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2.3. De Macedo a Guimarães: um Mundo Patriarcal

2.3.3. A Escrava Isaura e o paternalismo dissimulado

Numa época em que a criação de uma literatura nacional distinta e autónoma surgiu como um desejo cada vez mais urgente e obsidiante no panorama das letras brasileiras, Bernardo Guimarães foi exemplo deste espírito pioneirista e performativo.

Consciente de que o escritor se devia esforçar por ir ao encontro do povo, origem da verdadeira cultura, pesquisar, analisar, e até tentar reproduzir a sua linguagem25, o escritor mineiro, imbuído ainda de um espírito romântico, no sentido de que a literatura deve ter uma função didática, acreditava ter um papel formador na sociedade brasileira. Pode mesmo dizer-se que, com um manifesto desejo de edificar uma cultura brasileira, Guimarães tinha igualmente a noção de que, em primeiro lugar, era imprescindível a criação de uma cultura nacional como veículo para a construção de uma nação.

Ao recordar-se parte da obra de Guimarães antes de A Escrava IsauraO Ermitão de Muquém (1864), Lendas e Romances (1871), O Garimpeiro (1872), O Seminarista

(1872) —, o que se evidencia é a tentativa de rememorar e vivificar, num esboço de ambientes e costumes, uma cultura popular de índole sertanista, como base sustentadora e, simultaneamente, empreendedora de uma cultura mais abrangente, nacional. A cultura

25 De acordo com Afrânio Coutinho, a «procura do colorido local peculiar conduziu à compreensão da literatura popular, onde, para os românticos, residiria o carácter original da criatividade literária, e de onde partiria o veio formador da literatura.» (Coutinho, 1969a: 26).

popular aparece, claramente, aos olhos do escritor-juiz como o repositório de um património nacional brasileiro.

Por outro lado, ainda que com uma visão documental (recorde-se que o seu primeiro romance, O Ermitão de Muquém, tem como subtítulo “História da Fundação da Romaria de Muquém na Província de Goiás”) e uma submissão à descrição da paisagem natural, que Bosi critica, este tipo de literatura tem como finalidade principal possibilitar a configuração e o acrescentamento de um sentido nacional à literatura brasileira.

Para além destes aspetos importantes que distinguem Guimarães de outros escritores, a sua produção literária reflete ainda a noção de que ele estava ciente do seu papel interventivo na construção de um país.

Com Luiz Roncari, pode afirmar-se mesmo que diversos textos demonstram uma atitude «das mais fecundas para a produção cultural do país: a preocupação com sua organização social e institucional e a disposição para participar de suas soluções» (Roncari, 1995: 285). Os textos literários de Bernardo Guimarães não são apenas importantes pela sua dimensão documental, desnudando os «aspectos da vida brasileira, dos povos indígenas às instituições políticas e religiosas», mas também porque constituem «as primeiras tentativas de pensar e representar o país como um todo, como um organismo social e cultural específico, fruto de tradições e luta.» (Roncari, 1995: 285).

O próprio Bernardo Guimarães, no prefácio do romance Índio Afonso (1873), onde assume uma postura realista, define a intencionalidade didática e pedagógica da sua escrita na divulgação do que é intrinsecamente brasileiro:

Entendo que a pintura exata, viva e bem traçada dos lugares, deve constituir um dos mais importantes empenhos do romancista brasileiro, que assim prestará um serviço tornando mais conhecida a tão ignorada topografia deste vasto país (IA, 1873: 8).

Com A Escrava Isaura (1875), Bernardo Guimarães apresenta uma série de acontecimentos que primam pela invulgaridade e pelo non sense.

Fugindo ao estereótipo do escravo mau, a elaboração do romance parte de pressupostos tão inusitados quanto extraordinários. O aspeto novo não é constituído pelo

facto de o protagonista ser o escravo, pois já o havia sido com Macedo, mas reside no caso de o escravo ser “branco” e virtuoso26

.

Num estilo romântico, sobrepondo quase sempre a questão sentimental à problemática abolicionista, este texto de Bernardo Guimarães relata as desventuras de Isaura, escrava branca (mestiça, mas com fenótipo de branca), que vai ser vítima do comportamento libidinoso de um senhor devasso e cruel.

