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3. A ABOLIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DISSIMULATÓRIA 1. O Racismo e o Estereótipo: as Chaves do Poder

3.1.1. Como rebaixar quem não é branco

Com fronteiras temporais pouco precisas, o racismo existe onde um determinado conjunto de seres humanos é alvo de discriminação com base em características específicas que lhe são atribuídas enquanto grupo distinto.

Embora vulgarmente o racismo se associe a uma diferença entre a cor da pele dos opressores e dos oprimidos, essa não é a condição fundamental para existir o racismo. A dissemelhança encontra-se fundamentalmente num aglomerado nada simples de características apontadas por um grupo opressor-dominador a um outro de pessoas oprimidas. Entre esses traços caracterizadores, que constituem um conjunto sistemático de diferenças, ganham natural realce, além dos aspetos físicos da cor e da beleza ou ausência dela, a capacidade intelectual, a indigência, a lasciva sexualidade, a animalidade, a infantilidade, que servem sobretudo interesses de dominação e de controlo social.

Os traços apontados, dos quais as características físicas constituem apenas uma parte, configuram a imagem estereotipada do negro construída pelo ocidental. Pode mesmo dizer-se que foi no século dezanove que o racismo, asdizer-sente nas diferenças físicas, na sua tendência mais tradicional, teve, se não o seu nascimento, o seu grande desenvolvimento.

A versão tradicional mencionada baseava-se, entre outras, na teoria evolucionista de Charles Darwin. A partir dela, aceitava-se que a humanidade estava dividida em raças, cada uma configurada por características biológicas bem distintas, e que o domínio do mundo pela civilização ocidental traduzia a superioridade inerente às raças brancas face às demais num processo de seleção natural.

Assim, com suporte num pressuposto científico e em pensamentos de diversos filósofos, concebeu-se uma imagem do negro que tinha como propósito nuclear a justificação de uma relação social em que o branco detinha o poder de decisão.

É na segunda metade do século XIX momento-chave no aparecimento e desenvolvimento de uma sociedade materialista e capitalista enquanto modo de produção dominante no mundo até aos nossos dias que o racismo, como o conhecemos, é criado.

A implementação de grandes plantations no continente americano, desde os séculos XVII e XVIII, levou à utilização de mão-de-obra escrava importada do continente africano para as culturas do tabaco, do açúcar, do algodão, e do café destinadas a todo o mundo. Ainda que inicialmente o trabalho nessas plantações fosse feito exclusivamente pelo

escravo africano32, razões de ordem económico-social e necessidades do mercado mundial obrigaram a um incremento da importação de escravos africanos.

Desta maneira, constata-se que a formulação de conceções racistas medra num contexto de escravidão, que se pode considerar organizada ou sistémica, e tomando novas proporções, em virtude de uma lógica económica, que se traduz na necessidade de manter um sistema esclavagista.

Porém, essa realidade opressiva apenas recrudesce pelo facto de existirem não só pensadores que defendiam uma profunda desigualdade entre as raças, mas também a convicção conservadora que remonta às considerações bíblicas de que o negro era muito inferior ao branco33.

Acompanhando este pensamento que tentava legitimar a escravatura, defendia-se a conotação negativa da cor negra que só podia ter uma explicação: era fruto de maldição, mesmo que a Bíblia não fizesse qualquer referência à cor dos condenados à servidão.

A estas interpretações que pretendiam justificar a escravização do negro e a sua inferioridade perante o branco, podem aduzir-se as opiniões de Sir Francis Bacon, de David Hume, e de Kant, no século dezoito. Para eles, tendo em conta as artes, as ciências e a capacidade racional, que constituem os elementos que permitem ao homem o domínio do mundo, o negro, associado ao prazer e à ausência de religião, é claramente inferior ao europeu. Centrando-se nos aspetos racionais, Hume, em “Of National Characters”, de 1748, onde se estabelece uma comparação entre as diversas raças humanas, atribui aos negros um estatuto de inferioridade, que tem as suas origens na natureza. Para ele, a exclusividade da civilização de uma nação está dependente do homem branco:

Sinto-me inclinado a suspeitar que os negros e, em geral, todas as outras raças (porque há quatro ou cinco diferentes) são naturalmente inferiores aos brancos. Não houve nunca uma nação civilizada que não fosse branca, nem mesmo um indivíduo, que tivesse ganho eminência, quer na acção, quer na especulação, que não fosse branco. Falta-lhes o engenho, a arte e a ciência. Uma diferença assim uniforme e constante não aconteceria em tantos países e em tantas épocas se a natureza não tivesse distinguido na origem estas raças de homens (Hume apud Caldeira, 1994: 44).

