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O Movimento social

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 126-131)

dandara iniciou sua militância política, muito cedo no movimento estudantil secundarista. no ginásio, participou das primeiras mani- festações políticas do movimento em defesa da escola pública. nesse movimento, conheceu muitas lideranças do sindicato dos professores, secundaristas, de partidos de esquerda. segundo ela, as lideranças (femi- ninas) lhe ajudaram a superar as dificuldades financeiras. Contou-me que, nesse período, no ginásio, muitas vezes, não tinha dinheiro, “um tostão” para se deslocar de condução de sua casa até á escola. vivia “de traseira na traseira do ônibus) para conseguir chegar na escola. outras vezes, trocava vale escolar por produtos de higiene pessoal, como desodorante, sabonetes etc. ao conhecer lideranças femininas no “mo- vimento a favor da escola pública”, abandonara o trabalho doméstico e o “jogo de bicho”. Passou, um tempo, só estudando e militando nesse movimento, sobreviva da solidariedade dessas mulheres.

em 1987, passou a fazer parte da juventude socialista, aproximan- do-se do Partido Comunista do Brasil. de 1987 até 1992, dandara foi dirigente do grêmio estudantil de uma grande escola pública de salva- dor. neste ínterim, também foi dirigente da União Metropolitana de estudantes secundaristas de salvador (UMes). a sua trajetória desde cedo foi marcada pelo ativismo político. no movimento estudantil, dandara passou a conhecer pessoas do Movimento negro organizado. segundo ela:

Em 1991 eu tive o primeiro contato com o MN (Movimento Negro). Mesmo em 1988 quando a UNEGRO (União de Negros pela Igualdade) foi fundada, eu me aproximei [...], mas, por algum motivo, naquela época não era impor- tante para mim a questão racial, eu só pensava em Lênin, Marx e tal, era um movimento [estudantil] sem cor e sem cara feminina.

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em 1991, dandara participou do primeiro encontro nacional de entidades negras realizado em são Paulo.38 nesse encontro ela inicia

sua inserção no movimento negro organizado da Bahia, de acordo com seu depoimento:

Quando eu cheguei em S.Paulo e vi o Pacaembu com pes- soas negras do Brasil inteiro, aquilo deu uma coisa em mim, quando eu voltei para a Bahia, PcdoB, UJS (União da Juventude Socialista) não me diziam mais nada.

nesse mesmo período, dandara se aproximou do Movimento de Mulheres negras brasileiras. (PaCheCo, 2002; riBeiro, 1995; Moreira, 2007) em 1991, participa do ii encontro nacional, reali- zado em salvador, no qual eu também participei. em 1992, ela ingressa no Coletivo de Mulheres negras de salvador, que surgiu como um desdobramento do encontro nacional. de 1993 a 1995, como assina- lei anteriormente, dandara ganhou uma bolsa de estudos e viveu um período na europa. Quando retornou para o Brasil, ainda em 1995, passou a atuar no Fórum estadual de Mulheres de salvador.39 Foi

como participante, também, desse Fórum que eu tive oportunidade de conhecê-la mais de perto.

de lá para cá, dandara tem tido uma atuação constante no Movi- mento de Mulheres, mas foi em 1998 que sua adesão ao Movimento negro e de Mulheres negras se deu de forma mais definitiva. segun- do ela:

Em 1998, depois que voltei da Haward, uma Universi- dade negra (norte-americana) minha cabeça fez zuuump (fala em tom alto), eu me aproximei de pessoas como L... e V... (lideranças antigas do MN) e aquela conversa foi de- finitiva para mim, inclusive sobre a minha afetividade.

38 Sobre um histórico dessa articulação política do Movimento Negro brasieliro na dé- cada de 1990, ver o estudo de Dantas, Paulo Santos. Construção de identidade negra e estratégias de poder: o movimento negro sergipano na década de 1990.

39 Era um Fórum geral que reunia mulheres de várias entidades do movimento social e mulheres “independentes”, sem filiação partidária.

É importante destacar a importância que a política tem no ordena- mento da percepção de mundo para as mulheres analisadas, sobretudo, para as militantes do Movimento negro. o exemplo disso é a lingua- gem corporal. refiro-me às mudanças empreendidas nas técnicas do corpo,40 como o cabelo, a roupa, as indumentárias, a estética e outras

práticas culturais. entre estas práticas, a religião tem um papel funda- mental na linguagem corporal e no reordenamento do mundo. não é à toa que nas vestes de dandara e das outras entrevistadas os símbolos da religião-afro têm como referência os deuses africanos do Candomblé.

além disso, o Candomblé passa a ser uma dos referenciais im- portantes de identidade étnico-racial para a maioria dos militantes do movimento negro, principalmente para boa parte das ativistas negras investigadas. “ser negra” significa assumir por completo todos os referenciais de africanidade; é quase um ritual obrigatório o culto à re- ligião-afro, sobretudo neste momento em que a intolerância religiosa contra os terreiros de Candomblé por adeptos do protestantismo tem sido algo recorrente de denúncia do “Povo de santo” e do movimento negro baiano atual.