Através de A Escrava Isaura27, o escritor de Minas Gerais terá pretendido fazer um libelo anti-esclavagista. Todavia, por essa razão ou por saber o público a que se dirigia, o romance não parece ir além de uma idealização romântica, na tentativa de prender a atenção e fazer com que o leitor entendesse o cativeiro como uma realidade intolerável, pouco consentânea com uma época cujo valor primordial era a liberdade (cf. Proença, 1974: 36).

Isaura surge retratada excecionalmente com traços românticos bem definidos:

A tez é como o marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada. (…) Na fronte calma e lisa como o mármore polido, a luz do ocaso esbatia um róseo e suave reflexo; di-la-íeis misteriosa lâmpada de alabastro guardando no seio diáfano o fogo celeste da inspiração. (AEI, 101981: 11)

O escritor mineiro esforça-se por realçar insistente e exaustivamente a beleza branca de Isaura, de modo a que a sua condição de escrava fique obnubilada. Não é certamente por acaso que Isaura não evidencia nenhum traço africano nem outro aspeto que provoque o horror ao escravo.

26 À semelhança de A Escrava Isaura, o romance Rosaura, a Enjeitada (1883) surge elaborado a partir de pressupostos pouco comuns e até mesmo inverosímeis. O invulgar não se prende já com o facto de a protagonista ser, uma vez mais, uma escrava, e nem tão pouco de ser branca, bem-educada ou delicada. Essa situação fora já encarnada por Isaura em 1875. O incomum, neste texto, desenhado de forma irónica e melodramática, reside no facto pouco provável de Rosaura, a escrava protagonista, fruto de um conjunto de peripécias, se encontrar numa situação de escravatura, tendo, afinal, nascido livre por nascimento, pois os seus pais eram Adelaide e Conrado.

O curioso e mesmo intrigante neste texto é verificar que, sendo a personagem principal escrava, o romance, publicado oito anos depois de 1875, não enverede ainda de forma mais explícita que A Escrava

Isaura pela temática abolicionista que praticamente não se coloca.

O que se critica em Rosaura, a Enjeitada não é o facto de se escravizar um ser humano, mas escravizar uma menina que, além das suas características de branquidade e do seu carácter digno, nasceu de mãe e pai livres. Logo, sem referências a outros escravos e aos rigores do cativeiro, o texto como documento abolicionista é, pois, muito limitado.

27 Bernardo Guimarães granjeou uma grande popularidade entre os brasileiros, que se estendeu até aos nossos dias, como se pode constatar não só pelo grande êxito editorial na época, mas também pela adaptação, em meados do século XX, para telenovela.

Por outro lado, Isaura, humilde e conformadamente, sem assunção da sua condição africana por parte da mãe, demonstra compreender o lugar que ocupa na sociedade brasileira: o de objeto, o da subserviência28. Sem qualquer traço que revele insubmissão (se excetuarmos a fuga com o pai), a condição cativa é a que permanece sempre no seu pensamento, consubstanciando uma mentalidade conservadora e paternalista. Ela própria tem escrúpulos de passar por branca livre, e considera-se indigna do amor de Álvaro.

Pelo que se expôs, a escolha de uma escrava branca como protagonista poder-se-á considerar preconceituosa e mesmo contraditória, uma vez que só a cor branca poderia levar a que as poucas referências aos horrores da escravidão sejam compreendidas e, mais do que isso, sejam suscetíveis, numa dimensão trágica, de despertar sentimentos de terror e de piedade, permitindo um efeito catártico num público composto por mulheres e estudantes que apreciavam as histórias de amor.

Na realidade, publicado seis anos mais tarde que As Vítimas Algozes, e após a publicação da Lei do Ventre Livre, em 1871, este romance de Bernardo Guimarães enceta uma mudança de atitude na forma de encarar a escravidão e o negro. Com características negativas menos evidentes, para o escravo não é elaborado um quadro tão maléfico como o feito pelo doutor Macedinho, nem a ameaça escrava e a inoculação dos vícios que provoca a degradação dos senhores está presente da mesma maneira.

Contudo, apesar destas diferenças importantes, o autor manifesta igualmente no seu texto de 1875 aspetos que se podem considerar tributários de uma mentalidade paternalista. Um dos aspetos comuns a Macedo e Guimarães que configuram um padrão temático na narrativa brasileira e demonstra uma mentalidade paternalista é a noção de que o Belo não é compatível com o escravo. Por outras palavras, pode inferir-se pelo romance de Guimarães que, para o branco, o escravo negro não é Belo.