32 No espaço que corresponde hoje aos Estados Unidos da América, havia uma grande percentagem de emigrantes europeus que durante um período de tempo fazia serviços em tudo equivalentes aos escravos, pois a isso obrigava o contrato assinado para pagar a viagem que efetuaram desde os seus países de origem. No Brasil, também se escravizaram inicialmente os indígenas.

33 «Mesmo aqueles que persistiam na crença na monogénese conseguiam justificar a diferença e inferioridade da raça negra, argumentando que Deus teria, a dada altura, dividido os descendentes de Adão e Eva numa raça superior e numa raça inferior.» (Caldeira, 1994: 34).

Também o filósofo alemão Kant, à semelhança de Bacon, afirma que os negros são seres que captam o mundo de forma muito limitada e muito infantil e que as diferenças existentes entre eles e os europeus são abissais: «Há uma diferença essencial entre estas duas raças humanas e parece tão grande no que respeita à alma como no que respeita à cor» (Kant apud Caldeira, 1994: 51).

Mais tarde, mas no mesmo sentido, Hegel refere que os africanos, além do seu «caráter singular» de difícil entendimento, «não têm uma História porque não têm comunicação escrita» (Hegel apud Caldeira, 1994: 45).

Visto desta forma, o negro, já com uma carga ancestral de inferioridade perante o branco, é alvo de um processo progressivo de despojamento que lhe vai retirando todas as características próprias de humanidade. O negro, o escravo, para a sociedade do século dezanove, não tem cultura, não tem religião, não tem iniciativa própria, não tem sentimentos. E é exatamente este conjunto de noções forjadas quer em preconceitos antigos e em pseudo-certezas de cientistas e de pensadores reconhecidos, quer em interesses económicos, que leva a que o africano seja mantido como escravo.

Tomando em linha de conta o que ocorreu na mesma época nos Estados Unidos da América, apesar das diferenças inerentes às diversas formas de colonização e aos povos que a implementaram, constata-se que houve um procedimento relativamente similar ao Brasil, no que diz respeito à forma de encarar o negro como um ser humano inferior e de considerar o papel que ele podia ocupar na sociedade. Tal afirmação é facilmente comprovável a partir das posições de dois grandes estadistas americanos, Abraham Lincoln e Thomas Jefferson.

Ainda que acreditando que a escravatura era um sistema ultrapassado e que degenerava não apenas os escravos mas também os senhores, essas duas referências da história norte-americana, de forma ambivalente, defendem que o negro é inferior quando confrontado com o branco e que, por isso, se deve problematizar e reequacionar o lugar que ocupa na sociedade.

Redator da Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, Jefferson, com espírito humanista muito influenciado por pensadores franceses, descrê da escravatura, sem contudo deixar de considerar os africanos seres inferiores, capazes de propagar o mal aos seus senhores. Evidentemente estas opiniões sobre os negros marcaram

e influenciaram uma época. Todavia, demonstrando ambiguidade e incongruência, Jefferson, mesmo desprezando o sistema esclavagista, era proprietário de escravos e tinha mesmo filhos de escravas. Para ele, a existência da escravatura violenta e contamina a consciência moral do seu povo: «Toda a relação entre o senhor e o escravo é um exercício constante das mais violentas paixões, do mais infatigável despotismo de um lado e da mais degradante submissão do outro.» (Jefferson apud Caldeira 1994: 39).

A opinião de Thomas Jefferson sobre a escravidão reflete, assim, toda uma mentalidade que predominava e se podia resumir na grande dificuldade em aceitar a raça negra com as suas diferenças e, como consequência, considerá-la inferior. A imagem que, no final do século XVIII, ele traça do negro é esclarecedora:

