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O “mercado afetivo”: a importância dos estudos demográficos da década de

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 83-88)

Como foi dito, algumas pesquisas demográficas tiveram uma importância significativa acerca da problemática aqui abordada. tais estudos apontam para a predominância de um modelo de relações conjugal-afetivas endogâmicas e exogâmicas da população brasileira. a partir desses estudos, é possível extrair pistas importantes acerca das escolhas afetivas entre negros e brancos e acerca da “solidão” (ausência de parceiros fixos) entre mulheres negras.

Berquó (1987), ao analisar os dados do Censo de 1960-1980 en- controu resultados fundamentais acerca das relações conjugais entre negros (as) e brancos (as). a autora constatou que, em relação à união32,

as mulheres brancas são aquelas que mais casam se comparada com as mulheres negras (pretas e pardas). em contraponto, estas últimas são as que menos contraem uma união estável em relação às brancas. Por outro lado, as negras perfazem maioria (+ de 50%) entre as mulheres solteiras, viúvas e separadas.

outro aspecto importante encontrado na pesquisa citada revelou que as mulheres negras são as que casam (uniões consensuais) mais tardiamente e com menor intensidade se comparada às mulheres brancas, aos homens brancos e negros. o que confirma, segundo a autora, um alto índice de celibato entre as pretas e pardas.

tomando como parâmetro a razão entre os sexos (nº de homens e mulheres disponíveis), Berquó (1987) observa que mesmo haven- do um excesso de homens no grupo racial negro, as pretas são as que têm menores chances de casamento. a autora atribui este fator ao excesso de mulheres no grupo racial branco, mas tal argumento torna-se insuficiente para se entender as preferências afetivas. em relação aos relacionamentos inter-raciais, verificou-se, também, a predominância de um modelo em que o marido é mais escuro do que a esposa, con- firmando, mais uma vez, as pesquisas de azevedo que demonstravam que a miscigenação tem sido mais realizada por parte dos homens negros com parceiras brancas ou com mulheres de pele clara do que ao contrário, ou seja, as negras quando casam, casam-se dentro do seu próprio grupo racial.

silva (1987, p. 21), ao analisar os dados do Censo de 1980 acerca da seleção matrimonial dos grupos raciais entre os sexos, constata que o casamento exogâmico (fora do grupo) é maior entre brancos e pre- tos, menor entre pardos, sendo mais frequentes os casamentos entre mulheres brancas e homens negros do que o inverso.

a predominância deste tipo de relação já havia sido constatada por azevedo (1996, p. 73) na Bahia. silva (1987), referindo-se a outras pesquisas realizadas no Brasil, no período de 1948 a 1957, acentua que foi identificado um mesmo modelo de casamentos exogâmicos em que a mulher é mais clara do que o marido. entretanto, essas pesquisas verificaram que há um tratamento diferenciado por razão do sexo nas escolhas matrimoniais, isto é, se homens negros preferem mulheres brancas para se casarem, o contrário não é verdadeiro, já que entre as mulheres negras não se observa a mesma recorrência, pelo menos em termos proporcionais. Como explicar tal fenômeno?

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Para silva (1987), uma das hipóteses possíveis seria devido ao de- sequilíbrio populacional entre os sexos, excesso de mulheres ou de homens nos grupos raciais. no entanto, isto não explicaria a pre- ferência conjugal dos homens negros por mulheres de outros grupos raciais. então, o que orientaria a preferência afetiva/matrimonial dos homens negros em relação às mulheres não negras? o que orientaria tais escolhas?

outro elemento importante encontrado na pesquisa de azevedo (1996) e ressaltado por silva (1991, p. 31) é de que as escolhas ma- trimoniais entre os grupos raciais diferenciados, dar-se-iam conforme o status social. azevedo constatou que homens negros têm prefe- rência em casar com mulheres brancas cujo status social é inferior ao seu, ou seja, homens negros que adquiriram algum tipo de prestígio social, econômico ou educacional casavam-se com mulheres brancas pobres, com baixo grau de instrução. em contrapartida, as mulheres negras e mestiças não conseguiam ter as mesmas chances de casamen- to inter-racial, não gozavam de prestígio social, portanto, restava-lhe o concubinato ou o celibato.

embora silva admita que os homens negros tenham preferência afetiva por mulheres não negras como um meio de ascensão social, acentua que a diferença de status (educacional) nas relações inter-raciais não é um dado facilmente perceptível na análise estatística entre esses grupos, porque nem sempre este tipo de situação é recorrente. Pode-se encontrar, em um ou em outro caso, mulheres brancas ou negras com homens brancos ou negros cujo status educacional seja equivalente.

É necessário destacar que outros fatores – idade, região, taxa de endogamia – foram analisados pelos autores citados acima, como ele- mentos que interferem nos padrões de casamento dos grupos raciais por tempo e região. silva já chama atenção com relação a estes aspec- tos nas suas pesquisas atuais. Para ele, o grau da endogamia/exogamia dos grupos raciais varia de acordo com os estoques populacionais de cada grupo, a região (mais desenvolvida, menos desenvolvida) e a dis- tância socioespacial.

apesar da grande contribuição que os estudos demográficos vêm dando a esta problemática acerca das relações matrimonial-afetivas dos grupos raciais, há de se considerar que um estudo desta natureza focaliza muito mais os fatores de ordem populacional em detrimento dos fatores socioculturais, embora estes últimos não sejam despreza- dos da análise demográfica.

diferentemente dessa abordagem, mas reconhecendo a sua impor- tância, este estudo pretende focalizar a dinâmica dos aspectos sociais e simbólicos das escolhas afetivas das mulheres negras (e de seus pares) no contexto cultural específico, tomando como recorte empírico mu- lheres negras em situação de não união, sem parceiros fixos. nos dois capítulos seguintes, trataremos de analisar tais relações através das trajetórias sociais e afetivas das ativistas negras e das mulheres negras não-ativistas. Uma observação importrante: o leitor (a) pereceberá que na análise das trajetórias e narrativas das informantes, estaremos falan- do na primeira pessoa do singular. esta é uma estratégia metodológica que permitirá ao investigador (a) estabelcer uma interação com o inve- tigado e, ao mesmo tempo, colocar em “suspenso” suas perecepções sobre tais relações construídas no processo da pesquisa e na análise das narrativas. (KoFes, 1998)

PARTE 2

AS TRAJETÓRIAS SOCIAL-AFETIVAS DAS

No documento Mulher negra: afetividade e solidão (páginas 83-88)