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O trabalho doméstico

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 92-97)

Clementina chegou à salvador quando tinha 18 anos de idade. ela, e uma de suas irmãs saíram em busca de trabalho. segundo o seu depoimento:

Eu vim do interior analfabeta e cheguei aqui na cidade grande com minha irmã. A minha outra irmã, a mais velha [que é empregada doméstica] já morava aqui e ela arrumou um emprego para mim como trabalhadora doméstica.

segundo Clementina, o trabalho doméstico foi a sua única alter- nativa de emprego, pois como citou no relato, era analfabeta, não dis- punha de nenhum tipo de capital educacional: eu não sabia ler nem

escrever, eu não sabia nem pegar um ônibus por causa dessa dificuldade que eu tinha.

sua renda individual mensal, desde quando começou a trabalhar como empregada doméstica, nunca ultrapassou um salário mínimo. em algumas casas, muitas vezes, chegou a ganhar bem menos do que tinha direito por lei. além da baixa remuneração, as condições de trabalho nem sempre eram adequadas já que lhe faltavam: conforto, como quarto ventilado; proteção a acidentes no trabalho; excesso de funções, dentre outras situações de desigualdades sociais.

Quanto a sua trajetória ocupacional, contou-me que, logo quan- do chegou a salvador, foi trabalhar numa “casa de família”. sentiu-se estranha ao lidar como novos valores sociais e habitus diferentes dos

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seus; entrou em “choque” com a cultura da cidade, bem como com a “sua” nova casa e com as relações familiares dos “patrões”. em relação aos seus afazeres domésticos, dizia-se insegura e sem conhecimento de sua função. alegava não ter tido nenhum tipo de ensinamento para exercer as suas atividades corretamente e que teve uma vida muito di- fícil, não só em relação ao trabalho doméstico, mas também, quanto a convivência com outras pessoas no ambiente de trabalho: da primeira

casa até a última que passei o tratamento deles foi igual: frio, cheio de preconceitos, separações, inferioridade.

durante o seu relato, relembra-se de algumas situações que expe- rimentara no ambiente de trabalho. Certa vez, quando tinha 21 anos foi trabalhar em outra “casa” num bairro popular. recebia na época cem cruzeiros para realizar todas as tarefas domésticas. disse-me que se sentiu ofendida e marcada pela decepção. a mãe de sua “patroa” que, segundo ela, era uma mestiça, achava que lhe pagava muito caro pelo seu trabalho e despediu-a. Fala deste episódio com tristeza e re- lembra outro episódio vivenciado por ela nesse mesmo período:

Nesta mesma casa, uma vez teve um aniversário e aí ela [a mãe de sua patroa] falou assim para os visitantes:‘ela é assim, mas é boazinha’ – Aí eu entendi que era da minha aparência que ela estava falando, do meu cabelo, então estas coisas marcam.

além da exploração do trabalho (classe) e do preconceito racial (aparência, cabelo), Clementina sofreu violência física em outra casa que trabalhara. Certo dia a sua patroa agrediu-a fisicamente: “ela estava

nervosa, reclamou de uma roupa, me deu uma tapa nas costas, eu não revidei, simplesmente peguei as minhas coisas e fui embora”.

nesse fragmento de texto é possível perceber como o trabalho do- méstico tornou-se um espaço 33 onde várias configurações sociais são

33 A noção de espaço aqui é compreendida como um espaço social, construído por vá- rias redes de relações sociais em que os agentes encontram-se posicionados e dão sentido às suas ações no interior desse mesmo campo. Essa dimensão impede que se perceba o espaço como um lugar fixo, uma “esfera” substancial, opondo-se privado e

construídas dinamicamente. segundo Castro (1991), essas categorias sociais não se somam, mas se dinamizam mutuamente em contextos concretos. a exploração de classe se articula com a posição de gênero na construção de um trabalho “dito feminino”, mas que abriga divi- sões [nós x elas] sociais-raciais entre mulher negra e não negra, entre patroa e empregada, expressando-se na violência física e simbólica exercida por mulheres contra mulheres, condensando-se em várias categorias expressas em significados da distância social e racial.

durante o seu relato, Clementina acentuou que muitas trabalha- doras domésticas jovens vão ao sindicato denunciar casos de assédio sexual praticado pelo patrão ou pelos seus filhos. Perguntei-lhe se passara por alguma situação parecida nas casas que trabalhara? res- pondeu-me que, certa vez, quando tinha vinte e dois anos, o irmão de sua patroa tentou assediá-la quando se encontrava sozinha na casa que trabalhara. relata que, nesse momento, estava no banheiro despida quando viu que o irmão de sua patroa a espionava. Correu e trancou a porta. ele batera várias vezes na porta do banheiro. sentiu-se nervo- sa e irritada, gritou várias vezes para que ele fosse embora. depois de permanecer por muito tempo presa no banheiro, finalmente conse- guiu sair após ter ouvido as vozes de seus patrões, quando relatou o fato ocorrido. a patroa e sua mãe ficaram indignadas com a atitude do irmão/filho, e questionou-lhe o porquê de Clementina não ter grita- do para chamar atenção dos vizinhos. segundo o relato dela, a mãe de sua patroa retrucou: ela fez certo de não gritar, pois ´roupa suja se lava

em casa´.

