• Nenhum resultado encontrado

O movimento negro e a academia: tensões constantes

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 169-178)

O começo mesmo... o despertar para a questão negra foi o Ilê Aiyê. A passagem dele em setenta e quatro, eu estava na rua com duas colegas minhas, e apareceu o Ilê, aí elas disseram que “coisa horrível aqueles negros de vermelho”, eu achei tão bonito, e aquilo me tocou muito, e eles come- çaram a cantar, eu chorei de emoção, aquilo me despertou para a questão negra.

a partir daquele momento do surgimento do bloco afro ilê aiyê, em 1974, Mahin iniciara sua atuação no Movimento negro. em 1978, ela conhece uma grande intelectual negra e ativista do movimento negro da época, a antropóloga lélia Gonzáles com quem teve os pri- meiros contatos políticos em salvador. após o primeiro contato com lélia e com outros militantes negros locais, Mahin ajudaria a formar o “Grupo nêgo”, que, em 1978, deu origem a fundação do Movimento negro Unificado (MnU) na Bahia.

Quase uma década depois, Mahin e outras pessoas fundaram um grupo de trabalho no MnU chamado “robson da luz”, que tinha como objetivo discutir o negro e a educação. Foi por meio deste grupo que Mahin começou a fazer um trabalho prático pedagógico, no sentido de contar a história do negro, aquela que não era contada

nas escolas de primeiro grau. a partir daí esse trabalho lhe despertou

para a problemática da questão racial, desdobrando-se em um projeto de pesquisa voltado para a questão na área de educação.

Mahin contou-me que, na época quando o grupo de educação passou a desenvolver um trabalho prático com os professores negros acerca da “verdadeira história do negro”, setores do MnU critica- vam tal iniciativa, acusando o grupo de “pedagogismo”. ela e o grupo apostaram na proposta, resultando num projeto de formação para pro- fessores. esse fato é ilustrativo de como já havia tensões naquela época no interior do MnU, sobretudo, no que se refere à noção de político e não político. o “pedagógico” não era concebido como uma ação polí- tica eficaz para alguns grupos.

relatou-me de outras divergências internas na entidade entre as mulheres e os homens. no relato de Mahin, um grupo de homens teria sido expulso dentro da organização devido à atitudes “machistas” com as mulheres do movimento e, também, devido às preferências afetivas por mulheres brancas ou de “pele clara”. tais atitudes teriam desem- bocado no afastamento desses “militantes” da entidade. entrevistando outras ativistas que fizeram parte dessa organização na época, esse fato foi, também, relatado. havia uma delimitação bem nítida entre as

170 ana cláudia lemos pacheco

práticas “machistas e feministas”, era uma disputa não só entre os sexos, como se configurava na disputa política acirrada entre outros grupos pelos cargos de direção hegemônica da entidade. 53

na década de 1990, Mahin tornava-se professora de uma grande universidade do estado da Bahia. ali começa aliar sua atuação política com a academia. a atuação em dois espaços diferentes, simultaneamente, tem levado a novas tensões entre seu ativismo e o trabalho intelectual.

se por um lado, a política foi responsável por sua legitimação en- quanto um “quadro” pensante e atuante no movimento negro, por outro lado, esta mesma atuação traria conflitos políticos no meio acadêmico. a autopercepção desse processo de tensões e ambiguida- des acerca de seu papel enquanto ativista e intelectual negra tem se configurado em insatisfação e no isolamento “intelectual” que sofre diariamente na academia: eles não nos reconhecem, não querem tra-

balhar esta questão [racial]. ou, então, expressam-se nos conflitos

existentes nas relações com colegas de trabalho, com os intelectuais não-atvistas, e, ainda, na disputa da produção do conhecimento que subajz concepções políticas diferenciadas acerca da realidade social:

eles são universalistas, marxistas, acham que a única coisa que separa as pessoas é a classe.

em momentos informais, tive a oportunidade de conversar com outros militantes do movimento negro (homem e mulher), os quais estão se “legitimando” como intelectuais. Considerei esta conver- sa bastante elucidativa, no que diz respeito ao papel do intelectual negro/a ser conflituoso e ambíguo, sujeito a embates com os não inte- lectuais dentro do próprio campo da “militância negra”.

segundo algumas narrativas, setores do movimento negro per- cebem os intelectuais negros ativistas distantes da comunidade negra que atuam, ou, no melhor dos casos, como “individualistas”, “academicistas”, ou “elitistas”. há dois níveis de conflitos que se in- terpelam nas falas citadas, semelhantes ao que hooks (1995, p. 472) havia constatado na sua pesquisa com intelectuais negras no contexto

norte-americano: “[...] o receio de parecer egoísta, de não fazer um trabalho tão diretamente visto como transcendendo o ego servindo outros”. ou ainda, “ [...] mais uma vez enfrentamos, de maneira dife- rentes, problemas de isolamento e envolvimento com a comunidade”.