O baile em que Isaura, sob o nome de Elvira, participa depois de fugir de Leôncio é exemplar. Os colegas de Martinho não acreditam que, numa sala de baile, se encontrasse uma escrava, nem depois de terem ouvido a leitura do anúncio do Jornal do Comércio que descrevia a fuga de Isaura e apontava os seus traços físicos extraordinariamente belos. Mesmo induzidos por Martinho a identificar Elvira como a escrava a que o anúncio se referia, os estudantes não queriam crer que Elvira/Isaura, que acabara de cantar e se

28 Não é, com certeza, casual que, do princípio ao fim do texto, Isaura suporte, sem revolta, a perseguição do seu senhor, Leôncio, as propostas indecorosas de Henrique, e, a partir de um determinado momento, as desconfianças da mulher de Leôncio, Malvina.

encontrava perante eles, se tratasse de uma escrava. Para eles, a sua elegância, a sua beleza, a sua postura, não eram condizentes com a condição servil:

— […] Traja-se com gosto e elegância, canta e toca piano com perfeição. Como teve excelente educação e tem uma boa figura, pode passar em qualquer parte por uma senhora livre e de boa sociedade […].

— Deveras, Martinho? – exclamou um dos ouvintes, — está nesse papel o que acabo de ouvir? acabas de nos traçar o retrato de Vénus, e vens dizer-nos que é uma escrava fugida? (AEI, 101981: 80).

Quando se apercebem que, de facto, a escrava descrita no anúncio é Elvira/Isaura, a sensação de incredulidade e estupefação recrudesce, não querendo acreditar que uma escrava fosse tão bela: “— É assombroso! Quem diria, que debaixo daquela figura de anjo estaria oculta uma escrava fugida!” (AEI, 101981: 81).

Ora esta reação de incredulidade é paradigmática do pensamento senhorial. Para aqueles estudantes, a imagem de um anjo não é compaginável com a de uma escrava fugida.

Na verdade, sendo bela, virtuosa e branca, só em poucos momentos da obra Isaura pode ser vista como escrava. O ambiente em que vive, a forma como veste, e os seus atos, o tocar piano e o cantar, não são aspetos característicos na vida de um escravo:

A favor desse quase silêncio harmonioso da natureza ouvia-se distintamente o arpejo de um piano casando-se a uma voz de mulher, voz melodiosa, suave, apaixonada, e do timbre o mais puro e fresco, que se pode imaginar.

[…]

Achava-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça. (AEI, 101981: 10-1)

Isaura só pode ser vista como escrava quando, na realidade, está numa situação de submissão e de dependência relativamente ao seu senhor. Tal acontece quando está na fiação junto das outras escravas, ou no tronco, depois de se recusar a aceitar as propostas lascivas de Leôncio, ou quando foge do seu senhor com a ajuda do seu pai, Miguel, numa fuga que pode ser vista como uma influência da obra de Harriet Beecher Stowe, A Cabana do Pai Tomás, publicada no início da década de 50, nos Estados Unidos da América, e traduzida para o português pela primeira vez em 1853.

Nesta linha de pensamento, a figura de Isaura, apesar de cativa, descrita sistematicamente como branca, plena de qualidades e virtudes, mostra uma visão ainda conservadora na forma de encarar o escravo que, sendo negro, não pode ser belo.

Exemplo relevante é dado pela própria protagonista quando reflete angustiadamente sobre o assédio que sofre dos brancos. Ela, nesse momento em que atribui de forma estereotipada características de fealdade aos negros que negam a beleza africana, invoca Deus e lastima a sua condição. Isaura considera-se desgraçada por nascer escrava, preferindo antes ter nascido «bruta e disforme, como a mais vil das negras», em vez de ter sido contemplada pelo divino com uma série de dotes, que apenas serviam para provocar sofrimento e amargura (AEI, 101981: 43).

Outro exemplo paradigmático acontece quando o escravo André, também ele doméstico, cobiçando os favores de Isaura, vê as outras escravas como mulheres feias e repugnantes:

— Também tu, André, vens por tua vez aproveitar-te da ocasião para me atirar lama na cara?...

— Não, não. Isaura; Deus me livre de te ofender; pelo contrário dói-me deveras dentro do coração ver aqui misturada com esta corja de negras beiçudas e cantinguentas uma rapariga como tu, que só merece pisar em tapetes e deitar em colchões de damasco (AEI, 101981: 44).

