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A escola: um meio de ascensão?

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 186-189)

Quando Carmosina chegou a salvador, era analfabeta, não sabia ler e nem escrever. após ingressar no emprego doméstico remunerado, começou a estudar. naquela época, Carmosina tinha 17 anos de ida- de. atualmente, cursa o 3º ano Colegial numa escola pública da cidade, segundo seu depoimento, cursou o ensino médio da 5ª a 6ª e da 7ª a 8ª séries, juntas, respectivamente, na chamada classe de aceleração. isto lhe possibilitou “adiantar” o seu estudo. Como boa parte das entre- vistadas e de acordo com dados oficiais,54 as trabalhadoras domésticas

quando estudam, o fazem a noite. Carmosina não fugiu à regra, disse- -me que o trabalho doméstico não lhe permite estudar em outro turno:

Eu moro na casa dos outros [dos patrões] e as vezes não tenho tempo de estudar direito, porque quando a gente está estudando aí o patrão chega e diz: “vamos acabar logo com este estudo porque tem que cozinhar, lavar, passar, [...] estudar de noite é péssimo e quando a gente chega do colégio e quer estudar a patroa diz:-‘tem que limpar a cozinha, tem que fazer o café’- aí quando vou ver o horário, já foi!

além disso, relatou-me que há muitas trabalhadoras domésticas na escola em que estuda. entretanto, segundo seu relato, muitas delas não assumem a profissão: têm muitas colegas que têm vergonha de dizer que

são domésticas, muitas não assumem que trabalham em casa de família.

ao relatar tal fato, Carmosina menciona a discriminação social exis- tente na escola e em outros espaços sociais. Falou-me que o rótulo de doméstica é tão estigmatizado que muitas “meninas” preferem não

54 De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e tam- bém com dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 2002, a rotina do trabalho doméstico torna-se incompatível com a educação formal, retarda a en- trada das meninas e adolescentes na escola ou quando estas conseguem estudar, o fazem mais tarde. Na região metropolitana de Salvador, a média da frequência escolar é de 92%, quando se trata de serviço doméstico, este percentual cai para 50%. Vejam estes dados na Revista Maria, Maria [19--?].

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assinar a carteira de trabalho para não “sujar” sua identificação profissio- nal. Uma das maneiras encontradas pelas trabalhadoras domésticas para fugirem do estigma é negarem a identidade profissional, princi- palmente, no ambiente escolar.

Perguntei a Carmosina se ela também negava sua identidade pro- fissional na escola em que estudava. Contou-me que, diferentemente de suas colegas, assumia sua profissão, pois o que lhe importava so- cialmente era garantir a oportunidade de estudar: eu quero é chegar lá

com a minha força de vontade e passar por cima da vergonha [de ser trabalhadora doméstica], eu não acho nada de mais trabalhar em casa de família.

durante o relato de Carmosina, percebi a angústia com que descre- via as dificuldades encontradas na escola noturna. se a educação para ela é “uma porta de saída” do trabalho doméstico, assim como o é para outras trabalhadoras domésticas entrevistadas, a educação pública, nesse caso, não oferece as condições mínimas de mobilidade social desejada. a própria Carmosina relata:

Eu acho que o ensino à noite é péssimo; falta professor, a gente vai estudar, aí não tem aula, aí a gente volta para casa de novo, As vezes eles [os professores] dão um tra- balho rápido para a gente fazer e quando a gente diz que não está aprendendo nada, eles falam que é assim e diz que é culpa do governo [...] Aí o professor diz se a gente quiser ser alguma coisa tem que correr atrás, mas como? Sem falar na bagunça, os alunos não deixam a gente es- tudar, aquelas pessoas que querem alguma coisa [...] Por isso que eu digo, eu vou votar em Lula, porque ele vai ver os direitos do pobre que passa fome e de nós preto.

vê-se a importância que a educação tem para os grupos historica- mente excluídos ou subalternizados. Bourdieu já sinalizava para esse fato entre a população pobre e imigrante na França. no caso do Brasil, há raros estudos que mostra a mobilidade entre as trabalhadoras domés- ticas. de certo, que nos relatos das mulheres trabalhadoras analisadas,

com exceção de uma ativista, nenhuma delas obteve mobilidade. no entanto, as entrevistadas que não são trabalhadoras domésticas conseguiram estudar e escolher outra profissão por meio do trabalho doméstico de suas mães/avós, das estratégias familiares e das redes de ajuda.de acordo com a pesquisa de lima (1995), baseada nos dados do Pnad de 1990, no Brasil, boa parte das mulheres negras (pretas e pardas) estão inseridas no serviço doméstico, 48% das mulheres pretas e 30,5% das pardas estão no estrato manual baixo. entretan- to, quando se analisa e compara a sua inserção em outras ocupações no estrato não manual alto, com a escolaridade de outros grupos ra- ciais e sexuais, lima (1995, p. 495) chega a seguinte conclusão:

o mesmo padrão é apresentado para as mulheres negras. Comparativamente, elas estão em desvantagem tanto em relação aos homens de seu grupo de cor, que conse- guem uma maior representatividade no estrato não ma- nual alto, quanto em relação às mulheres brancas, apesar destas apresentarem diferenças significativas em relação aos homens brancos. as mulheres brancas representam 43,4% nesse estrato, enquanto que as pretas e pardas apre- sentam percentuais de 20,5% e 38,9%, respectivamente. Mesmo com altos níveis de escolaridade, as mulheres negras não conseguem atingir as etapas de mobilidade social que normalmente são proporcionadas pelo in- vestimento em educação. a sua presença no estrato não manual baixo é importante e significativa; mas, como já foi colocado, o status desse grupo ocupacional é bastante limitado, o que dá às mulheres negras poucas possibidi- lidades de melhorar sua situação sócio-econômica como os demais grupos [...] as informações aqui apresentadas assinalam que o segmento feminino negro permanece numa situação bastante desvantajosa. o fato de 48% das mulheres pretas e 30,5% das mulheres pardas estarem no serviço doméstico é sinal de que a expansão do mer- cado de trabalho para essas mulheres não representou ganhos significativos.

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o projeto de vida de Carmosina se expressa na possibilidade de galgar um novo lugar social a partir da educação e da reivindicação dos seus direitos. isto se explicita o tempo todo em sua narrativa, quando alude categorias sociais que operam como elementos significantes em sua trajetória. a educação ganha uma centralidade na medida que ela possibilita conhecer os seus direitos sociais a gente quer estudar para

ser alguém na vida, quem não estuda não sabe dos seus direitos, realizar

o sonho de ter uma casa “própria”, um lugar que é seu, ajudar os seus familiares, mudar de profissão, desvincular-se do estigma e das condi- ções precárias do trabalho doméstico e “conquistar um lugar ao sol”. até aqui percebe-se que a trajetória social de Carmosina é muito seme- lhante a das outras trabalhadoras domésticas investigadas. apesar dos projetos de mudanças profissionais e sociais, a realidade concreta des- sas mulheres as desafia e, muitas vezes, as impede de “driblar” estas barreiras sociais. resta saber se Carmosina conseguiu “driblar” estas e outras barreiras de sua trajetória afetiva. será?

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 186-189)