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5. REALISMO, NATURALISMO, ALUÍSIO E MACHADO

5.2. Uma Leitura de O Mulato

5.2.4. Raimundo e a sua conceção de escravo

A análise sobre a presença da escravidão neste romance de Aluísio Azevedo não ficaria completa sem que se incluísse a perspetiva do seu protagonista, Raimundo.

Mulato, mas desconhecedor das suas origens, tem-se desde logo de entender que as opiniões que Raimundo vai tecendo, até saber que era filho de uma escrava negra, devem ser entendidas como as de um branco. Não um branco maranhense, claro, mas um branco, educado no estrangeiro e, por isso, influenciado certamente pelo ideário positivista e pela crença na ciência (cf. Mérien, 1988: 280)

Esse aspeto, aliás, aparece salientado desde o primeiro momento em que Raimundo surge na ação. Sóbrio, sério, com bom gosto, amante das artes, das ciências e das literaturas, o rapaz, numa lógica naturalista, pauta a sua conduta pela dedução lógica (cf.

OM, 1970: 61), o que lhe confere uma autoridade inusitada para comentar o que vê em São Luís.

Na verdade, Raimundo, no decorrer da obra, não se pronuncia muitas vezes sobre a escravidão no Brasil, nem o seu pensamento, sob a focalização interna (o que não é muito frequente em obras de cariz naturalista), é muito explorado na 3.ª edição (1889).

Na 1.ª edição, a posição da personagem e a do narrador são mais contundentes na crítica ao sistema esclavagista e, em particular, à sociedade maranhense que o aplicava de forma tradicionalmente rigorosa e desumana:

Será razoável condenar um escravo por ter matado o senhor? Ainda mesmo que esse escravo estivesse no seu juízo perfeito? Para que o escravizaram? Para que fizeram de um homem uma besta? As bestas feras não são responsáveis pelos seus actos! E demais, na minha fraca opinião, foi crime por crime — um escravizou, o outro matou — ficaram quites!

— Ora! ora não senhor! essa agora é que é muito forte ! — o, homem não escravizou, apenas o que fez foi comprar um escravo!

— Vem a dar na mesma! roubar ou comprar um roubo (sabendo a procedência) é a mesmíssima cousa — eu considero sempre um crime comprar ou vender um homem. Esses traficantes, que andam descaradamente negociando em negros, são uns grandessíssimos criminosos, são tão criminosos como o governo que consente semelhante imoralidade!

E já que o senhor falou-me ainda há pouco em religião, e por me parecer que o senhor me supõe o menos religioso dos homens, pergunto-lhe, aqui que ninguém nos ouve — onde está a religião desses miseráveis que se dizem cristãos e vendem seu semelhante como os judeus venderam Cristo? — Jesus pregou a igualdade, a humanidade e o direito natural do homem! Em que consiste a

religião dessas senhoras maranhenses, que travam do chicote e escadeiram um negro a ponto de matá-lo?! (OM, 1881, 277-8)

Estas referências, na edição de 1889, são reduzidas a pouquíssimas linhas.

Como se referiu anteriormente, a explicação para as diferenças entre estas edições reside no facto de em 1881, ainda em plena vigência da escravatura, se plasmar a manifestação em favor da abolição da escravatura (n’ O Pensador, Aluísio combatia e criticava e existência da escravidão). Ora, na edição de 1889, já posterior à Lei Áurea, o tom crítico é menos ostensivo.

De forma objetiva, deve dizer-se que Raimundo, na versão atual (a 3.ª), é contrária à existência da escravatura, certamente influenciado pela educação tida na Europa e pelos positivistas, que consideravam tal sistema como obsoleto, negativo ao desenvolvimento da civilização, do progresso do homem e da economia, além de ser capaz de desvirtuar e desmoralizar os costumes da sociedade.

Centrando-nos na edição de 1889, retenham-se alguns exemplos.

Por ocasião da ida a São Brás, quando Raimundo e o seu tio conversam empenhadamente sobre diversos assuntos, entre os quais a religião e escravidão (cf. OM, 1970: 183), é evidente a posição de ambos sobre a continuidade do sistema esclavagista. Enquanto Manuel, representando aqueles maranhenses que consideram a escravatura legítima, tenta defendê-la, Raimundo perde a paciência e, de maneira emotiva, apostrofa contra os que a defendiam e exerciam. A força da sua posição, marcada pela firmeza e lhaneza, emudeceu Manuel Pescada que não retorquiu.

O protagonista Raimundo aparece, assim, como um símile de Álvaro, de A Escrava Isaura, romance publicado em 1875, por Bernardo Guimarães, que é também alvo de análise nesta tese. Raimundo, com as devidas diferenças, é uma espécie de Álvaro mulato que se posiciona contra a escravidão.

Outro aspeto que contribuiu para a posição do filho de Domingas foi a memória — que não surge muito explorada no texto — dos castigos infligidos pela avó de Ana Rosa aos escravos no passado e no presente.

No capítulo III, que serve também à narrativa para contar a história de José da Silva e o que esteve na origem da ida do seu filho para São Luís, com a posterior partida para Portugal, procura apresentar-se Raimundo e, subsequentemente, dar-se a conhecer o que ele sabia sobre as suas origens.

