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Do lazer ao corpo

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 191-198)

Uma estratégia metodológica utilizada para explorar um pouco mais a questão da afetividade na entrevista com Carmosina, foi adentrar

na discussão das redes de sociabilidade. entrevistando outras traba- lhadoras domésticas, percebi que o lazer se configurava como uma das redes importantes de constituir relacionamentos, encontros amorosos, amizades, sobretudo, aos domingos; dia de folga das traba- lhadoras domésticas.56 entretanto, no caso de Carmosina, o domingo

é um dia oportuno para ficar em “casa”, na casa dos patrões. disse-me ser “caseira”, prefere assistir televisão, mas os seus “patrões” não a permitem. Gosta de ouvir rádio, quando pode. Falou-me que o espa- ço da rua a assusta, devido a violência, sobretudo, a noite. não gosta de ir a praia, gosta um pouco de carnaval. Confessou-me que apesar da violência no carnaval de salvador, sai com as amigas para “dar uma olhada” nos blocos carnavalescos: esse ano eu gostei de Margareth [Me-

nezes] e Carlinhos Brown.

Perguntei-lhe se nos dias de folga ela vai ao shopping e, se vai, o que gosta de comprar? respondeu-me que gosta de comprar roupas na mão das “sacoleiras” ou então vai a um shopping bastante popu- lar. Perguntei-lhe, como gosta de se vestir? segundo alguns autores, as expressões corporais, as técnicas do corpo, revelam valores de cer- tos grupos sociais e de uma dada cultura.57 a expressão do corpo de

Carmosina revela sua simplicidade. Quando eu a entrevistei, estava vestida com uma calça jeans, simples, e uma camiseta de tom claro, discreta. esta observação confirma a sua descrição com relação aos seus valores e ao comportamento feminino e maculino:

O que eu gosto de vestir assim é uma calça, eu não gosto de usar estas roupas devassas não, eu gosto de me com- portar, eu não gosto daquelas roupas apertadinhas e vulgares, eu gosto de vestir uma saia também, mas não aquelas saias curtinhas demais. Às vezes as pessoas falam: ah! Carmosina você está parecendo uma freira, mas aí, eu falo que eu não vou andar por aí quase nua porque os homens não dão valor.

56 Duas trabalhadoras domésticas analisadas falaram que o domingo é um dia impor- tante de lazer, uma outra disse-me que aos domingos vai à Igreja (Assembleia de Deus) e uma outra disse-me que no domingo vai visitar os parentes ou vai a missa. 57 Essa concepção deve-se a Marcel Mauss (2000).

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Um elemento percebido na análise de outras trajetórias é que as trabalhadoras domésticas não-ativistas, percebem o corpo e o afeto de forma diferenciada. Para as ativistas, o corpo é um veículo impor- tante de ressignificação de valores e práticas sociais. a manipulação de símbolos da cultura negra expressam ao longo de suas trajetórias, mudanças de percepção com relação aos modelos de comportamentos femininos tradicionais, na maneira como retrabalham o corpo, o cabe- lo, assim como contrariam o modelo hegemônico racial (estético) de identificação cultural.

eu não quero afirmar que as mulheres negras investigadas que não utilizaram esses repertórios de identificação racial, sobretudo, por meio de símbolos corporais, não possam se reconhecer ou ser reco- nhecidas como negras, entretanto, não posso deixar de registrar que o corpo é um aparato importante de expressão dessas identidades cultu- rais, que não são unívocas e nem a-históricas. não posso afirmar que existe uma maneira única de ser negro/negra no Brasil, até porque esta classificação é complexa, o que consistiria numa visão reducionista e simplista afirmar que negro/negra é aquele ou aquela que necessa- riamente trança os cabelos, veste-se de uma indumentária africana, quando, na verdade, o racismo e as práticas de discriminação raciais atingem os negros/as de vários estilos estéticos e de várias segmenta- ções sociais e étnicas. Por outro lado, não se pode negar os mecanismos ideológicos perversos que estabelecem padrões de beleza estéticos e preferenciais, eurocêntricos, que subjazem comportamentos, pre- ferências, aceitação, inclusão dos grupos raciais brancos e exclusão de grupos raciais não brancos e negros na estrutura social brasileira. exemplo disso, é a exigência que se tem no plano estético do requisito da “boa aparência” no mercado de trabalho e em outros espaços sociais para homens negros e, principalmente, para as mulheres negras. a dis- cussão sobre a identidade negra é complexa, não comporta nenhum tipo de reducionismo, pois este tema é até hoje a grande problemática que envolve os estudos sobre relações raciais e cultura negra no Bra- sil. daí a complexidade de não se entender o corpo numa dimensão,

apenas, biológica, mas como um aparato político-cultural, construído socialmente. o corpo expressa as ambiguidades vividas pelos sujeitos sociais em sua relação com o contexto cultural.58

estes símbolos corporais são leituras que expressam as formas como os indivíduos se relacionam com o “outro”, no terreno da se- xualidade e da afetividade. na narrativa de Carmosina e de outra trabalhadora doméstica não ativista, não percebi essa transgressão de valores. tanto assim, que ao longo de sua entrevista, identifiquei que Carmosina, frequentemente, falava de categorias nativas que ressalta- vam a importância de valores hegemônicos.