A primeira diferença que nos chama a atenção é a cor. Quer a cor negra resida na membrana reticular entre a derme e a epiderme, quer na própria epiderme; quer derive da cor do sangue, da cor da bílis, ou de qualquer outra secreção, a verdade é que a diferença está estabelecida na natureza e afigura-se-nos tão real como se conhecêssemos perfeitamente a sua base e a sua causa. [...] Para além da cor, do gesto, do cabelo, há outros traços físicos distintivos que comprovam a diferença de raça. Têm menos pêlo na face e no corpo. Segregam menos dos rins e mais pelas glândulas da pele, o que lhes atribui um odor muito forte e desagradável. [...] São, pelo menos, igualmente corajosos e mais aventureiros. Mas isso pode talvez dever-se a uma falta de ponderação, o que os impede de ver o perigo antes de ele surgir. [...] São mais ardentes em relação à sua fêmea: mas neles o amor parece mais um desejo impetuoso do que uma mistura terna e delicada de sentimentos e sensações. [...] Em geral, a sua existência parece feita mais de sensações do que de reflexão. [...] Se usarmos como termos de comparação as faculdades de memória, razão, imaginação, parece-me que, quanto à memória, são iguais aos brancos, quanto à razão, muito inferiores, pois, quanto a mim, dificilmente encontraríamos um que fosse capaz de seguir e compreender as investigações de Euclides; e, quanto à imaginação, são insípidos, sensaborões e anómalos. (Jefferson apud Caldeira, 1994: 40)

Posteriormente, Abraham Lincoln, pouco tempo antes da abolição da escravatura nos Estados Unidos da América, julgava indispensável dar ao escravo a liberdade numa nação que se auto-proclamava democrática.

Num discurso feito no Congresso, “House Divided” (Lincoln, 1946: 372), Lincoln defende que o país não podia continuar a pactuar com o tratamento desigual entre seres humanos, escravizando os negros e mulatos. De acordo com Lincoln, a união e a integridade estavam ameaçadas com a existência de homens livres e não livres, com a existência de homens que defendiam o regime esclavagista e outros que eram claramente abolicionistas.

Porém, de forma muito dúbia, mesmo defendendo que os seres humanos nasceram iguais e que os negros deviam deixar a sua condição escrava, Lincoln achava que a raça negra era diferente, por causa da cor, da sua pouca capacidade intelectual e de uma moralidade lasciva e sem princípios (cf. Lincoln, 1946: 360).

Como se pode concluir, a discriminação racial e a escravatura, ao atuar numa lógica de causa efeito, têm como consequência uma progressiva degradação do negro (cf. Jordan, 1968: 80), originando que, para uma mentalidade ocidental, ele seja encarado como um ser diferente e inferior.

O Brasil, apesar de geograficamente afastado da Europa e dos Estados Unidos, foi certamente influenciado por alguns destes pensadores na configuração de uma mentalidade racista. Também ao longo do século XIX, alguns europeus visitaram o Brasil ou nele viveram, quer em missões diplomáticas ou académicas, quer em simples viagens de reconhecimento. O Conde de Gobineau (1816-1882), diplomata francês que percorreu o mundo, escritor, e filósofo, e Louis Couty, contratado em 1879, em substituição do professor Clement Jobert, para lecionar a cadeira de Biologia Industrial da Escola Politécnica (cf. Barbosa, 1988: 7), são alguns desses estrangeiros, vistos na época como representantes de uma Europa pretensamente esclarecida e iluminada.

Concisamente, Gobineau desenvolveu, com o seu livro Essai sur l'inégalité des races humaines (1853-5), a teoria do determinismo racial que influenciou o desenvolvimento de políticas racistas na Europa e que viria a ter uma importância decisiva na formulação do conceito da superioridade ariana concebida por Hitler, no século XX.

O filósofo francês, nesse texto, compara o cérebro humano de diferentes etnias e conclui que entre o seu volume e o grau de civilização há uma relação inequívoca. Ao abordar a questão da miscigenação entre raças, que ele pensa inevitável, Gobineau considera que a raça humana progressivamente degenerará física e intelectualmente.

Segundo Gobineau, a sociedade só poderá desenvolver-se, se a raça branca, sobretudo a ariana, com o seu grau de civilização, se sobrepuser às demais, eliminando os contactos com as raças preta e amarela. Dito de outra forma, de acordo com o diplomata, a raça branca e as suas potencialidades diluir-se-ão no contacto com as outras, o que no Brasil era mais do que evidente no contacto com os negros34.