todavia, na narrativa de Mahin, não encontrei uma tensão com rela- ção ao seu trabalho intelectual dentro do movimento negro. o conflito vem na direção inversa: as relações conflituosas existentes na academia devido à sua posição enquanto intelectual negra ativista. Mahin ga- nhou legitimidade no movimento negro desde cedo, promovendo ações relacionadas com sua prática pedagógica, direcionada também para a pesquisa científica. em todo caso, sabe-se, por meio de outras pesquisas, que essa relação não é nada harmoniosa; ao contrário, esta coloca sob “suspeita” o envolvimento político e o reconhecimento profissional dos intelectuais negros/as nos dois campos de atuação, como foi abordado na pesquisa de hooks e em outros estudos recen- tes. (Pereira, 1999) a trajetória social e política de Mahin foram importantes na condução e na orientação de sua escolha intelectual. será que isso ocorreu também como suas escolhas afetivas?

A solidão

antes de iniciar esse item, quero registrar a dificuldade que eu tive para extrair informações sobre os relacionamentos afetivo-sexuais de Mahin. na primeira entrevista, realizada, em 2001, Mahin falou pouco sobre suas experiências amorosas, o que me levou a retornar ao cam- po em 2003, além dos outros motivos já mencionados. Mahin tem 61 anos de idade, nunca foi casada e não tem filhos. desde cedo, quando ainda era jovem, auxiliava sua mãe na administração da casa e na so- cialização dos seus irmãos menores, preocupando-se com a formação educacional e profissional destes. Perguntada porque nunca se casou, respondeu-me que desde sua juventude não pensara em casar e nem ter filhos, pois praticamente viveu para essa [sua] família, referindo-se

172 ana cláudia lemos pacheco

à sua mãe, irmãos e sobrinhos, e logo em seguida retrucou mas eu me

sinto realizada em muitas coisas.

Mahin relatou-me que teve várias relações afetivas, desde quando tinha 17 anos de idade. Contou-me que, nesse período, estava fazendo o segundo grau numa escola pública quando conheceu um rapaz que foi muito importante na sua vida pessoal e profissional. o rapaz a in- centivou a continuar seus estudos, na época. ressalta que esta foi sua grande e primeira paixão, mas não deu certo, não me revelou o porquê, disse-me ser coisa de adolescente.

Com 23 anos de idade, Mahin tivera sua segunda paixão por um homem negro, segundo ela, “muito bonito”, ele a pediu em casamen- to, mas naquele momento sentia-se insegura em relação à escolha que teria que fazer. ela o amava, no entanto, segundo seu relato:

Eu tive medo de sofrer por amor, eu tive experiências na infância que me deram antipatia muito grande, eu sempre achava que eu não resistiria de casar com uma pessoa e ver a pessoa com outra, eu sempre achava que eu não iria re- sistir e sucumbir. Ele era muito bonito e muito paquerador.

ao falar desse momento, percebi que Mahin se emocionara. houve um silêncio por alguns segundos, depois recompôs a voz, ainda num tom emocionado, e disse: na minha cabeça, eu sempre quis ter um car-

ro, e um apartamento pra eu morar; filho, nem pensar, coisas da vida passada. a entrevistada evitou contar detalhes dessa fase de sua vida.

na continuação de seu relato, relatou-me que após ter “perdido” a oportunidade de se casar, teve outras propostas de casamento, no en- tanto, não se sentia atraída por seus pretendentes.

na década de 1980, Mahin teve relacionamentos afetivos transitó- rios com vários homens. Perguntei-lhe se os homens eram negros, ela respondeu-me que sim. lembrou-se que só tivera um relacionamento com um homem branco, quando era universitária, mais velho do que ela. Como era de se esperar, a família de seu namorado não aceitou o namoro por causa da questão racial, o que teria abalado a relação e levado ao seu término.

na década de 1990, Mahin mantivera um relacionamento de seis anos com um homem estrangeiro (africano), porém, a distância entre eles não permitiu a estabilidade afetiva almejada. em 2001, teve uma outra paixão, cujo relacionamento durou um ano, com outro africa- no que “tinha duas esposas e queria que eu fosse a terceira”; por esse motivo terminou a relação. depois de várias relações instáveis, Mahin revelou-me que a partir da década de 1990, vem mudando seu modo de se relacionar com o “outro”. acentua que o sentimento, o envolvi- mento emocional, é um importante fator para constituir uma relação a dois e revela:

Eu acho que com a aproximação dos 60 [anos de idade] a gente vai ficando... eu não sei, está sendo muito difícil de se encontrar hoje um parceiro..., porque esta questão de só querer ter relações sexuais sem sentimento não dá, eu vou até voltar para a minha terapia de novo.

