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3. A ABOLIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DISSIMULATÓRIA 1. O Racismo e o Estereótipo: as Chaves do Poder

3.2. Macedo e Guimarães: Abolicionistas ou Não?

3.2.1. Macedo e a desculpabilização senhorial

Já depois da abolição do tráfico negreiro, mas antes da Lei do Ventre Livre, da Lei dos Sexagenários, e, naturalmente, da Lei Áurea49, o autor de A Moreninha, numa época em que se começava a discutir com maior intensidade a questão servil, através de uma escrita prospetiva, traça, nas três novelas de As Vítimas Algozes, um plano contra a escravidão que visa, em última instância, a sua abolição.

Assim, como libelo anti-esclavagista, são visíveis, ao longo dos textos, os frequentes apelos do narrador à supressão do que ele considera um «cancro», seja a partir de um discurso apaixonado, como no prólogo, em que considera indispensável à causa pública «iluminar os proprietários de escravos e convencê-los de que está em seus próprios interesses auxiliar o estado na obra imensa e escabrosa da emancipação», seja através de um discurso reiterativo, melodramaticamente desesperado, apelando ao fim da escravidão (AVA, 31991: 4).

Tomando em atenção o prólogo, onde se verifica uma tentativa de legitimação do discurso, assiste-se ao esforço do autor em conferir às suas novelas uma auréola de verosimilhança, transformando-as mais em documento do que em ficção. Para ele, os seus textos não passam de «romances sem atavios, contos sem fantasias poéticas» (AVA, 31991: 1).

Numa espécie de texto programático e com uma intenção didática, Macedo dá a conhecer o que pensa sobre a existência da escravatura, que aparece caracterizada como algo que corrompe: «um mal enorme, que afeia, infecciona.» (AVA, 31991: 1).

O escritor, por esse motivo, é explícito e apela aos fazendeiros, a quem se dirige particularmente, a fim de que defendam uma solução para o problema da emancipação dos escravos, que deve ser gradual. Com um tom profético, argumenta que, caso a emancipação progressiva, que ele considera irreversível, não aconteça, o resultado serão as convulsões sociais50.

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O comércio/tráfico escravo só foi abolido em 1850. Só depois se envidaram esforços no sentido de condenar toda a escravidão. Passo importante foi a aprovação da Lei do Ventre Livre, em 1871, concedendo a liberdade (ao atingirem os 21 anos) a todos os escravos nascidos daquela data em diante. Depois, seguiu-se a Lei dos Sexagenários, também conhecida por Saraiva Cotegipe. Finalmente, deu-se a abolição da escravatura em vários estados, culminando com a promulgação nacional da Lei Áurea, de 1888.

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Apelando neste sentido, é curioso verificar que Macedo, decerto sabedor das leis que se preparavam a favor de uma emancipação gradual, antecipa a publicação da Lei Rio Branco, em 1871, dando lastro a que se afirme que as novelas de As Vítimas Algozes foram encomendadas pelo imperador Pedro II, a fim de preparar psicologicamente os proprietários de escravos. Talvez não seja ao acaso que, no prólogo, o escritor refira

Apoiado na estética naturalista e influenciado pelo modo dramático, Macedo constrói o cenário «veracíssimo» de que a escravidão «é peste» que degrada o ser humano (AVA,

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1991: 314). Desse ponto de vista, compreendem-se as insistentes referências às consequências nocivas que o sistema esclavagista provoca nos escravos-protagonistas das novelas. Se por um lado, Simeão deseja ardentemente a liberdade e Lucinda anseia por uma vida de prazer fora da sua condição, igual à da sua senhora, Pai Raiol, marcado pelos castigos infligidos pelos senhores, tenciona tomar o lugar de Paulo Borges como proprietário da fazenda.

Tais intenções servem igualmente de argumento para os apelos mais ou menos melodramáticos em prol da abolição, sobretudo no final de cada uma das novelas.

Exemplificando, no final de “Simeão, o Crioulo”, depois de se denunciarem os crimes do protagonista e de se afirmar que «a escravidão degrada, deprava, e torna o homem capaz dos mais medonhos crimes», o fim do sistema escravocrata é apontado como a única solução para acabar como os inúmeros Simeões que, generalizadamente, contaminam com o seu veneno a sociedade brasileira: «Se quereis matar Simeão, acabar com Simeão, matai a mãe do crime, acabai com a escravidão.» (AVA, 31991: 68).

Já em “Pai Raiol, o Feiticeiro”, seguindo a mesma estratégia narrativa da novela anterior, uma vez mais — apontar primeiro os crimes praticados pelo maquiavélico feiticeiro e pela sedutora e dissimulada Esméria —, insiste-se em referir que, apesar de terem sido castigados com a morte, a escravidão persiste, deixando entender que as mesmas situações se podem repetir: «A escravidão, porém, continua a existir no Brasil. E a escravidão, a mãe das vítimas-algozes, é prolífica.» (AVA, 31991: 152).

No fim de “Lucinda, a Mucama”, é Frederico — excepcionalizado ao longo do texto como um ser ponderado, digno e consciente do problema da escravidão — quem, votando Lucinda e o pajem devassos ao abandono, apela, repetida e teatralizadamente, ao fim da escravidão (cf. AVA, 31991: 314)

No entanto, contrariamente à intenção autoral proposta inicialmente51 e àqueles que veem no texto de Macedo um intuito vincadamente abolicionista52, As Vítimas Algozes,

ainda, num tom didático, que é dever do governo, da imprensa e também seu, «tornar bem manifesta e clara a torpeza da escravidão.» (AVA, 31991: 4).

