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CAPÍTULO 2 – VOLTANDO O OLHAR PARA O CAMPO DE INVESTIGAÇÃO

3.2 A Escola Inclusiva: Cenário de Contradições

Se a escola é um lugar onde convivem diferentes modos de interpretar o mundo e onde identificações são forjadas, ela também é, freqüentemente, um espaço onde a ordem sociolingüística pode ser contestada. Para dar sustentação teórica a esse argumento chamo, inicialmente, Certeau (1994) e Favorito (2006).

3.2.1 Entre a Norma e as Práticas Vividas

Para o pensador francês Certeau (op.cit.), é preciso, sempre, separar a ‘norma’ impressa pelos modelos culturais vigentes e o que é ‘vivenciado’ pelas pessoas em situações concretas. Segundo ele, a força dos modelos culturais hegemônicos não é suficiente para normatizar por completo os nossos comportamentos no dia-a-dia, já que as pessoas criam, através dos mais variados esquemas táticos, espaços próprios de resistências às normas.

Referindo-se a grupos sociais em posição de maior vulnerabilidade – o que, na situação pesquisada, corresponderia ao grupo de alunos surdos inseridos em uma sala de aula do sistema regular de ensino – o autor argumenta que esses não estão à mercê das estratégias dos poderosos: eles freqüentemente encontram recursos próprios para fazer frente às situações que lhes são impostas. Eles ‘fabricam’, no seu cotidiano, diferentes formas (táticas) de utilizar os produtos culturais que lhes são estrategicamente impingidos. Portanto, esses grupos subalternos não são meramente consumidores de modelos culturais: eles se apropriam desses modelos e subvertem a ordem social vigente.

Pretendo argumentar que, assim como observado por Favorito (op. cit.: 131-132), também no contexto por mim pesquisado, “a escola monolíngüe em português” pode ser entendida como um “produto cultural” imposto aos alunos surdos bilíngües.

Tendo por base as idéias desses dois autores, pretendo discutir, na análise dos dados, os modos como os alunos surdos fizeram frente a essa imposição sociolingüística, apropriando-se de espaços no cotidiano escolar para fazer valer também a comunicação em língua de sinais. Com o intuito de melhor discorrer sobre essa possibilidade de resistência, faço referência, a seguir, às idéias de Canagarajah (1999) e da Silva (2005).

3.2.2. Teorias de Acomodação versus Teorias Reprodutivistas versus Teorias de Resistências

Segundo o lingüista aplicado Suresh Canagarajah (op. cit.:13), há dois grandes paradigmas disponíveis para se pensar o papel da escola: o paradigma tradicional e o paradigma crítico.

No primeiro, a aprendizagem é considerada uma atividade fundamentalmente cognitiva, isto é, ela é resultado de uma atividade isolada da mente do indivíduo, não sendo afetada, portanto, pelo contexto no qual o indivíduo está inserido. Assentado nos princípios filosóficos do Iluminismo, do Racionalismo, do Positivismo e do Modernismo, o paradigma tradicional propõe que “a mente humana teria o poder de distinguir fato de mito, de apreender as leis da natureza e canalizá-las para o progresso da humanidade”25, já que “viveríamos em um mundo auto-suficiente, capaz de oferecer respostas completas para suas leis de operação” (Canagarajah, op. cit.:18).

Dessa perspectiva, caberia à escola, então, fomentar o desenvolvimento cognitivo do aluno com o intuito de garantir sua inserção na ordem social estabelecida e o próprio desenvolvimento dessa última. Ocorre que “as condições sócio-culturais sempre influenciam nossa atividade cognitiva, mediando o modo como percebemos e

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Essa valorização da razão e da experiência do indivíduo surge, nos séculos XVI e XVII, como uma contrapartida à supremacia da aristocracia e do clero vigentes até então. A esse

interpretamos o mundo à nossa volta” (Canagarajah, op. cit.:14). Em outras palavras, não é possível ignorar, assevera o autor, que questões ligadas à dominação ideológica e aos conflitos sociais perpassam as atividades escolares e ajudam a moldar pensamentos e identidades. E é justamente essa percepção que orienta o segundo paradigma: o paradigma crítico.

O educador Tomaz Tadeu da Silva (2005:29-30), cujas reflexões incidem sobre as teorias do currículo, esclarece que as teorias educativas tradicionais eram teorias de “aceitação, ajuste e adaptação” do status quo, já que seus seguidores

“(...) não estavam absolutamente preocupados em fazer qualquer tipo de questionamento mais radical relativamente aos arranjos educacionais existentes, às formas dominantes de conhecimento ou, de modo mais geral, à forma social dominante”.