Um dado observado no relato de Mahin é que, em nenhum mo- mento, ela citou relacionamentos afetivos com homens negros militantes. Contudo, em outros momentos, revelou-me que os mi- litantes negros, com raras exceções, relacionavam-se com muitas parceiras, ao mesmo tempo, ou então, preferiam parceiras fora do “grupo”. suponho que este seja um dos motivos pelos quais Mahin não se relacionou com tais militantes. Fora os relacionamentos afeti- vos descritos e que “não deram certo”, Mahin preenche sua solidão com a convivência familiar: desde dos 22 anos que eu moro sozinha,

mas sempre perto da minha família.

além disso, o trabalho acadêmico lhe ocupa boa parte de seu tem- po: eu viajo muito fazendo pesquisa, dando entrevistas e afirma: eu não

tenho este sentimento de solidão, eu sou uma pessoa só, mas quando eu posso, eu fico em minha casa, lendo, estudando, vendo televisão. em re-

lação ao lazer, relatou-me que adora sair só ou com a irmã ou com as amigas, gosta de ir ao cinema, ao teatro e participar das atividades fes- tivas e políticas do movimento negro, principalmente das atividades político-culturais do ilê aiyê.

174 ana cláudia lemos pacheco

a vida de Mahin segue um curso muito singular, porém, semelhan- te em alguns aspectos das ativistas políticas analisadas. tal percurso, também, a conduziu à situação de solidão. vejamos onde estas trajetó- rias se encontram e se distanciam.

Um primeiro fator observado é que, em todas as trajetórias das ati- vistas políticas, há pontos em comum:

a) elas provieram de uma origem social precarizada, pobre. seus pais desenvolviam trabalhos braçais de baixa qualificação, como operários da construção civil, trabalhadores rurais e pes- cadores; enquanto a linha materna, mães, avós e tias exerceram ocupações como trabalhadoras domésticas; aliás, este fato é inusitado, todas mulheres negras foram trabalhadoras domés- ticas; o que se observa é uma tripla articulação perversa dos marcadores de raça, classe e gênero nas histórias dos grupos familiares de origem.

b) observou-se que há uma tendência a endogamia racial nesses arranjos conjugais dos grupos familiares: mulheres (mães) e ho- mens (pais) negros constituíam uniões, o que implica também em mudanças dessas relações de união nas gerações seguintes. c) a educação (pública) foi o principal meio de mobilidade so-

cial individual das entrevistadas, por meio das redes familiares de parentesco consanguíneo ou redes de ajuda, possibilitando melhoria de capitais sociais e econômicos na vida das ativis- tas através de sua inserção em ocupações mais valorizadas socialmente, com exceção no caso específico da trabalhadora doméstica analisada; estas trajetórias sociais foram reguladoras das escolhas afetivas, sobretudo, na articulação das hierarquias sociais de gênero, raça, sexualidade, classe social e outros. d) a política foi um marcador importante na reorientação da tra-

jetória individual e afetiva das informantes. isso se expressou em novas elaborações das relações sociais e raciais por meio das

tecnologias racializadas do corpo. essa reelaboração foi perce- bida a partir de uma rede de significados que se positivaram em vários contextos: o lazer, a escola, as redes de amizade, o movimento social, a religião, a estética, o trabalho, as relações afetivas. entretanto, a prática política conjugada com os dis- positivos do gênero desestabilizaram com outras categorias sociais, como a de raça, classe e geração, gerando um campo de tensões permanentes no campo afetivo e político, promoven- do uma instabilidade afetiva das ativistas negras analisadas, o que colaborou para sua situação de solidão.

no entanto, observei algumas diferenças entre as mulheres ativis- tas analisadas. são elas:

a) Uma diferença entre elas diz respeito à posição dentro da estru- tura social, é o caso das trabalhadoras domésticas, cujo capital sociocultural é baixo se comparado com as outras trajetórias que experimentaram ascensão social, expressas entre mulheres acadêmicas x feministas; empregada x patroa; mulher negra x mulher branca; gorda x magra; constituindo-se num conjunto de relações.

b) outras diferenciações também foram assimiladas no campo político, estas se expressaram da seguinte forma: mulher ne- gra x homem negro; mulher negra x mulher branca ou mulher “clara”, mulher negra politizada x mulher negra não politiza- da, negras jovens x negras idosas, mulher negra homossexual x mulher branca homossexual, intelectuais ativistas x intelec- tuais não-ativistas, entre outras. em todas as outras relações, aquela que ficou mais marcada nas trajetórias afetivas das en- trevistadas foi o par de relações: gênero, raça e política. estas desestabilizaram as relações afetivas estáveis, conjugando-se e permutando-se entre si, distanciando o “afetivo” do “políti- co”, acentuando as hierarquias sociais, bem como contribuindo para a solidão afetiva das ativistas negras analisadas. isto se

176 ana cláudia lemos pacheco

evidenciou nas aproximações possíveis dentro do grupo das ativistas negras, a partir de afinidades políticas e históricas ori- ginárias de um mesmo campo político.

PARTE 3

AS TRAJETÓRIAS SOCIAL-AFETIVAS DAS

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 169-178)