achei emblemática essa passagem do discurso de Clementina porque possibita observar como vários marcadores sociais se inter- cambiam em sua trajetória. Poder-se-ia perguntar por que a patroa e sua mãe se posicionaram contrárias ao acontecimento descrito? e por que o patrão silenciou sobre o caso? nesse momento, o gênero foi acionado na relação da patroa/mãe da patroa e empregada contra o as- sédio sexual praticado pelo irmão/filho/homem. estabelecendo-se,

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nesse contexto, o par: mulher (es) x homem. o assédio é uma prática cul- tural questionada pelo marcador de gênero, pois ão mais trabalhadoras domésticas e não trabalhadores/homens que sofrem dessa vioência. de outro lado, o patrão/homem silenciou sobre o assunto. teria ele uma cumplicidade de gênero com o irmão/filho de sua esposa/sogra na prática do assédio?

na última fala de Clementina, o gênero aparece relacionado com a categoria mulheres. a metáfora “roupa suja se lava em casa” tem uma significação marcada pelo gênero feminino: “roupa suja” revela-se como metáforas que se associam, também, à ideia de empregada do- méstica. aqui a “raça” e a “classe” não foram acionadas nas metáforas, mas se encontram embutidas nas relações.

Poder-se-ia, nesse diagrama, explorar várias combinações de gênero e suas relações, mas o episódio só serviu para ilustrar a possibilidade de tais relações serem dinamizadas e vivenciadas em contextos históricos específicos. todavia, a experiência de Clementina pode ser recontada e comparada por meio de outros relatos (ficcionais). Clementina compa- rou a sua história de assédio com a estória de personagens da telenovela da rede Globo Mulheres Apaixonadas.

na novela, havia várias personagens femininas, negras e mestiças que desempenhavam o papel de empregada doméstica. entras es- tas, Clementina cita Zilda, uma trabalhadora doméstica negra, jovem, que estava sendo assediada sexualmente pelo personagem Carlinhos, adolescente, branco, de classe média, filho dos “patrões”. Clementina criticou veementemente a novela por mostrar cenas de assédio na te- levisão, de forma naturalizada. em sua narrativa, tal prática acontece, recorrentemente, com as trabalhadoras negras e jovens no ambiente de trabalho doméstico; por isso o sindicato recebe muitas denún- cias de assédio. em seu argumento, o “horário nobre“ da novela não questiona tal prática, mas incentiva adolescentes brancos a assediar as trabalhadoras.

Perguntada sobre as outras personagens da novela, relatou-me que não acredita em algumas representações sociais mostradas. refere-se à imagem construída das trabalhadoras domésticas como “boazinhas”,

“amiga da patroa que é espancada”, “se metendo em conversa de patrão”. segundo seu depoimento:

Na verdade não é isso que acontece, porque eles [os pa- trões] têm a vida deles separada, geralmente eles estão na sala conversando e a trabalhadora não fica por perto porque eles não querem. Isso tudo que acontece na no- vela são coisas do imaginário deles [dos autores da no- vela]. Então... não existe o caso da empregada, no caso de Shirley [personagem] que é amiguíssima da patroa e falava sobre o namorado dela para a patroa, assim: – ‘Shirley me conta como é o seu namorado, o que é que ele faz?’, isso é coisa de novela. A novela quer mostrar e passar que a empregada doméstica tem que ser assim bo- azinha e se preocupar com o emocional da patroa, isso não existe.

segundo tereza de lauretis (1994), o gênero pode ser também representado por “aparatos tecnológico-discursivos” como na mí- dia, por exemplo. essas imagens (da empregada boazinha, ou da empregada amiga da patroa) embora sejam negadas por Clementi- na, aparecem como constituídoras de realidade. em outros relatos identifiquei casos em que a empregada foi solidária com sua patroa, protegendo-a contra violências físicas praticadas pelo marido (“pa- trão”). isso não significa que sempre foi assim, mas naquele momento (contexto) a identificação de “gênero” foi maior do que a hierarquia de classe e de raça que as separava. afinal, a violência contra as mulhe- res tem sido cada vez mais publicizada na mídia como resultante das lutas feministas, como uma prática condenatória. além disso, como mostra lauretis, o gênero é gendrado, modificado, reapropriado pelos indivíduos que compartilham de uma mesma cultura. essa noção de engendramento pode ser, também, utilizada para se entender como tais práticas, não apenas aquelas marcadas por gênero, podem ser re- organizadas e ressignificadas pelos sujeitos que a vivenciam. de que forma Clementina ressignificou tais práticas? Como sua trajetória

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social e afetiva foi modificada? Como a política interferiu em suas es- colhas afetivas?

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