Rejeitando a sua origem negra e desejando ser branco, paradigma da beleza e da moda, André revela que não há orgulho na sua raça e confirma um efeito de desculturação progressiva:

— Ah! é assim! — exclamou André todo enfunado com este brusco desengano. — Então a senhora quer só ouvir as finezas dos moços bonitos lá na sala!...pois olha minha camarada, isso nem sempre pode ser, e cá da nossa laia não és capaz de encontrar rapaz de melhor figura do que este seu criado. Ando sempre engravatado, enluvado, calçado, engomado, perfumado, e o que mais é — com as algibeiras sempre a tinir. (AEI, 101981: 44)

Outro tópico comprovativo de uma mentalidade paternalista em Guimarães diz respeito à filantropia dos senhores.

Ainda que com diferenças com as novelas de Macedo, em A Escrava Isaura, o negro não é desenhado ainda de forma nitidamente positiva. Se excetuarmos a negra mais velha da fiação, a mãe da protagonista, e, obviamente, Isaura, o escravo aparece privado de uma

série de qualidades que permanecem como exclusivas dos brancos, sendo eles que continuam a ocupar a centralidade da cena literária.

Neste texto de Bernardo Guimarães, o branco — excetuando Leôncio, o seu pai, e Martinho — aparece na generalidade caracterizado de forma muito positiva, cheio de qualidades, onde a generosidade, a bondade, a filantropia e a compaixão ocupam um papel destacadíssimo.

Para corroborar o que se acabou de afirmar e a ligação a uma mentalidade paternalista, é mister salientar algumas personagens que encarnam as virtualidades apontadas: a mãe de Leôncio, Malvina, e Álvaro, por quem Isaura se apaixona.

Sem uma ordem precisa, realce-se, primeiramente, a mãe de Leôncio, benfeitora, que surge como a protetora de Isaura, a «escravinha, que desde o berço [a]atraiu por sua graça, gentileza e vivacidade toda a atenção e solicitude da boa velha» (AEI, 101981: 16), e lhe proporciona uma educação esmerada, mesmo sabendo que a moça é filha de Juliana, uma escrava assediada por seu marido.

À semelhança de Teresa, de “Pai Raiol, o Feiticeiro”, e ao contrário do seu marido devasso (AEI, 101981: 16), a mãe de Leôncio, como «esposa virtuosa» aparece caracterizada como o exemplo da generosidade, da bondade:

Todavia, como para indenizá-la [a Isaura] de tamanha desventura, uma santa mulher, um anjo de bondade, curvou-se sobre o berço da pobre criança e veio ampará-la à sombra de suas asas caridosas. A mulher do comendador considerou aquela tenra e formosa cria como um mimo, que o céu lhe enviava para consolá-la das angústias e dissabores, que tragava em conseqüência dos torpes desmandos de seu devasso marido.

Levantou ao céu os olhos banhados em lágrimas, e jurou pela alma da infeliz mulata encarregar-se do futuro de Isaura, criá-la e educá-la, como se fosse uma filha.

Assim o cumpriu com o mais religioso escrúpulo. À medida que a menina foi crescendo e entrando em idade de aprender, foi-lhe ela mesma ensinando a ler e escrever, a coser e a rezar. Mais tarde procurou-lhe também mestres de música, de dança, de italiano, de francês, de desenho, comprou-lhe livros, e empenhou-se enfim em dar à menina a mais esmerada e fina educação, como o faria para com uma filha querida. (AEI, 101981: 17)

Revelador desta moralidade patriarcal é o facto de a própria santa protetora de Isaura não lhe conceder logo a liberdade, por entender que ela não saberia lidar com a situação e aproveitá-la plenamente como os brancos. Esta decisão da mãe de Leôncio reforça, de

forma indelével, a imagem de indigência e de ingratidão associada ao escravo, mesmo que com qualidades únicas, como era o caso de Isaura.

