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Novos cenários: novos paradigmas

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 79-82)

no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, a escola de sociologia da Universidade de são Paulo (UsP) constituiria um novo paradigma acerca dos estudos sobre as relações raciais no Brasil. os novos estu- dos sobre o negro formariam uma tentativa de desmontar os discursos anteriores que afirmavam uma suposta democracia racial ou mesmo a inexistência do preconceito racial no Brasil.

a tese dos intelectuais da UsP,30 representado por seu grande

expoente, Florestan Fernandes, forneceu novas bases explicativas: afirmava-se que no Brasil havia, sim, preconceito de cor e desigualdade social. os estudos desse grupo revelaram uma sociedade estrutural- mente hierarquizada após o processo de abolição da escravatura e a inserção do segmento negro no novo sistema competitivo.

nesse bojo, as abordagens acerca das relações afetivo-sexuais entre negros e brancos ganhariam uma outra roupagem. tal aborda- gem refutou a tese de que as relações conjugais/afetivas ou sexuais entre pessoas de “raças” diferentes “suavizaram” as desigualdades raciais no Brasil, no período escravocrata e na sociedade moderna.

Para comprovar essa tese, Florestan Fernandes (1978) estudou a nova ordem social competitiva e demonstrou que esta havia deses- tabilizado socialmente o negro em todos os seus aspectos. assim, o comportamento sexual e afetivo das pessoas de cor seria fruto de uma herança cultural escravista, que foi se desestruturando no pro- cesso de escravização da mão de obra e com o advento da sociedade industrial moderna.

na obra do autor, isso se explicita nos vários tipos de arranjos familiares e nas relações afetivas apontadas nesse período – a predomi- nância da família negra “incompleta”, constituída só pela mãe solteira, filhos e outros, secundariamente, no “amasiamento” dos “casais de cor” e, por último, as uniões sancionadas legalmente –, cujo compor- tamento sexual e afetivo dos negros expressava a “debilidade dos laços

30 Referimo-nos aos seguintes autores: Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Viotti da Costa, Octávio Ianni e outros.

sociais [de família], a desorganização imperante no meio negro”-, gerada por uma ausência dos canais de socialização e solapadas pela es- cravização e a modernização.

no bojo de sua explicação, Fernandes observou que a mulher ne- gra seria a grande base de sustentação da família negra. sozinha seria a responsável (a chefe) pela sustentação econômica e educação dos filhos. afirma que, no plano sexual e afetivo, as mulheres negras sofre- ram a penúria, a humilhação e a infelicidade por ter relações amorosas transitórias, não estáveis. as suas experiências afetivas com homens negros e brancos seriam frutos da desorganização social do “meio negro”. assim, prostituição, alcoolismo, poligamia e abandono se- riam fatores anômicos do modo de vida da “população de cor”.

Fernandes demonstrou que as relações afetivas entre pessoas da mesma “cor”, como pessoas de “cor” diferentes, não constituem uma “confraternização dos sexos” e, sim, uma hierarquia que produz conflitos, tanto do ponto de vista da raça, quanto do ponto de vista do gênero. o abandono, a solidão entre as mulheres negras seria fruto dessa tensão social que as associa ao sexo, às relações transitórias, ao “amor físico”, afastando-as dos projetos de vida “conjugal” e do amor “verdadeiro”. segundo Fernandes (1978, p. 207):

a solidão, a penúria e a humilhação marcavam o caminho seguido pela mulher que tivesse a coragem indomável de ficar com o ‘fruto de suas fraquezas’ e de lutar pela sua so- brevivência. os próprios parentes, apenas eventualmente, podiam ‘auxiliá-la’ com algum dinheiro ou confortá-la com algum ‘conselho’. Mesmo nas ‘maiores aflições’, quando ela via, desesperada, seu destino renascer na filha, ‘infeli- citada’ por algum branco ou por algum namorado ou vi- zinho da mesma cor, eles não sabiam senão condena-la por deixar ‘a menina largada’.

embora esse trabalho seja uma importante obra de referência para os estudos sobre afetividade entre negros no Brasil, não poderia deixar

80 ana cláudia lemos pacheco

de destacar algumas críticas às suas formulações 31, tais como a rigidez

teórica e explicativa pela qual se procurou classificar os arranjos fami- liares a partir do modelo dominante (a família imigrante europeia) sem perceber a sua mutabilidade histórica. da mesma forma, observou-se o comportamento sexual e afetivo da “gente de cor” como “desviantes” e fruto de uma situação “patológica” e “anômica” em relação ao com- portamento social dos imigrantes europeus, considerado normativo. tal perspectiva, também, percebia as práticas afetivo-sexuais da po- pulação negra como “promíscuas”, reproduzindo, assim, estereótipos preconceituosos e eurocêntricos em relação à família dos descenden- tes de africanos brasileiros.

todavia, a grande contribuição do estudo de Fernandes foi refutar a tese freyreana da democracia racial brasileira, demonstrando que esta é um mito, um falseamento ideológico da realidade. outro aspecto foi com relação à discussão das “famílias parciais da gente de cor”, confir- mando os trabalhos dos autores das décadas de 1930-1950, acerca do matriarcado negro no Brasil e seus aspectos raciais, de gênero, classe e mobilidade social.

além disso, Fernandes apontou para o problema da poliginia no “meio negro”como elemento negativo e reforçador da constituição das famílias negras parciais, das mulheres negras sem parceiros. estas eram abandonadas pelos seus companheiros, “os homens de cor” que viviam os ditames do desemprego e da marginalidade da nova ordem social, relegando às mulheres negras a “solidão” e a tarefa árdua de lutar pela sobrevivência dos filhos .

Paradoxalmente, essa abordagem acreditava que o racismo tende- ria ao desaparecimento com o desenvolvimento da nova ordem social competitiva e que os negros e os “mulatos” se “ajustariam” a nova lógica acumulativa, principalmente, por meio de mecanismos de ascensão social.

31 Refiro-me aos limites do modelo explicativo da obra de Florestan. Ver esta crítica detalhada em Robert W. Selenes (2000).

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 79-82)