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CAPÍTULO 2 – VOLTANDO O OLHAR PARA O CAMPO DE INVESTIGAÇÃO

3.3 Esquema de Participação/ Interação na Sala de Aula de uma

3.3.2 Não participamos porque não entendemos

Observei que a dificuldade decorrente da ausência de uma língua comum entre surdos e ouvintes impediu, em inúmeras instâncias, a participação plena dos alunos surdos nas interações sociais ocorridas na sala de aula examinada:

Nota de diário de campo 1 – O que está acontecendo?

Um aluno chega trazendo material de limpeza para limpar uma carteira que continha um desenho obsceno e um palavrão. A professora vai limpar a carteira e vários alunos a seguem até a mesma. Helena vai também. Ana olha para Renato e, com o olhar e um gesto das mãos, pergunta ao colega o que está acontecendo. Renato, com um gesto e um balançar da cabeça, responde que não sabe o que está ocorrendo. Ambos ficam em suas respectivas carteiras e não participam do evento.

Como se pode ver, Ana e Renato, alunos com um grau de surdez profunda e que se comunicam em língua de sinais e em português escrito, não conseguem entender o que está ocorrendo. Os registros revelaram que esses alunos se arriscavam muito pouco durante as interações em sala de aula e se comportavam, naquele contexto, de maneira bastante discreta. Nesse caso específico, diante do alvoroço que estava ocorrendo, eles escolheram permanecer em suas carteiras, optaram por não se aproximar do local para ver o que estava acontecendo, ao contrário do que outros alunos fizeram.

Nesse momento, percebe-se que a surdez profunda faz com que eles tenham o comportamento de um estrangeiro em sala de aula que, por não compreender a língua que está sendo utilizada, não entende o que está se passando e se mantém a parte dos acontecimentos. Podemos considerá-los outsiders – termo usado por Elias & Scotson (2000) para denominar o tratamento dado às pessoas que não se inserem nos grupos hegemônicos32. Referindo-se às pesquisas de Elias & Scotson, Silva (2005) comenta:

“Guardadas as diferenças, pode-se fazer um paralelo entre esses estudos e a frágil situação dos alunos surdos dentro da escola regular. Há pontos comuns como, por exemplo, os problemas escolares dos surdos, vistos como algo inerente à surdez, e, por isso, como algo grave que os separa do grupo de ouvintes. Pode-se dizer então que eles são vistos como forasteiros dentro do espaço escolar se comparados ao grupo de alunos ouvintes (os ‘estabelecidos’) que são identificados com o grupo social majoritário, com os quais os professores estão mais acostumados e já sabem como lidar – enquanto os surdos representam o novo e o diferente e, por isso mesmo, assustam e incomodam dentro da estrutura escolar.” (Silva, op. cit.: 183).

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Esses autores compararam os moradores de assentamentos na comunidade de Wiston Parva para descreverem o modo como as famílias antigas dessas localidades – os “estabelecidos” – posicionavam-se como naturalmente superiores aos seus novos residentes – os outsiders.

Elias & Scotson (op. cit.)constataram ainda que, depois de algum tempo, os recém- chegados, por força das estratégias de exclusão empregadas pelos “estabelecidos”, pareciam aceitar, com uma espécie de resignação e perplexidade, a idéia de que pertenciam a um grupo de menor virtude e respeitabilidade. Também fazendo referência aos estudos desses autores, Favorito (2006:215) explica que, sem “o capital do português oral”, muitos surdos introjetam a representação da surdez como um problema que impede a sua inserção nos acontecimentos escolares.

É muito provável que Ana e Renato tenham, de tal modo, interiorizado a noção de que a ausência da língua portuguesa em sua modalidade oral é um impedimento total para a sua inserção nos esquemas participativos da sala de aula que, em muitos momentos, nem sequer tentavam deles participar. Eles poderiam, por exemplo, ter se aproximado do grupo e perguntado, por escrito, o que estava acontecendo (como apresentado no Excerto 22, Capítulo 4). Não o fizeram, no entanto. Preferiram se isolar – afinal, não se passa incólume pela experiência de ser rotulado pelos outros como ‘incapaz’ de interagir socialmente33.

Helena, por sua vez, provavelmente por ter uma surdez leve e ser oralizada, sente-se, na cena descrita, mais autoconfiante. Embora fale com dificuldade e de forma bastante estigmatizada34, possui, de certa maneira, o capital a que Favorito (op. cit.) se refere e,

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Importa deixar claro que, com esse comentário, não pretendo fazer coro ao argumento de uma professora-sujeito da pesquisa conduzida por Cavalcanti & Silva (2007): “já que o surdo não fala, podia ao menos escrever”. Essa professora esperava que, por meio da escrita, o ‘impedimento lingüístico” do surdo fosse minimizado, tornando mais confortável a posição do ouvinte. Não é esse meu ponto de vista. Estivessem Ana e Renato em uma sala de aula em que a língua de interação social comum a todos fosse LIBRAS, eles, evidentemente, poderiam, exercendo o que deveria ser direito lingüístico de todo cidadão (Hamel, 2003): fazer uso de sua língua natural para descobrir o que estava acontecendo. Mas, como esse não é o caso, fica a questão de por que razão os alunos em questão não lançaram mão de um recurso comunicativo (a escrita) que ambos tinham à sua disposição.