Tal noção torna-se ainda mais percetível no momento que Malvina questiona a sogra sobre a razão da não libertação de Isaura, uma menina que ela considera não ter nascido «para ser escrava». A mãe de Leôncio, porém, apesar de dar razão à nora, confessa não ter coragem suficiente para a libertar, argumentando com razões de ordem pessoal — Isaura era o passarinho que Deus lhe deu para a «consolar e tornar mais suportáveis as pesadas e compridas horas da velhice» —, e de natureza social. Para a benemérita senhora, a libertação de Isaura não fazia sentido, pois, além de considerar que na fazenda sob a sua proteção Isaura era ainda mais livre do que ela própria, entendia que a sua «patativa», se fosse libertada, corria o perigo de se perder, transviar, não saber o que fazer, e, assim, «nunca mais acertar com a porta da gaiola» (AEI, 101981: 18).

A generosidade dos brancos, manifesta logo no momento em que Malvina é apresentada pela primeira vez («posto que vaidosa de sua formosura e alta posição, transluzia-lhe nos grandes e meigos olhos azuis toda a nativa bondade de seu coração»), é reforçada quando tenta convencer o marido a dar a liberdade a Isaura, como já havia prometido. Nessa circunstância da narrativa, e na presença de Henrique, Malvina, ansiosa e melodramaticamente, confessa ao marido que desesperava por vê-lo. Apesar da aparente e cínica não compreensão da sua aflição por parte de Leôncio, ela ganha coragem e afirma que apenas depende dele a libertação de Isaura. Para a generosa Malvina, era urgente a libertação de Isaura: «— Não te lembras de uma promessa, que sempre me fazes, promessa sagrada, que há muito tempo devia ter sido cumprida?... hoje quero absolutamente, exijo, o seu cumprimento.» (AEI, 101981: 21).

Outro exemplo da mentalidade patriarcal é Geraldo, advogado de Álvaro. Conquanto seja defensor da liberdade dos escravos, pois vê no sistema escravocrata uma instituição abjeta que provoca «uma infinidade de abusos, que só poderão ser extintos, cortando-se o mal pela raiz» (AEI, 101981: 92), ele, ambiguamente e mais do que uma vez, manifesta influência de uma conceção senhorial que considera o escravo uma propriedade inalienável, sobre a qual o amo tem uma série de direitos indiscutíveis.

Longe de ser isolada, esta posição, tal como a do narrador de As Vítimas Algozes, quando defende que aos proprietários de escravos deve ser paga uma indemnização pela

sua libertação, parece reproduzir a opinião daqueles que julgam que os senhores não devem ser prejudicados com a abolição da escravatura.

Esta ideia é tanto mais importante, uma vez que o próprio narrador mostra empatia e uma identificação com o pensamento de Geraldo. Para o narrador-autor, também ele de formação jurídica, o advogado é o contraponto racional e esclarecido de um Álvaro emotivo e excêntrico:

Entre as relações de Álvaro era a que cultivava com mais afeto e intimidade; uma inteligência de bom quilate, firme e esclarecida, um caráter sincero, franco e cheio de nobreza, davam-lhe direito a essa predileção da parte de Álvaro. Seu espírito prático e positivo, como deve ser o de um consumado jurisconsulto, prestando o maior respeito às instituições e mesmo a todos os preconceitos e caprichos da sociedade estava em completo antagonismo com as ideias excêntricas e reformistas de seu amigo; mas esse antagonismo longe de perturbar ou arrefecer a recíproca estima e afeição, que entre eles reinava, servia antes para alimentá-las e fortalecê-las, quebrando a monotonia, que deve reinar nas relações de duas almas sempre acordes e uníssonas em tudo. (AEI, 101981: 64)

Certamente por estas razões, apresentada como a imagem da ponderação e da sensatez, a posição cautelosa do Dr. Geraldo ganha contornos mais precisos quando interroga sobre os verdadeiros motivos que levam Álvaro a amar Isaura.

Influenciado por uma visão patriarcal, este advogado crê que Álvaro só se interessa por Isaura, por causa de um espírito excêntrico, compassivo e filantrópico, numa reação caprichosa, reforçada pelo conhecimento da sua condição escrava e do seu sofrimento.

Demonstrando preconceito, Geraldo não acredita que um branco distinto ame uma escrava, mesmo que bela, bem-educada e branca:

O amigo de Álvaro arrepiou-se com esta deliberação tão franca e entusiasticamente proclamada com essa linguagem tão exaltada, que lhe pareceu um deplorável desvario da imaginação.

— Nunca pensei, — replicou com gravidade, — que a tal ponto chegasse a exaltação desse teu excêntrico e malfadado amor. Que por um impulso de