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CAPÍTULO 2 – VOLTANDO O OLHAR PARA O CAMPO DE INVESTIGAÇÃO

3.3 Esquema de Participação/ Interação na Sala de Aula de uma

3.3.1 Socializar é bom

Importa, inicialmente, deixar claro como a professora sujeito da pesquisa percebe a inclusão de alunos surdos no sistema regular de ensino29:

Excerto 1 – “Eles são conhecidos pelo nome.”

Sabe o que eu acho? Que esta inclusão é boa por causa da socialização. Eu sou a favor da inclusão porque vivenciei os dois momentos. Quando eu ministrava aulas, no Rio de Janeiro, havia uma classe especial, onde eram mantidos os alunos deficientes. E o máximo que os professores dos normais faziam era tomar conta, de vez em quando. Mas tinha, assim, aquele medo. Hoje não, ninguém se refere aos alunos surdos como “os mudinhos”. Eles são conhecidos pelo nome.

Entrevista - 29/04/04

Como se pode observar, o discurso da professora se insere na linha de argumentação de autores que apontam a interação social entre sujeitos surdos e ouvintes como uma das justificativas para a inclusão escolar dos primeiros (Loureiro, 2006; Rocha, 2005, e Klein & Lunardi, 2006). Para a professora, é justamente a possibilidade dessa interação social no espaço escolar que permite que se perca o medo dos surdos e que se passe a conhecê-los por seus nomes. Dito de outra maneira, a escola inclusiva não apenas permitiria a interação social entre ‘normais’ e ‘deficientes’, mas também daria aos surdos referencialibidade, o que nos remete a uma passagem de uma identidade homogênea e coletiva, enunciada em “mudinhos”, para uma identidade heterogênea e

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individual, enunciada em “Eles são conhecidos pelo nome”, que faz, dos sujeitos surdos, sujeitos histórico-sociais.

Cabe chamar a atenção para o medo explicitado pela Professora Vera. Ela fala do medo que os professores dos “normais” tinham do contato com o surdo, medo este que se tem quando nos defrontamos, primeiramente, com a ameaça apresentada por aqueles que, porque deficientes, têm de “ser mantidos” em classes especiais, tal qual em prisões. Medo também que se tem quando se está longe do outro, daquele que é considerado diferente, daquele que não se conhece, porque esse outro está sempre segregado em “classes especiais”. O distanciamento desse desconhecido, de quem, no máximo, “tomamos conta de vez em quando”, que visitamos vez ou outra, por obrigação ou piedade, tal qual a prisioneiro, faz apenas com que, dele, sintamos medo.

Devo apontar que os enunciados da Professora Vera vêm se somar às falas de professores que compõem a Figura 1, que apresentamos no Capítulo 2 desta tese, e que fornece uma visão geral do quanto muitos professores estão perdidos com a inclusão dos surdos nas escolas públicas. Embora, conforme seu depoimento, este não seja mais o caso da professora em questão, além de posturas equivocadas, de dúvida, de piedade, há professores que ainda têm medo dos alunos surdos.

Lembro que Paulo Freire (2002:39) afirma que existe uma relação entre medo e dificuldade:

“Há sempre uma relação entre medo e dificuldade [e] sujeito que tem medo do difícil ou da dificuldade. Nesta relação entre o sujeito que teme a situação ou objeto do medo, há ainda outro elemento componente que é o sentimento de insegurança do sujeito temeroso. Insegurança para enfrentar o obstáculo.”

O autor afirma que a questão não é negar o medo que, muitas vezes, é concreto. A questão é não permitir que ele nos paralise ou tenha êxito em nos fazer desistir de

enfrentar a situação desafiadora sem que, pelo menos, tenhamos lutado ou nos esforçado para superá-la. Com essas reflexões, o autor sublinha que:

“(...) o difícil ou a dificuldade existe sempre em relação à capacidade de resposta do sujeito que, em face do difícil e da avaliação de si mesmo quanto à capacidade de resposta, terá mais ou menos medo.” (Freire, op. cit.:40).