Quando dandara fala de seu novo modo de vida, inclusive na for- ma em lidar com o outro, refere-se a estes símbolos de uma “pureza africana”. segundo seu depoimento:

Depois que eu ingressei no partido comunista, movi- mento social, eu me afastei completamente (do Can- domblé). Achava que isso não era importante e eu nem debatia. O movimento negro refez todo o caminho, e no movimento de mulheres negras muito mais, eu acho que não tem a possibilidade de você ser negra na integridade sem você estar num terreiro de Candomblé, porque é o único lugar onde podemos ser livres, é o único lugar onde podemos ser 100% negros.

40 Esta expressão techniques du corps é utilizada por Mauss (2000, p. 376) e refere-se a “montagens física-psico-sociológicas de séries de atos que são mais ou menos hábi- tos culturais mais ou menos antigos na vida do indivíduo e na história da sociedade”.

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no caso de dandara, essa mudança se deu justamente no momen- to em que sua inserção no movimento negro e de mulheres negras foi percebida como um deslocamento de sentidos. lembro-me que quando conheci dandara ela não atuava ainda no Movimento negro e nem no de Mulheres negras, sua indumentária não tinha quaisquer referenciais (com exceção do seu cabelo dready, já que sempre usou cabelo natural) aos símbolos religiosos africanos, ao contrário, como ela mesma afirma: eu me empacotava com blazer, com calça, com salto

alto, a roupa argolada, eu usava sempre tons pastéis [cores claras], hoje, eu uso amarelo, vermelho, rosa, dia de quarta-feira eu boto meu verme- lho [dia de Iansã].41

Considero importante registrar as mudanças simbólicas ocorridas na trajetória política e social de dandara porque estas são elementos norteadores da forma como esta vai se relacionar com o mundo e com seus parceiros/as afetivos. a construção da etnicidade/religiosida- de irá influenciar diretamente nas escolhas amorosas, se pensarmos que as relações amorosas vão se dar dentro do campo do movimen- to negro ou pelo menos no campo em que as pessoas compartilham desses mesmos ideais. Com isso, não estou afirmando que sempre foi assim, mas o leque de expectativas afetivas do ponto de vista das ati- vistas analisadas, têm como filtro os parâmetros ou tipos ideais do que seja uma pessoa negra e de como esta ou estas devem se relacionar, com quais parceiros, e se estes atendem às expectativas desse grupo (das mulheres) nesses espaços. aquelas pessoas que não cumprem a regra instituída pelo próprio grupo sofrem tensões e punições como nos relacionamento afetivos entre pessoas de cor e “raças” diferentes, relacionamentos inter-raciais, sobretudo, de homens negros com mu- lheres não negras e/ou militantes.

isto se observa quando dandara faz uma leitura de seu próprio passado. ao narrar a sua trajetória antes de ingressar no movimento negro, expressa-se como se tivesse punindo-se, em que sua percepção

41 No sincretismo religioso da Igreja Católica, Iansã é Santa Bárbara, seu dia é dia de quarta-feira e sua cor é o vermelho. Para maiores detalhes sobre o culto da religião afro-brasileira, ver Siqueira (1995).

de mundo estava completamente voltada para o mundo branco, eu

vivi no mundo branco. refere-se aos movimentos sociais quando não discutia nem gênero e nem raça. Com relação aos lugares sociais, dizia

frequentar lugares “brancos”, com pessoas brancas, tudo sobre a “cul- tura branca” era do seu interesse: tudo que você me perguntasse sobre

cinema alemão, sobre o teatro branco europeu eu respondia. só após a

ingressar no “mundo negro”, a partir da prática política é que dandara muda suas técnicas corporais, suas redes de sociabilidade e sua visão de mundo. vê-se que o movimento social, sobretudo o movimento negro, foi responsável por uma ressignificação constante de sua cor- poralidade de um ethos político que a religião ajudou a reconstruir.

relatou-me que nesse período, quando ingressou no movimento negro, passou a frequentar espaços considerados da cultura negra: eu

passei a ir aos ensaios do Ilê42 no Santo Antônio, eu descobri o Pelouri-

nho, o Olodum,43 que revelou Margareth Menezes (uma cantora negra

baiana) naquele festival, aquilo para mim foi um impacto na minha cabeça que era branca, branca, branca. a partir daí, suas redes de rela-

ções sociais e afetivas foram construídas nos espaços sociais de negros, expressando-se através do corpo, da indumentária, do cabelo, da prá- tica religiosa e nas redes de amizades. não é a toa que a informante refere-se as mulheres negras ativistas como minha família, minhas

amigas. dandara, como socióloga, pesquisadora e educadora, trabalha

numa instituição social que desenvolve trabalhos educativos com jo- vens afrodescendentes. Um ambiente de trabalho que é constituído, majoritariamente, por profissionais negras. sua rede de relações está interligada entre os espaços políticos do movimento negro, o espaço de trabalho e o espaço de lazer.

o movimento negro e o movimento de mulheres negras foram es- paços decisivos no curso de sua trajetória social e política; a racialização passou a fazer parte do seu universo social e, assim, suas preferências

42 Ilê Aiyê – bloco afro-carnavalesco, fundado em 1974, em Salvador – considerado como uma das grandes expressões de caráter político-cultural negro contemporâneo. Neste bloco, só participam negros. Ver Silva (2001).

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afetivo-sexuais, suas escolhas foram, também, racializando-se. Como isso aconteceu? Como foi construída sua trajetória afetiva? Como esta colaborou para a sua solidão?

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