lei ao surdo. Logo há uma grande variedade na forma de introdução de cada sujeito na linguagem e no momento em que diferentes modalidades linguísticas lhe são apresentadas.

Devemos entender que a história pessoal de entrada na linguagem terá efeitos sobre a forma pela qual se estrutura o pensamento. Ainda que o surdo privilegie o canal viso-gestual na construção de sua relação com o meio, ele habita, na maior parte das vezes, um mundo em que as trocas áudio-orais são privilegiadas, portanto está sujeito a regras e modos de funcionamento que se estruturam nesse registro. Na sua dimensão visual, a iconicidade desempenha um importante papel na construção da linguagem e do pensamento. Este é um aspecto ainda pouco considerado e sobre o qual temos um conhecimento restrito. Mesmo para os surdos oralizados, de quem se pode esperar um melhor desenvolvimento da consciência fonológica, após considerados os fatores relatados no item anterior, não podemos menosprezar seu forte amparo sobre estímulos visuais.

Analisar os erros cometidos, confrontando-os com a primeira língua empregada pelo aluno, seja a língua de sinais, seja a língua oral em aquisição, é uma estratégia fundamental para compreender a forma como o aluno surdo se apropria da linguagem escrita e cria hipóteses quanto ao seu funcionamento. O trabalho pedagógico deve explicitar as distinções entre a língua de sinal e a escrita e entre a língua oral e a escrita.

4.5.3 Dimensão sociocultural

A riqueza e diversidade de experiências socioculturais vai incidir diretamente sobre a possibilidade de simbolização e interpretação. Isso também reflete na importância que a leitura e escrita assumem na vida de cada um. Contudo vimos que a surdez precoce, vivida em uma sociedade majoritariamente ouvinte, pode trazer embaraços à socialização. O profissional que trabalha com a alfabetização do surdo deve estar pronto para lidar com possíveis lacunas e pode ajudar a supri-las.

De modo geral, a instrução direta precoce sobre a consciência fonológica e o conhecimento da escrita têm pouco efeito, podendo até ter efeitos nocivos, para o desenvolvimento do letramento. Contudo estudos mostram que, para crianças oriundas de ambientes menos ricos em termos de letramento, essa instrução pode ser benéfica (PHILIPS; LONIGAN, 2013). Embora as pesquisas tratem de ouvintes, podemos pensar se essa conclusão teria validade também para as crianças surdas. Mais uma vez trata-se de trabalharmos com o real, principalmente quando ele se distancia do ideal.

Claro está que o desenvolvimento da simbolização não está restrito a atividades de leitura e escrita. Ele pode e deve ser promovido por meio do contato com linguagens e situações socioculturais diversas. O apego às questões formais da leitura e escrita pode cegar o profissional para a necessidade de ampliar o repertório sociocultural do aluno.

Porém, exceto por alguns poucos dados mais objetivos, é muito difícil avaliar o desenvolvimento sociocultural sem adotar uma postura referenciada pela visão majoritária. Aqui, corremos o risco de olhar apenas para aquilo que falta ao surdo em relação ao que é socialmete esperado, sem, contudo, atentar para aquilo que ele possa trazer de modos de socialização e inserção cultural próprios. Tais características combinadas nos levam a uma infinidade de configurações possíveis, sulinhando a complexidade do processo de aquisição da lectoescritura pelo surdo e o grande número de saberes envolvidos em sua produção. Sua apropriação pelo surdo demandará a construção de formas alternativas de apresentação que estejam de acordo com os fatores discutidos acima. Isoladamente, esses fatores podem ser

tomados como indícios para a construção de estratégias adequadas a cada aluno, jamais como unidades determinantes.

No documento Por outra psicologia da outra surdez (páginas 126-130)