Eu vou várias vezes à missa, a minha família é toda Cató- lica, eu sou Católica [...] eu agradeço a Deus por ser assim, porque se todo mundo fosse assim, como eu, o mundo estaria melhor, não haveria filho matando pai, pai ma- tando filho, muitas mulheres dando seus filhos para os outros criarem. Deus é que me dá forças para lutar, sem fé em Deus a gente não consegue nada.

É interessante observar como Carmosina decodifica as suas sub- jetividades. ao falar dos comportamentos masculinos e femininos, revelou-me que nunca teve relações sexuais. admite que não consegue se relacionar, afetivamente e sexualmente, com homens cujos valores não sejam iguais aos seus. a busca por um parceiro ideal e de um re- lacionamento sério e duradouro está ancorado nas suas expectativas de reprodução de um modelo hetero-afetivo-conjugal-monogâmico proveniente, neste caso, de sua origem social e cultural (pobre e do meio rural), como ela mesma reafirmou em outros momentos de sua narrativa: os meninos daqui (de Salvador) são banda voou, em contra- posição aos do interior?

Falando de moda, de vestir-se, perguntei-lhe o que mais lhe agra- dava em seu corpo? ela respondeu:

58 Sobre esta discussão no Brasil, ver o livro de Nilma Lino Gomes (2006); Munanga (2004). Para uma discussão acerca do corpo negro, ver o livro de Fanon (1983).

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Eu acho que é o meu rosto e o meu sorriso. Na verdade eu gosto do meu corpo inteiro, mas o meu sorriso e o meu rosto, porque eu não sou uma pessoa mal-humorada, eu sou uma pessoa sorridente, no trabalho todo mundo diz que eu sou sorridente, mesmo quando eu estou com problemas.

de fato, quando entrevistei Carmosina, ela recebeu-me de for- ma simpática e sorridente. Porém, o intrigante, é que em nenhum momento quando a informante fala do corpo e de sua afetividade, os correlaciona com a categoria racial; diferente das entrevistadas do primeiro grupo (ativistas) que apontavam a racialização como um dos principais mecanismos de rejeição ou aproximação dos parceiros afeti- vos. a estética corporal, a cor, o cabelo, o preconceito e a discriminação foram apontados como elementos condicionantes da preferência afe- tiva sexual dos homens negros, por mulheres de outros grupos raciais. no caso de Carmosina, o corpo tem uma outra linguagem, inscre- ve-se em outros códigos de referências culturais, transita em outros campos semânticos, como o da sexualidade, da maternidade, do com- portamento feminino e masculino, da afetividade. na escola, no lazer, na religião, esse corpo é disciplinado, como diria Foucault (1976).

todavia, no âmbito do trabalho, esse corpo é um corpo revolta- do, não é dócil. isto se evidencia quando, recorrentemente em seus discursos e em sua prática, Carmosina ressignifica o corpo através do reconhecimento dos seus direitos enquanto trabalhadora doméstica: eu antes era explorada [pelos patrões] agora eu sei dos meus direitos. no plano da afetividade, o corpo é acionado como um veículo para esta- belecer distinções de gênero – a maternidade – e a maneira de vestir-se, traduz, também, o comportamento sexual e afetivo os homens não gostam de mulheres que se vestem assim. da mesma forma, o corpo é interpretado como um instrumento de reprodução de padrões hege- mônicos, de negação ou ocultação de certas formas culturais. Pode-se dizer, que o corpo de Carmosina expressa uma trajetória social e afe- tiva complexa, regulada por marcadores de classe e gênero, acionados

em sua narrativa com os marcadores de geração (quando fala das garo- tas e dos garotos da escola) e de ocultação/negação do fator racial.

a história de Carmosina embora contenha certas singularidades, cruza-se com outras tantas histórias semelhantes e diferentes da sua. em que esta história se assemelha e se diferencia da próxima narra- tiva? É o que mostrarei em seguida. a história de uma mulher negra chamada acotirene. Quais são os elementos condicionadores de sua trajetória social e afetiva? Como raça, gênero e outros marcadores se entremeiam em sua história? Como se dinamizam? Como interferem em suas escolhas afetivas?

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 191-198)