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4. MARIA FIRMINA DOS REIS, A VOZ CONTRACORRENTE

4.3. Os Contornos da Africanidade

A missão de apresentar um negro, um escravo digno de respeito e humano, não estaria completa se em Úrsula não houvesse a assunção e o orgulho da africanidade, bem explícita em determinadas atitudes e falas de Susana, de Túlio e de Antero.

Para tanto, é necessário compreender que não se pode construir a história de um povo ou de uma etnia sem se designar os seus ancestrais e, assim, estabelecer com eles uma filiação identitária. Com esta visão, recordando Thiesse, é interessante verificar que os mesmos pressupostos que estiveram na base da construção das identidades nacionais europeias se aplicam de igual forma à construção de uma espécie de identidade afro-brasileira. Para a autora, a «vida das nações europeias começa com a designação dos seus antepassados e com a proclamação de uma descoberta: existe um caminho de acesso às origens, que permite descobrir avós fundadores e recolher os seus preciosos legados» (Thiesse, 2000: 25). Ora é precisamente isso que Maria Firmina dos Reis faz, através de um processo de rememoração. Desse modo, a escritora tenciona recuperar a identidade e, em simultâneo, reconstruir, a partir de uma cultura que se julgava inexistente ou inferior, a história do negro no Brasil.

Reunindo os elementos apresentados, pode-se afirmar que a escritora maranhense, nessa empresa a que se propôs, desbrava o caminho para uma espécie de estética ou

poética da memória que será visível, também, na poesia de Castro Alves (século XIX), e típica na narrativa da escritora afroamericana Toni Morrison (século XX).

62 Com esta referência, parece que se vai iniciar uma crítica feroz ao facto de o escravo se haver alienado pelo álcool.

À semelhança de Amada, de Morrison, pode-se dizer que Úrsula, um século antes, se institui como uma escrita que vê na memória um veículo que permite a denúncia e a revelação da tradição, das lembranças de identidades diversas. Na linha do que pensa José Eduardo Giraudo a propósito de Amada, onde o «uso da memória na ficção afro-americana contemporânea» surge como «um trabalho de resgate que mergulha fundo na busca de uma tradição oral e escrita» (Giraudo, 1997: 35), a narrativa de Maria Firmina dos Reis procura no passado de Susana a identidade e a liberdade perdidas.

Incluir a mãe Susana na ação do romance serve justamente essa poética da memória63. Como a mãe Joana, vinte e oito anos mais tarde, no conto “A Escrava” (AE, 42004: 239-62), Susana é a verdadeira africana que, tendo sido capturada, arrancada à sua terra e à sua família, e vivido a inumana travessia do Atlântico, se ergue como uma testemunha privilegiada da história de todos aqueles que viveram a mesma situação. Nessa ordem de ideias, a escrita em Úrsula é de memória.

Legitimada pelo sofrimento da escravidão, a escrava protetora de Túlio, como a voz do outro, faz a ligação entre o passado e o presente, não deixando cair no esquecimento o mal que a instituição esclavagista provocou ao africano.

Exemplo do que se afirmou constata-se no momento em que Túlio se prepara para partir com Tancredo. Susana, que se encontra a fiar e a fumar cachimbo, repreende-o por ele abandonar as suas senhoras e acompanhar o cavaleiro (cf. U, 42004: 112). A velha escrava procura demovê-lo da sua intenção, chantageando-o emocionalmente e acusando-o de ingratidão por abandonar a senhora que ele próprio considera «boa e generosa» (U,

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2004: 112-4). Túlio, redarguindo que estará ausente pouco tempo e que terá muitas saudades, fica aborrecido e refere que a sua partida não diz respeito à troca de um cativeiro por outro, à simples troca de senhor, de Luísa B. por Tancredo. Apesar de reconhecer a generosidade da senhora, ele não esquece a sua condição de escravo e, por isso, não troca o cativeiro por cativeiro, mas «por liberdade, por ampla liberdade» (U, 42004: 114). Segundo refere, a sua partida deve-se ao facto de poder escolher e à gratidão que sente pelo cavaleiro que lhe possibilitou a liberdade, que ele já tivera em África.

63 Essa poética da memória verificar-se-á, também, em Castro Alves no poema “A Canção do Africano”, d’

Os Escravos, em 1863, quando uma «negra escrava», recordando a sua terra, afirma que lhe quer «bem», que

De imediato, o que acontece constitui, no conjunto do romance, um momento elementar para perceber como a memória, a propósito da discussão sobre a liberdade, vai buscar o passado e o reaviva.

Contrariando Túlio, Susana relativiza e questiona a sua liberdade, afiançando-lhe que a liberdade a que ele se refere não se pode comparar à que ela já tivera na sua terra natal, África, pois a dele fora comprada. Nessas reflexões sobre a liberdade, o que se depreende do testemunho da negra é a noção de que a liberdade é natural, fruto da oferta divina, e não concedida pelo homem. Citando Zahidé Muzart, «é Mãe Susana quem vai explicar a Túlio [...] o sentido da verdadeira liberdade, que não seria nunca a de um alforriado num país racista.» (Muzart, 2000: 266). Assim, Túlio nunca seria verdadeiramente livre.

Então, Susana, amargurada e cheia de saudades da sua aldeia, revive o despertar idílico do dia africano com «um sol rutilante e ardente» (U, 42004: 115), e conta ao jovem negro a história da sua vida, que se pode confundir com a história de vida de qualquer outra escrava africana. A chorar, dando uma imagem idealizada de uma África harmoniosa, tranquila e feliz, ela recorda como foi ditosa ao brincar alegremente com as suas companheiras nas «descarnadas e arenosas praias» (U, 42004: 115).