Assim, é o fato de os ouvintes se auto-avaliarem como incapazes ou pouco capazes de socializarem, interagirem com o surdo que provoca o medo.

Pelo que podemos depreender de sua fala, a Professora Vera demonstra que, apesar desse medo ter existido no passado – quando era somente professora dos “normais” – ela o enfrentou e teve êxito em superá-lo. Nesse caso específico, constato que a inclusão, enquanto fato que foi imposto pela política governamental, foi ‘boa’, pois fez com que a professora em questão mantivesse contato diário com os surdos, que superasse o medo de com eles socializar e passasse a vê-los como sujeitos, pessoas que são conhecidas e reconhecidas como tal porque têm nomes e, portanto, participando do mundo das palavras, ditas ou sinalizadas, têm identidades próprias.

Vejamos, então, como se dá, lingüisticamente, a interação social entre surdos e ouvintes na sala de aula em questão. Para facilitar a compreensão da análise que segue, apresento um quadro-resumo da configuração do bilingüismo30 observado na sala de aula de língua portuguesa em que foram gerados os registros primários da pesquisa:

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Estamos utilizando, aqui, a expressão ‘Língua 1’ (L1) para designar a língua natural cuja aquisição ocorreu em primeiro lugar e que é prioritariamente utilizada pelos sujeitos de pesquisa no contexto analisado e a expressão ‘Língua 2” (L2) para nomear aquela posteriormente adquirida e que não é tão freqüentemente utilizada por eles. Além disso, cabe esclarecer que estou levando em conta, aqui, apenas o português e a língua de sinais, não considerando, portanto, outras ínguas estrangeiras. É possível e, mesmo provável, que haja, no contexto pesquisado, indivíduos bilíngües, no sentido de que têm o português como L1 e o inglês, a língua estrangeira dominante no cenário escolar, ou mesmo outra língua estrangeira,

Sujeitos Característica Configuração do Bilingüismo Ana

Kátia Renato

Surdez profunda L1 – língua de sinais L2 – português (escrito)

Helena Surdez leve

Érica Ouvinte

L1 – português (oral e escrito) L2 – língua de sinais

Ao considerarmos os alunos que apresentam surdez profunda – Ana, Kátia e Renato – entendemos que sua L1 é a língua de sinais, pois a utilizam para se comunicarem entre si e com outros usuários dessa língua, assumindo o papel de interlocutores nas trocas comunicativas. O português escrito é, então, sua L2, já que é utilizado apenas para se comunicarem com os ouvintes, seus interlocutores secundários, e para desenvolverem tarefas escolares.

De outra parte, entendo que Helena, que apresenta surdez leve, por ter sido primeiramente oralizada em português e ter aprendido posteriormente a língua de sinais, tem o português como L1 e a língua de sinais como L2, cabendo ressaltar, no entanto, que ‘transita’ com muita tranqüilidade entre as duas línguas. Érica, por sua vez, ouvinte, tem o português (oral e escrito) como L1, pois o adquiriu primeiramente e o utiliza prioritariamente para estabelecer trocas comunicativas com seus interlocutores primários – os ouvintes – sendo usuária de língua de sinais (que aprendeu com Helena) como L2, já que a adquiriu posteriormente e a utiliza para se

comunicar apenas com os alunos surdos, seus interlocutores menos freqüentes no dia-a-dia. Já os demais sujeitos da pesquisa, podem ser considerados monolíngües31.

Como era de se esperar, a configuração do bilingüismo – e, portanto, das possibilidades de interação social – é primariamente determinada pela ausência/ presença de surdez bem como, no segundo caso, pelo grau de surdez dos sujeitos, que determina o domínio ou não da modalidade oral do português pelos alunos surdos. Assim, enquanto todos os sujeitos de pesquisa utilizam a modalidade escrita do português (como L2 para os alunos com surdez profunda e como L1 para os demais), somente os ouvintes e Helena, que apresenta surdez leve, são usuários de sua modalidade oral, o que configura para a última maiores possibilidades de interação social. Também Érica, por utilizar LIBRAS como L2, apresenta maior potencial de interação social.