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5. REALISMO, NATURALISMO, ALUÍSIO E MACHADO

5.2. Uma Leitura de O Mulato

5.2.2. As outras personagens e a escravidão

Pensando no que se afirmou e recuperando a linha de uma ideia já aludida, as atitudes insensíveis de outras mulheres brancas maranhenses pouco consentâneas com um tempo marcado pelo Positivismo devem ser entendidas como o centro da crítica azevediana. Maria Bárbara, sogra de Manuel Pescada, Amância, e Maria do Carmo entram no quadro

das pessoas que encaram os homens de cor, mais do que os escravos, como seres inferiores.

Assim, embora Domingas seja a personagem de cor em que mais se evidencia a brutalidade senhorial, outros escravos, como Benedito, sentem igualmente o rigor da sua condição servil. O moleque Benedito, de acordo com o texto, é, reiteradamente, a vítima favorita dos caprichos e do autoritarismo de Maria Bárbara (desde logo simbólico o nome atribuído por Aluísio):

Nisto, ouviu-se um grande motim, que vinha da varanda.

— Ó Benedito! Moleque! Ó peste! Está dormindo, sem-vergonha?!

E logo o estalo de uma bofetada. — Arre! que até me fazes zangar com visitas na sala!... Era Maria Bárbara, que andava às voltas com o Benedito.

— Vai deitar a mesa do chá, moleque! (OM, 1970: 87)

Também Amância, outra mulher da sociedade de São Luís, amiga de Maria Bárbara, parece ter bebido da mesma cartilha os ensinamentos e a forma como tratar os escravos (cf.

OM, 1970: 84).

Este momento da ação em que ocorrem os factos mencionados, reunião em casa de Manuel Pescada para apresentar o sobrinho que havia chegado da Europa à sociedade de São Luís, é bastante rico nas considerações negativas sobre a escravaria, considerada indigente e atrevida.

Freitas, um dos convidados de Pescada, em conversa com Raimundo, tece considerações que podem ser julgadas como paradigmáticas da época. Como numa verdadeira crónica de costumes e desenhando os caracteres criticamente, o pai de Lindoca afirma que os escravos são necessários, mas, simultaneamente, achava que desempenhavam mal as tarefas atribuídas e que, pior de tudo, eram uma influência perniciosa para a sua família e, em particular, para as suas filhas:

Freitas passou-se à janela de Raimundo, e aproveitou a oportunidade para despejar contra este uma estopada a respeito do mau serviço doméstico feito pelos escravos.

— Reconheço que nos são necessários, reconheço!... mas não podem ser mais imorais do que são!... As negras, principalmente as negras!... São umas muruxabas, que um pai de família tem em casa, e que dormem debaixo da rede das filhas e que lhes contam histórias indecentes! É uma imoralidade! (OM, 1970: 88)

As palavras de Freitas apontam para aspetos relevantes e padronizados na forma como se encara o escravo na sociedade brasileira. Além da ausência de hábitos de higiene, a imoralidade, a lubricidade e a lascívia são traços recorrentemente destacados na sua caracterização:

Ainda outro dia, em certa casa, uma menina, coitada, apareceu coberta de piolhos indecorosos, que pegara da negra! Sei de outro caso de uma escrava que contagiou a uma família inteira de impigens e dartros de caráter feio! E note, doutor, que isto é o menos, o pior é que elas contam às suas sinhazinhas tudo o que praticam aí por essas ruas! Ficam as pobres moças sujas de corpo e alma na companhia de semelhante corja! (OM, 1970: 88)

Embora esse seja um aspeto a desenvolver posteriormente, não é despiciendo notar, desde já, a atitude crítica, perspicaz e assertiva do narrador, à forma como Freitas se refere à fatalidade de manter os escravos na sua condição servil: «Afianço-lhe, meu caro senhor doutor, que, se conservo pretos ao meu serviço, é porque não tenho outro remédio! Contudo...» (OM, 1970: 88).

Na mesma reunião, como se de um palco se tratasse, para que os leitores percebessem melhor o quadro social de São Luís apresentado, Aluísio coloca estrategicamente outras personagens que, com desprezo, tecem apreciações pejorativas sobre a vaidade das negras, que almejam ser como as brancas, e a dança como prática diabolicamente luxuriosa (Cf.

OM, 1970: 89). A cultura africana é, assim, menosprezada. Não se deve pensar, contudo, que esta é uma ideia exclusiva destas personagens de O Mulato. Ela poderia ser perfeitamente veiculada por outras personagens de qualquer outro romance do Brasil de oitocentos.

O que se constata é que muitos brasileiros, das mais variadas áreas — da ciência, sociologia, artes —, embora defendam a abolição da escravatura, não reconhecem uma igualdade plena ente brancos e negros. A sua cultura, de raiz ocidental, é a matriz que deve continuar a vigorar.

É o que afirma, a título de exemplo, Celso Magalhães, defensor confesso do fim do sistema esclavagista e apontado com uma das maiores influências de Aluísio Azevedo. Formado em Direito, mas também escritor, Magalhães, em A Poesia Popular Brasileira, e em artigos publicados na imprensa (O Trabalho, O Domingo, O País), demonstra aquilo que o norteia quando pensa na problemática abolicionista e nas relações entre brancos e

negros. Para ele, o branco, pertencente a uma raça superior, detém uma superioridade social e cultural sobre o negro (cf. Magalhães, 1973: 35).

Não se estranha, por isso, que Celso Magalhães veja o negro dominado pela incivilidade e pela animalidade, capaz de corromper com a sua ação os costumes e a cultura brasileira, branca:

Se há na raça humana coisa de bestial, o africano a possui. Entretanto ele entrou, cruzando-se, na formação de nossa população, e com ele entraram também os seus costumes, as suas festas, os seus instrumentos, o seu fetichismo e até a sua língua.

Este cruzamento não nos podia trazer bem algum. Trouxe mal. Deturpou a poesia, a dança e a música. (Magalhães, 1973: 45)

Como vemos, esta visão que despreza profundamente a cultura e os costumes africanos não é muito diferente da que Joaquim Manuel de Macedo imprime à obra As Vítimas Algozes (1869), onde se defende, como se constatou neste trabalho, a abolição da escravatura.

O que podemos inferir é que o intelectual brasileiro — onde o escritor naturalmente se inclui —, mesmo aquele influenciado pelo vento positivista, afinal não reconhece ao homem de cor, o direito à diferença cultural. O negro, persistentemente infantilizado na literatura brasileira de oitocentos, deve ser educado e integrado na cultura brasileira de matriz europeia, e, para tal, deve abdicar das suas tradições culturais.

Para esta mentalidade, muito contribuíram, certamente, os «preconceitos sobre as diferenças existentes entre as raças e o conceito implícito da inferioridade da raça negra» (Mérien, 1988: 67), reforçados pelo modo como os negros e os mulatos viviam, votados ao desprezo e abandono:

O ócio e o alcoolismo, tão presentes nos cortiços em redor da cidade, mais que uma predisposição natural dos negros à preguiça e ao vício, eram o resultado da decadência de uma província onde o trabalhador livre vivenciava em seu cotidiano uma realidade semelhante à dos escravos no campo e não conseguia emprego numa cidade desprovida de indústrias. (Mérien, 1988: 67)

Assim, destas referências àquilo que diversas personagens de O Mulato produzem sobre os escravos, pode concluir-se que há uma opinião generalizadamente negativa: mau serviço doméstico, indigência, luxúria, lascívia…