34 Nas suas missões diplomáticas no Brasil — a primeira, em 1869, e a segunda, em 1876, enviado por Napoleão III —, Gobineau, presunçosamente, manteve apenas, no seio da corte, uma relação privilegiada com o Imperador Pedro II, desprezando o contacto com os intelectuais brasileiros. Para esta atitude

À semelhança de Gobineau, o naturalista suíço-americano Louis Agassis, no livro A Journey in Brazil (1868), sem grande repercussão no Brasil, reforça a ideia de que na época «o mal causado pela escravidão afigurava-se-lhe tão nefasto quanto a miscigenação» (Agassis apud Barbosa, 1988: 9). Para Agassis, a mistura de raças no Brasil, mais «do que em qualquer outro país do mundo», é a razão da decadência da sociedade «e que vai apagando, rapidamente, as melhores qualidades do branco, do negro e do índio, deixando um tipo indefinido, híbrido, deficiente em energia física e mental» (Barbosa, 1988: 9). Claro está que Agassis releva o facto de a deterioração se dever à raça negra, a mais inferior de todas.

Noutro sentido, Louis Couty, que foi ao Brasil ensinar Biologia, tenta demonstrar, em

Escravidão no Brasil (1881), a tese de que o país carecia de mão-de-obra para o seu progresso e desenvolvimento. De acordo com o autor, que elogiava «a harmonia racial que existia no Brasil entre homens de cor diferente» e condescendia com «os preconceitos de cor que caracterizam quase toda a população brasileira da época» (Mattoso, 1988: 24), os escravos, devido à sua incapacidade intelectual e inferioridade, não preenchiam essas necessidades.

Ainda que afirme que em terra brasileira o cativo não era «jamais visto como gado, como um ser inferior a ser utilizado» (Couty, 1988: 52-3), Couty via o escravo como uma criança grande e indigente, capaz apenas «de realizar tarefas repetitivas, especialmente na agricultura» (Mattoso, 1988: 26). Incapaz de ver preconceito racial num Brasil onde, segundo ele, as raças vivem harmoniosamente e «em condições frequentemente mais amenas do que aquelas em que se encontram muitos dos nossos assalariados da Europa» (Couty, 1988: 52-3), o professor francês explica o atraso da abolição justamente pelo facto de a natureza das relações entre as diferentes etnias ser pacífica.

Tal como Macedo, que imagina a sua concretização de forma gradual, Couty entende que se deve extinguir o trabalho escravo, «não porque seja prejudicial a uma classe de homens, mas porque é prejudicial a toda uma evolução social» (Couty, 1988: 74). Para Couty, com uma visão materialista, «o escravo representa um capital e não um indivíduo» (Couty, 1988: 76).

sobranceira, concorria o facto de o eminente francês não pressentir na América do Sul «nenhum motivo de interesse. Faltava o passado, faltava história à terra» (Broca, 1979: 311). Presumindo encontrar-se «numa terra meio selvagem» onde o «homem americano» era uma «expressão da sub-humanidade», o desalento e o desconforto do francês são evidentes (Gobineau apud Broca, 1979: 312).

Já para Tavares Bastos, nas Cartas do Solitário (1862), constata-se uma aproximação com as ideias de Jefferson e de Lincoln já referidas. Não obstante defenda, de forma acérrima, a liberdade dos escravos, em consequência da Lei de 1831, que nunca chegou a ser verdadeiramente cumprida35, Tavares Bastos crê na superioridade do homem branco sobre o negro. Por um lado, numa perspetiva economicista e não humanista, ele pensa ser o trabalho escravo muito prejudicial para o desenvolvimento e progresso do Brasil, pois considera-o de má qualidade, quando comparado com o trabalho efetuado pelos imigrantes, homens livres. Por outro lado, elabora um retrato do negro caracterizado pela boçalidade:

O homem livre, o homem branco, sobretudo, além de ser muito mais inteligente que o negro, que o africano boçal, tem o incentivo do salário que percebe, do proveito que tira do serviço, da fortuna enfim que pode acumular a bem de sua família. Há entre esses dous extremos, pois, o abismo que separa o homem do bruto. (Bastos, 31938: 160)

Com um discurso ambíguo, Tavares Bastos, se não deixa de considerar a escravatura bárbara, também não deixa de realçar que a emancipação é uma urgência devido ao aspeto económico e ao desenvolvimento do Brasil36.

