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As relações afetivo-sexuais no movimento negro

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 159-164)

Como sugere Bourdieu (1986), trajetória é uma rede complexa de relações sociais. no caso de nzinga sua trajetória está entrelaçada a várias redes sociais. nzinga, quando era jovem, conheceu um rapaz, namorou, engravidou, casou-se e se separou do seu parceiro, pai de sua filha. depois que ingressou no movimento negro por meio do grupo cultural que havia no seu bairro chamado Polêmica Negra, a sua vida mudou.

em 1998, após a dissolução do “Polêmica negra”, nzinga filia-se ao Movimento negro Unificado, uma grande entidade nacional do movimento negro organizado. nesse período, ingressa no Grupo de Mulheres (GM) daquela entidade. esse grupo, que funcionou de 1980 até 1995, no qual eu também participei, tinha como objetivo elabo- rar políticas de intervenção de “gênero e raça” para as mulheres negras junto ao poder público na sociedade baiana, além disso era um grupo que visava disputar poder no interior da entidade, sobretudo, contra os homens que ocupavam cargos de direção no âmbito municipal, estadual e nacional.

de 1998 até 1993, nzinga participou do Grupo de Mulheres do MnU. este grupo tinha vários propósitos políticos, um deles, era criar um espaço de reflexão política contra as ações do racismo e do sexismo dentro e fora da organização. outro objetivo, segundo nzinga, era de- bater e combater as práticas “machistas” dos homens com relação aos seus relacionamentos amorosos com as mulheres negras dentro e fora da entidade. eu mesma tive oportunidade de acompanhar parte des- sa discussão como integrante do GM da entidade citada; inclusive, foi nesse espaço, que as ativistas negras reclamavam de rejeição da mulher

negra pelo homem negro, e da “solidão”; discursos até hoje predomi-

nantes nos grupos de mulheres negras organizadas.

Quando nzinga iniciou sua militância política no movimento ne- gro, sua preferência afetiva ganhou outro sentido. ela mesma refere-se

a seu ex-cônjuge como um homem “limitado”, tanto do ponto de vis- ta político, (ele não gostava de movimento negro), quanto do ponto de vista dos projetos individuais. no movimento negro, nzinga conheceu outros homens “interessantes” com os quais se relacionou. de acordo como seu relato, sentiu-se atraída por aqueles homens inteligentes, politizados e poetas. apaixonou-se por alguns deles, sendo inclusive correspondida, e também manteve “um caso” com homens casados, mas todas as suas relações afetivas não foram fixas, sempre transitórias.

outro dado acionado na entrevista da informante refere-se à pre- ferência dos “militantes” negros por parceiras negras não militantes e por parceiras brancas. Um dos argumentos de nzinga, e também das outras ativistas selecionadas, é que o homem negro “militante” não tem expectativas em manter relacionamentos duradouros com as mulheres negras ativistas. de acordo com a informante, as ativistas negras são “extremamente críticas”, são mulheres que “assustam os homens”. segundo seu depoimento:

Uma mulher como eu? Os homens fogem, eles não gostam de ser questionados, de ter alguém que ameace a sua esta- bilidade. Eu tive uma experiência com um militante negro dentro da entidade (MNU)... ele dizia o tempo todo que eu tinha capacidade de entender as coisas, porque a mulher dele não era militante, então ele achava que ela merecia cuidado, eu não, eu tinha que ser forte, não chorar, en- tender tudo... ser “mulher macho, sim senhor”!

em outro momento da entrevista, nzinga contou-me que certo dia foi almoçar no restaurante próximo ao seu trabalho. Um fato lhe chamou atenção, sentou-se à mesa ocupada por mulheres idosas, com mais de 65 anos de idade; todas brancas e sozinhas, sem companhia masculina. ao sentar-se à mesa para almoçar, percebeu que as mulhe- res citadas a olhavam com medo. em sua concepção, essas mulheres a estranharam devido ao preconceito racial expresso no seu visual. nzinga semelhante à dandara, tem o cabelo no estilo Dread look (ras-

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africano, tons fortes, coloridos ou, então, a depender do dia, veste-se de branco. Usa contas que simbolizam os orixás. seu estilo “afro”, em sua opinião, teria assustado tais mulheres idosas. no entanto, nzinga sentou-se a mesa, mesmo assim, e ficou surpresa ao ouvir aquelas mu- lheres se queixarem sobre uma questão que lhe era familiar: a solidão.