Por dentro da memória de Raimundo, verifica-se que ele apenas se lembra de alguns episódios fragmentados: o momento em que Ana Rosa nasce, em que se destacam uma parteira mulata (Mónica) e o contentamento de todos, incluindo o dos escravos; e, mais importante para esta tese, os castigos que a sogra de Manuel Pescada, fazendo jus a seu nome, aplicava, selvaticamente, aos escravos:

[…] recordava-se também da Sra. D. Maria Bárbara, a sogra de Manuel, que ia, com muito aparato, visitar a neta; passar dias. Em geral, ela chegava à boca da noite, no seu palanquim carregado por dois escravos, vestida de enorme roda, cercada de crias e moleques, precedida por um preto encarregado de alumiar a rua com um lampião de folha, oitavado, duas velas no centro. E o demônio da mulher sempre a ralhar, sempre zangada, batendo nos negros e a implicar com ele, Raimundo, a quem, todas as vezes que lhe dava a mão a beijar, pespegava com as costas desta uma pancada na boca. (OM, 1970: 79)

Com base nos pormenores dados pela descrição apresentada, onde se destaca o feitio irascível de Maria Bárbara no tratamento dos escravos e também, como se acabou de verificar, com Raimundo, pode afirmar-se que, embora inconscientemente e sem saber as suas raízes, ele constrói uma imagem do branco, em particular de Maria Bárbara, assente na violência, na insensibilidade. Assim, para ele, a avó de Ana Rosa é vista como um demónio, enquanto o escravo é a vítima.

Esta ideia sobre os brancos, porém, perde vigor como o paradigma da posição do protagonista e também do próprio narrador sobre a existência da escravidão, pois não se pode inteiramente aplicar a todas as personagens brancas vistas por Raimundo. Por outras palavras, o que se pretende afirmar é que o pensamento crítico dele sobre a violência aos escravos é pontual e não sistemático, reduzindo-se ao comportamento de Maria Bárbara.

A ideia concebida por Raimundo sobre a velha matrona maranhense ganha outros contornos mais relevantes para a ação, quando, já no presente, encontrando-se como hóspede em casa do tio, há insistência na imagem de mulher-algoz para os escravos e que, além disso, estragava a aparente ideia da felicidade de viver em família que o rapaz desfrutava:

D. Maria Bárbara, porém, vinha quase sempre quebrar com o seu mau gênio aquele remanso de felicidade. Era cada vez mais insuportável o diabo da velha! berrava horas inteiras; tinha ataques de cólera; não podia passar muito tempo sem dar pancadas nos escravos. O rapaz, por diversas vezes, enterrara o chapéu na cabeça e saíra protestando mudar-se.

— Que carrasco! Dizia ele pela escada, a descer a quatro e quatro os degraus. Dá bordoada por gosto! Diverte-se em fazer cantar o relho e a palmatória!

E aquele castigo bárbaro e covarde revoltava-o profundamente, punha-o triste, dava-lhe ímpetos de fazer um despropósito na casa alheia. “Estúpidos!” exclamava a sós, indignado. (OM, 1970: 114)

O exemplo apresentado, numa leitura imediata, mostra Raimundo como um crítico convicto do comportamento dos senhores escravocratas. Note-se que ele, furioso, falando sozinho, trata Maria Bárbara por «carrasco» que age covarde e impiedosamente sobre os escravos. Até o uso de instrumentos de tortura como o relho e a palmatória é mencionado.

Porém, é notório que a sua indignação só ganha outra dimensão, na medida em que ela perturba a harmonia familiar e o seu envolvimento com Ana Rosa.

Consubstanciando o que se afirmou, retenha-se que o protagonista, na verdade, não faz nada para alterar a situação. Ele limita-se a ser um mero observador. Não esboça um protesto, não verbaliza uma crítica. Apesar de aquele castigo o revoltar e o deixar fora de si, ele, repare-se bem, «contentava-se com o passar uma parte do dia no bilhar…» (OM, 1970: 114).

Após o que foi exposto, podemos ser levados a supor que, se a opinião de Raimundo sobre a continuidade escravidão no Brasil é desfavorável, isso significa necessariamente que tem uma visão positiva do escravo.

Ora, tal não corresponde à realidade, apesar de se referirem os castigos aplicados a Benedito e de se amaldiçoar, de forma vaga, aquele que introduziu a escravatura no Brasil. Mais: em nenhum momento da narrativa se vislumbra um comentário positivo do protagonista sobre as qualidades do escravo ou sobre o homem de cor. Pelo contrário.

A título de exemplo breve, depois de ter saído de casa de Manuel Pescada, Raimundo, enquanto engendrava um plano para se casar com Ana Rosa, sonha fugir com a sua amada. Porém, o plano sai frustrado por intervenção de quilombolas. Esse ataque, ainda que num sonho, permite retirar a ideia de que mesmo o protagonista vê os negros de forma negativa. É como se só eles pudessem corporizar o crime, o homicídio vil (cf. OM, 1970: 214-5).

De igual forma, quando o mulato vai a São Brás e vê negativamente Domingas, assim como a forma como vê a negra que o serve quando sai de casa de Manuel Pescada, configuram outras situações exemplificativas da visão negativa do protagonista.

Sem apresentar situações adicionais, deve referir-se que, para se compreender a conceção negativa do escravo por parte de Raimundo, se torna imprescindível abordar a

questão do preconceito da cor, temática, aliás, vista pela generalidade da crítica literária como nuclear neste romance de Aluísio Azevedo.