Complementa o autor que as teorias críticas, por outro lado, “desconfiam do status

quo, responsabilizando-o pelas desigualdades e injustiças sociais.”26

É importante, entretanto, ter claro que, como insiste Canagarajah (1999:22), não é possível entender os pressupostos e as práticas que se alojam no interior do paradigma crítico de educação em termos absolutos e universais27, pois há divergências nos modos como diferentes teóricos consideram variáveis como poder e desigualdade em processos educativos. De acordo com autor, o paradigma crítico comporta, grosso modo, dois modelos: o modelo de reprodução da ordem constituída e o modelo de resistência a essa ordem.

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Da Silva (op. cit.:29) observa que a renovação da teoria educacional que resultou na mudança de paradigma, descrita acima, tem sua origem em movimentos teóricos que ocorreram, na década de 70, em vários países. Dentre os pensadores que fomentarem tais movimentos, o autor cita, por exemplo, Basil Bernstein e Michael Apple (EUA), Michael Young (Inglaterra), Paulo Freire (Brasil), além de Louis Althusser, Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (França).

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Canagarajah (op. cit.: 17) investiga comunidades educativas marginalizadas no Sri Lanka, daí o seu interesse em refletir sobre as formas de viabilização de uma pedagogia crítica, já que essas “servem melhor aos interesses, aspirações e desafios” desse tipo de comunidades de aprendizes.

Canagarajah afirma que, de um modo geral, o primeiro está assentado nas correntes determinísticas do pensamento estruturalista e marxista que orientou as reflexões sobre a educação até meados da década de 7028: a escola reproduziria, sempre, o

status quo, já que, nesse modelo, os alunos seriam, inevitavelmente, “condicionados

mentalmente e comportamentalmente, pelas práticas escolares, a servir às instituições e grupos dominantes” (Canagarajah, op. cit.: 22). O papel da escola seria justamente o de, naturalizando as ideologias hegemônicas, reforçar as diferenças sociais e legitimar as desigualdades.

Embora essa perspectiva de educação tenha certamente contribuído para desestabilizar a noção de currículo e práticas escolares como neutras, apolíticas, ela é passível de críticas. Em primeiro lugar, é preciso considerar que os processos de dominação nunca são totalmente eficientes, nem sequer inexoráveis: eles envolvem “mecanismos complexos e forças, reações e implicações multifacetadas” (Canagarajah, op. cit.: 25). Em segundo, não se pode desconsiderar que os alunos não são meros robôs: eles chegam à escola com uma relativa consciência da posição que ocupam na assimetria social e do modo como os valores culturais da escola não coincidem, muitas vezes, com os valores de suas próprias culturas. Afinal, a experiência humana “é tão suficientemente complexa e indeterminada, que acaba pondo por terra as determinações impessoais de qualquer instituição” (Canagarajah, idem, ibidem). É, portanto, um equívoco, segundo o mesmo autor, considerar que os grupos subalternos são sempre acomodados e passivos.

E há, ainda, um terceiro ponto a ser contemplado: o modelo reproducionista de educação pressupõe que as ideologias e os discursos dos indivíduos que pertencem aos grupos dominantes sejam monolíticos, mas eles não o são: há neles, com freqüência, multiplicidade e contradição. É preciso, portanto, complexificar a questão,

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Segundo Canagarajah (op. cit), as teorias da reprodução foram firmadas tendo por base, principalmente, a crítica da ideologia de Althusser e a crítica cultural de Bourdieu e Passeron

porque a dominação não está, nunca, garantida (Canagarajah, op. cit.: 26 e da Silva, op. cit.: 49).

Mais em sintonia com as perspectivas pós-estruturalistas, o segundo modelo apregoa, em contrapartida ao primeiro, que as inúmeras contradições no interior das instituições escolares permitem que os sujeitos se tornem, em muitos momentos, não meros reprodutores da ordem social, mas agentes de desestabilização dessa ordem. Apoiado em Freire (1970), Apple (1979) e Giroux (1983, 1986), da Silva (op. cit.: 53) afirma que as teorias da resistência buscaram apresentar “uma alternativa que superasse o pessimismo e o imobilismo sugeridos pelas teorias da reprodução”. Porque os processos educativos são terrenos disputados em termos de significações,

“(...) existem mediações e ações no nível da escola e do currículo que podem trabalhar contra os desígnios do poder e do controle. A vida social em geral e a pedagogia e o currículo em particular não são feitos apenas de dominação e controle. Deve haver um lugar para a oposição e a resistência, para a rebelião e a subversão.” (da Silva, idem, ibidem).

Levando em conta as considerações apresentadas nesta seção, importa, então, ressaltar que, muito embora a política lingüística do país tenha imposto às suas minorias lingüísticas um sistema educacional monolíngüe (Cavalcanti, 1999), esse monolingüismo escolar pode ser contestado nas práticas do cotidiano. Neste trabalho de tese, interessa, como já afirmei de outro modo, focalizar mais de perto os modos como alunos surdos fazem frente à ordem sociolingüística monolíngüe (Favorito, 2006) que caracteriza a escola inclusiva que freqüentam.

3.3 ESQUEMA DE PARTICIPAÇÃO/ INTERAÇÃO NA SALA DE AULA DE UMA