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O português oral de Helena traz, em si, as marcas de sua surdez. A pronúncia, a entoação e o ritmo de sua fala não correspondem àqueles do português oral de falantes nativos dessa língua e, por isso mesmo, seu uso de português oral é alvo de estigma. Em uma determnada ocasião, pude presenciar o fato de o português oral dessa aluna surda ter sido alvo de comentários jocosos por parte da professora de inglês. Porém, é interessante lembrar que os falantes de outras línguas (inglês, francês, espanhol, etc.) também apresentam ritmo, entoação e pronúncia diferentes do português. Mas o sotaque do estrangeiro é aceito com mais

por isso, busca participar, como os outros alunos ouvintes, da interação, não se posicionando como outsider, apesar de seus interagentes, em alguma medida, considerarem-na como tal.

Ter observado e posteriormente analisado a diferença de comportamento interacional de, por um lado, Ana e Renato e, por outro, Helena, evidenciou a impossibilidade de tomar os surdos como grupo homogêneo. Embora minhas fontes teóricas já me avisassem sobre isso, confesso que, logo no início das minhas observações e da análise dos registros gerados pela pesquisa que deu origem a esta tese, não prestei a devida atenção, em mais de um momento, ao fato de que o grau de surdez do interagente surdo, o fato de ele/ela ser, ou não, oralizado(a), a sua própria personalidade e história familiar afetavam, significativamente, a natureza das interações entre cada um dos alunos surdos e o grupo de ouvintes. Quando assim procedia, tendi a generalizar situações e a ignorar particularidades, o que me obrigou a refazer várias análises. Silva, já em 2005, relatava a dificuldade que é, para o pesquisador, desvencilhar-se da representação da surdez como um traço suficiente para uniformizar todo um conjunto de sujeitos bastante diversos entre si:

“Essa questão me angustiou durante todo o transcorrer da pesquisa por colocar em xeque, também, minhas próprias representações em relação ao surdo que em muitos momentos eram semelhantes àquelas que condenava nas vozes dos professores e dos pais. Não há uma resposta única, mas várias histórias que constroem de maneira diversa, embora com um componente semelhante, a perda auditiva, levando o aluno surdo a caminhos diferentes, posturas e expectativas também diferentes a depender de

como os atores vivem o seu cotidiano.”35 (Silva, 2005: 259-260)

estrangeiro e ainda nos incomodamos com o falar do surdo? Por que uma professora de uma língua estrangeira se refere à fala de Helena como “aquela fala esquisita e difícil de entender”? Tudo isso pode ser o indicativo de que o que nos chama a atenção no surdo, ainda, é o déficit, a deficiência.

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Minha intenção ao trazer essa questão novamente é mais uma vez alertar a todos que conduzem investigações no campo da Educação e Surdez para quão improdutivo, do ponto de vista da produção do conhecimento, é considerar os sujeitos surdos como uma coletividade homogênea. Levando em conta, além disso, o fato de meus registros terem demonstrado que tampouco os ouvintes se comportavam, todos eles, da mesma maneira quando interagiam com os alunos surdos – ouvintes também não podem ser tomados como um grupo monolítico – o que importa é atentar para o risco, sempre tão presente, de nos deixarmos aprisionar pela lógica binária que coloca surdos e ouvintes como totalidades fechadas. Tal lógica “não nos permite compreender a complexidade dos agentes e das relações subtendidas em cada pólo, nem a reciprocidade das inter- relações, nem a pluralidade e a variabilidade dos significados produzidos nessas relações”, como alerta Fleury (2003: 24, apud Maher, 2007a: 90).

Considero que a análise da Nota de diário de campo 1 é importante para demonstrar que, da mesma forma que em muitas outras escolas inclusivas, também na escola aqui focalizada, vários alunos surdos tendem, em muitos momentos, a se isolar, conforme também aponta Cavalcanti (1999), a se posicionarem como outsiders. Como o que é conhecido e vem sendo amplamente denunciado na literatura especializada é fato no contexto analisado, interessa-me fazer coro a outros pesquisadores e não apagar a sua ocorrência, embora me concentre em analisar, mais de perto, as estratégias empregadas pelos atores envolvidos para lidar com a dificuldade de comunicação, de transpor a barreira lingüística representada pela utilização de línguas diferentes.