Logo a seguir, ao lembrar a família, as palavras emotivas de Susana traduzem o que era negado aos escravos no Brasil. Revelando que os negros tinham família e tinham sentimentos como os brancos, a escrava não olvida que os pais lhe deram um marido que ela amou, «como a luz» dos seus «olhos», de quem teve um «filha querida», que era a sua «suprema ventura» (U, 42004: 115). Rejeitada aos escravos na narrativa brasileira, é a noção da maternidade, da família, e do amor, que se tenta resgatar, tal como faz Castro Alves na poesia.

Magoada pela consciência do que perdeu, a fiel escrava de Luísa B. relata de imediato como principiou o seu cativeiro. Nessa reescrita da história, ao mesmo tempo que se denuncia a escravatura, diz-se como foi capturada no tempo da colheita, numa «manhã risonha e bela», por «homens sem compaixão», bárbaros, capazes de sorrir perante as lágrimas alheias (U, 42004: 116). Por outro lado, a humanidade e a consciência crítica de Susana já visíveis na dor profunda que constituiu a perda do país, do marido, da filha e da liberdade, surgem realçadas, quando descreve os «trinta dias de cruéis tormentos» no navio negreiro.

A partir de então, o que sobressai é «a condição diaspórica vivida pelos personagens arrancados de suas terras e famílias para cumprir no exílio a prisão representada pelo trabalho forçado» (Duarte, 42004: 274).

Através desse percurso pela memória de Susana que leva a África e aos primeiros momentos do cativeiro, reconstruindo-se uma vida, uma história, a pormenorização na descrição das situações é importante para perceber a dimensão hedionda da captura dos escravos. Recordando a desumanidade do tráfico proibido há nove anos, Firmina, na boca de Susana, denuncia explicitamente os castigos que sofrem os cativos64, alude aos instrumentos de tortura, refere o tratamento dos negros como «animais ferozes»:

— […] Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se de minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. [...] Meteram-olhavam-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas que se levam para recreio dos potentados da Europa. (U, 42004: 117)65

No fim do seu discurso, antes de abençoar Túlio para a sua viagem, a mãe negra diz-lhe que se resignou a tudo, às atrocidades, primeiro às de F. de P., depois às de Paulo B., que sofreu com os maus-tratos dados aos seus companheiros de cativeiro, e, finalmente, que, embora ame as suas senhoras, nada a fará esquecer a dor da separação da sua família. A memória da sua identidade não o permitirá. Apenas a morte, refere tragicamente, o poderá fazer (cf. U, 42004: 118-9).

Também Túlio menciona a África não por memória de situações vividas, pois é escravo nascido no Brasil, mas por intermédio do testemunho de outros escravos.

64 Estabelecendo uma ponte com Amada, narrativa do século XX, verifica-se, no mesmo sentido da obra da escritora maranhense, que a força de vontade, a coragem da protagonista, Sethe, consubstancia, como que arquetipicamente, uma visão épica e, ao mesmo tempo, trágica, da mulher negra que sofreu os horrores da escravatura.

Como Susana, a evocação do passado de Sethe evidencia, assim, mais do que o seu carácter excecional e corajoso, a sua condição humana, a sua humanidade, e, ao mesmo tempo, focaliza as atrocidades cometidas pelos escravocratas, materializadas, por exemplo, nas cicatrizes de Sethe (cf. Morrison, 1987a: 28-9), e no sofrimento da sua mãe: «Um dia pegou-me ao colo e levou-me para trás do fumeiro. Ali abriu a blusa do vestido, levantou o seio e apontou para uma marca abaixo dele. Sobre a costela havia um círculo e uma cruz feitos com ferro em brasa.» (Morrison, 1987a: 83).

65 Esta passagem mostra uma denúncia feita de forma mais direta do que a de Castro Alves no “Navio Negreiro”, porque posto na boca da própria personagem e não na de um sujeito poético, como no poeta baiano.

Conversando com o cavaleiro depois de ele recuperar os sentidos, ele amaldiçoa o cativeiro, questiona os seus fundamentos e afirma, sem rebuço, que o negro também era «livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo». É a imagem de África, livre e associada à família, que ele elogia e que se perscruta na «nênia plangente» do pai e na «canção sentida» da mãe (U, 42004: 38).

Posteriormente, ainda por intermédio do protegido de Tancredo, que se regozijava com a emancipação alcançada, a África e os seus sertões, a terra dos seus pais, aparece como a representação idealizada da liberdade (cf. U, 42004: 42).

A partir do que se enunciou, pode-se concluir que este conjunto de personagens negras — Susana, Túlio e Antero também ele relembra hábitos culturais africanos como o fetiche, o vinho de palmeira bebido nas festas (cf. U, 42004: 208) —, encarnando uma espécie de memória coletiva, é a prova de que o conceito da terra de origem, a noção das raízes, não deixou de existir. Por isso, o negro não pertence a uma etnia despojada de cultura, nem de ancestralidade. Na verdade, tem uma história que precisa de ser contada e reconstruída, após longos anos de tentativa de desculturação provocada pelo branco.

Este romance, apresentando todo um mundo de amplitude polifónica (cf. Bell, 1992: 10), onde as personagens refazem, com uma intenção prospetiva e libertadora, uma memória de escravatura, opõe-se à univocalidade das narrativas elaboradas por escritores brancos do século XIX, tenta o preenchimento de vazios e procura uma identidade.

Com a noção de que a escravatura foi demasiado terrível e de que muito ficou por dizer, Maria Firmina dos Reis, como Toni Morrison mais tarde, entrando nos jardins das suas avós, descendo à interioridade das personagens, como que numa arqueologia literária baseada na informação e na imaginação, recolhe pedaços do passado, e, dessa forma, tenta urdir uma verdade feita de imagens e quadros. Trata-se de uma verdadeira reescrita da história.