Mais uma vez a questão da idade/geração foi acionada como um marcador importante nas preferências afetivas das entrevistadas. nzinga, ao narrar essa história, acionou categorias – raça e do gêne- ro – que favorecem ou não as preferências afetivas. a depender do contexto cultural e histórico, raça e gênero podem ser categorias que ganham significados diferenciados em interação com outros marca- dores sociais. Mulheres negras de certa faixa etária, ativistas políticas, com nível de instrução ou não, pertencentes a uma certa religião po- dem influenciar “positivamente” ou não nas preferências afetivas entre mulheres negras e seus parceiros/as. tal percepção desconstrói qualquer ideia essencializadora e determinista de uma identidade fixa acerca do “ser mulher”. outros fatores culturais, como a política e a religião podem influenciar nas escolhas dos indivíduos.

A religião

em 1992, nzinga viveu momentos difíceis na sua vida pessoal e política. segundo ela, a sua vida estava toda “desmantelada”. refere-se a problemas de natureza política e espiritual. em 1993, nzinga junta- mente com outros militantes do MnU, inclusive militantes do GM, afastaram-se da entidade por motivos de crise política. tal fato, asso- ciado a outros, como a morte de uma militante do grupo, problemas familiares e afetivos, colaboraram para o seu afastamento da entidade e a sua inserção definitiva no Candomblé.

em 1993, nzinga inicia-se espiritualmente no Candomblé; este seria um novo marco de sua trajetória. o espaço religioso reorienta sua atuação política, dedicando-se à comunidade religiosa. no candomblé,

recria redes de relações: a “família de santo” que, segundo sua narra- tiva: lá eu me sinto em família, com minha Mãe religiosa e com meus

irmãos de santo. Uma outra ativista negra do campo religioso, uma

Makota de um terreiro, ao ser entrevistada, afirmou que as pessoas no Candomblé a família de santo impede de que as pessoas se sintam sozinhas. no caso de nzinga, a sua inserção nesse espaços gerou am- biguidades. ela admite que a sua filiação religiosa ao Candomblé, suas obrigações espirituais, podem ser um obstáculo no relacionamento amoroso. refere-se ao enclausuramento necessário às suas obrigações espirituais. afirma que seus parceiros afetivos tiveram dificuldades em compreender a sua vocação religiosa. no entanto, no terreiro de Candomblé, não mantém relacionamentos amorosos. nzinga percebe o Candomblé como um espaço que me deu muita força para eu encarar a

minha vida desta forma; é no Candomblé que a gente vê mulheres fortes, autossuficientes que cuidam de suas famílias, como eu.

nzinga, sendo uma filha de iansã, se autopercebe como uma mãe guerreira, independente, que gosta de lutar por seus ideais pessoais e políticos. sendo assim, a releitura que faz de sua vida está relacionada, também, com sua orientação religiosa. iansã, segundo o mito africano, “é uma mulher guerreira, que teve muitos amantes”. (landes, 1967, p. 303) nzinga, apesar de se achar solitária por não ter encontrado seu parceiro afetivo “ideal”, não desiste de ter vários parceiros amorosos transitórios, inclusive mais jovens do que ela. assim, sua “solidão” é resultante de vários fatores culturais e políticos, em que o campo polí- tico é tenso, “explosivo”, de amores possíveis, não ideais. será que isso também ocorre com uma intelectual negra com 60 anos de idade? É o que veremos na próxima história.

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 159-164)