O que se pode afirmar sem dúvidas é que, tanto para Tavares Bastos, no Brasil, como para Jefferson e Lincoln, nos Estados Unidos, e outros na Europa, o escravo era tido como inferior, o que permitia criar um cenário de superioridade racial por parte do homem branco:

Resta-me agora indicar que, além da desproporção quanto à quantidade, o europeu é incomparavelmente superior ao africano quanto à qualidade dos produtos e à variedade das indústrias e culturas que pode exercer. É um facto que dispensa demonstração. (Bastos, 31938: 165)

35 «Em nosso parecer é tempo de executar a lei e fazer justiça com desvelo o seu dever. Indague-se quais sejam os africanos distribuídos a particulares ou aplicados a serviços públicos, e proceda-se à alforria ou licenciamento de todos quantos houverem concluído o seu tempo. Não haja contemplações escandalosas, nem se dêem ouvidos a considerações egoístas. Se o estado precisa de braços, pague-os; não usurpe o direito nem oprima a liberdade de homens livres. Quando muito, admitam-se os africanos às obras públicas, mas mediante um salário razoável. Por amor de uma pequena economia não se cometa uma grande injustiça. Demais, libertados, os africanos, já ladinos, não boçais, deixam de ser meros consumidores, podem tornar-se e tornam-se produtores úteis.» (Bastos, 31938: 136).

36 «Meu desígnio, porém, não se limita a provar que o Brasil podia dispensar o comércio de escravos. Desejo ainda mostrar que ele foi muito prejudicial a certos respeitos, e tanto que, quando mesmo não pudesse ser substituído pela emigração europeia, fôra preciso bani-lo em todo o caso.» (Bastos, 31938: 163).

Num contexto desta natureza, não é difícil encontrar passagens que comprovem a influência dessa mentalidade nos textos de Macedo e de Guimarães.

3.1.1.1. A formulação do racismo em Macedo

Com uma conceção naturalista, onde se explicita uma tese, e, ao mesmo tempo, romântica, porque didático, no romance As Vítimas Algozes percebe-se o desenho de uma mentalidade contaminada por preconceitos rácicos. Como enfatiza Dante Moreira Leite, o racismo

era a fórmula preciosa para justificar o domínio branco sobre o resto do mundo: se as outras raças eram biologicamente inferiores, se eram incapazes de atingir os valores mais elevados da civilização, só poderiam sobreviver como as massas trabalhadoras submetidas aos brancos. (Leite, 51992: 131)

Assumindo essa ideia, delineiam-se no romance os contornos do que parece ser uma necessidade indispensável: conceber a imagem do escravo (Simeão, Pai Raiol, Esméria, Lucinda) ou do estrangeiro (Souvanel/Dermany) baseada na perversidade, na dissimulação, na ambição desmedida, na desonestidade, e sem princípios, para que se distingam os traços de superioridade característicos dos senhores brancos brasileiros: a generosidade, a dignidade, o empreendedorismo, a ingenuidade, o amor pela família. Simeão — que encarna os crioulos bem tratados pelos senhores; Pai Raiol — o negro que, representando os feiticeiros, é a imagem do ódio e da ameaça aos proprietários de escravos; Esméria e Lucinda — que traduzem a dissimulação e a perversidade; e, todos eles — o vício e a degradação moral que a escravidão provoca —, constituem personagens que, além de concretizar conceitos abstratos37, parecem ter como finalidade determinar o perfil do brasileiro proprietário como generoso e honesto.

Em “Simeão, o Crioulo”, observa-se, entre outros aspetos, que à dissimulação e traição de Simeão se opõem o carinho e a generosidade de Angélica e Florinda; à desumanidade e

37 Atente-se, ao contrário, que os nomes de personagens brancas — como Liberato, irmão de Cândida, que defende a emancipação dos escravos; e Angélica, que criou com todo o carinho Simeão que a havia de matar — configuram qualidades dos seres humanos.

desrespeito de Simeão se opõem a humanidade e excecionalidade de Hermano Sales que, aquando da morte do seu sogro, demonstrou uma grande sensibilidade:

[…] em poucos dias tinha sabido amar o pai de Florinda (...) chorou-o por amor, vendo-o morrer; mas combateu e domou os excessos da dor pela religião do dever: foi homem.

Simeão, chegando à fazenda, preparou como pôde a máscara do sofrimento para disfarçar a indiferença malvada da sua ingratidão (AVA, 31991: 54).

O momento em que Hermano descobre as idas de Simeão a sua casa, para se envolver com a mucama do seu pai, reforça as suas qualidades extraordinárias e salienta, mais uma vez, a superioridade perante o escravo, castigando-o em frente de Eufémia. Parecendo defender o castigo físico ao escravo quando prevarica, essa passagem assume ainda maior significado, na medida em que se observa o reconhecimento pelo escravo da supremacia da raça branca, encarnada em Hermano, que domina facilmente a raça negra, representada por