51 Macedo, de acordo com o prólogo, pretendia tornar evidente as «misérias tristíssimas, e os incalculáveis sofrimentos do escravo, por essa vida de amarguras sem termo, de árido deserto sem um oásis, de inferno perpétuo no mundo negro da escravidão» (AVA, 31991: 4),

52 Veja-se como, já depois da morte de Joaquim Manuel de Macedo, Inocêncio Francisco da Silva vê As

mais do que questionar a legitimidade da escravatura imposta e mantida pelos senhores e mais do que denunciar os sofrimentos infligidos aos escravos, parece erigir-se como um documento de argumentação que pretende expor as consequências negativas que a escravatura provoca numa classe que se começava a dividir. Por isso, de modo análogo, os três textos apresentam escravos inimigos que vão provocar a morte, o sofrimento, a degradação moral.

Na primeira novela, o escravo protegido acaba dissimuladamente e de forma ingrata por matar toda a família de Angélica. Apresentando de maneira gradativa a ingratidão de Simeão, vislumbra-se: a ausência de educação e de um controlo rigoroso; o frequentar da venda; a amizade com o Barbudo; o roubo do colar que é perdoado por Florinda, mas que é castigado pela primeira vez por Domingos Caetano; o ódio que surgiu após esse episódio; a insensibilidade do escravo perante a doença e a morte do seu senhor; o seu rancor por Hermano e Florinda que se casaram; a urdidura do plano terrível para assaltar e matar a família que o protegera; o assalto e o assassínio de Angélica, Florinda, e Hermano Sales.

De entre os momentos destacados no parágrafo anterior, a descrição do assalto e da morte da família senhorial ganha particular relevância pela violência e pela impiedade manifestadas por Simeão. Contraposto à coragem e excecionalidade de Hermano, que tenta defender heroicamente os seus, endemonizado, o crioulo amado, «sem compaixão da fraqueza, sem lembrança dos benefícios», esmaga a cabeça de Angélica com um machado (AVA, 31991: 65).

Com o exemplo do mulato Simeão dá-se corpo à ideia de que os escravos são uns inimigos dentro de casa, uns traidores que levam à total perdição os senhores, configurando a noção de imaginário do medo senhorial.

Principiando por afirmar que o mal de tudo veio de África, «o feitiço como a sífilis, veio d’África» (AVA, 31991: 72), Macedo, de forma generalista e numa lógica de causa-efeito, considera que o negro reduzido à sua condição escrava provocou a degradação da sociedade, inoculando-lhe uma série de vícios. E dessa forma dá-se a conhecer o processo de inversão no sistema escravocrata: a vítima afinal é o algoz, enquanto o opressor é vitimizado.

moda que enlameava a nossa civilização, e para apagá-la empregou o concurso de sua pena, escrevendo As

Vítimas Algozes, aquele arranco heróico do pulso contra as cadeias. Era abolicionista, antes mesmo de se ter

Como Simeão, Pai Raiol e Esméria, ambos maléficos, vão causar a decadência de Paulo Borges e a morte da restante família, que, alegoricamente, como a de Domingos Caetano ou de Florêncio da Silva, representa a família brasileira que se sente ameaçada pelos escravos.

Pai Raiol, com os seus dotes da perversa feitiçaria, provoca incêndios, causa a morte de animais, industria Esméria no sentido de ela seduzir Paulo Borges, e, posteriormente, convence-a facilmente a envenenar sucessivamente Teresa, os filhos e o amante.

Com lugar de destaque na segunda novela, o sofrimento e a morte causadas a Teresa e aos filhos trazem à tona todas as emoções e provocam o medo, mas é sobretudo a progressiva degradação moral de Paulo Borges, que abandona a mulher honrada e fidelíssima, que constitui a prova de que os senhores sofrem um processo degenerativo, quando em contacto com os escravos. Com um tom moralizador, considera-se que a «torpeza da escravidão é contagiosa e se inocula na vida doméstica do senhor que ousa expor-se ao contacto vergonhoso com a escrava.» (AVA, 31991: 104). Paulo Borges, o paradigma do fazendeiro trabalhador e simples, deixa-se dominar pelas emoções e acaba enredado na teia de uma «paixão criminosa e torpe», desprezando o «amor honesto e puro» de Teresa e descuidando a atenção que devia prestar aos seus filhos, o que lhes causou a morte (AVA, 31991: 115).

A função de Lucinda no último texto deve ser encarada, precisamente, nos mesmos moldes das personagens referidas anteriormente, influenciando negativamente a sua senhora. O processo de degradação que Cândida sofre é, talvez, o mais completo de todas as novelas, uma vez que antes do aparecimento de Lucinda é mostrada como angélica e pura.

A metamorfose de Cândida, passando da pureza ao pecado, é, pois, suscitada pelas ações de Lucinda que, qual «charco» sobre a «fonte límpida» (AVA, 31991: 167), lhe fala em namoros, lhe leva bilhetes dos namorados encontrados nos bailes, ou lhe excita as emoções, falando de intrigas amorosas. Fruto desta influência permanente e com a ajuda prestimosa da curiosidade e da vaidade da jovem senhora, o que se assiste é a uma progressiva dependência de Cândida a Lucinda. A mucama, dominadora da sua sinhá-moça, é vista como escrava-mestra, que dá uma lição «agreste, escabrosa e imoral» (AVA,

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1991: 173), como se pode constatar no momento em que a ensina a omitir informações à mãe. Aprendendo com a mucama a dissimulação e a mentira, Cândida tornou-se «escrava

de sua escrava», e reitera mais uma vez a tese de que o escravo, primeiramente vítima, se torna algoz e castiga o senhor (AVA, 31991: 173).

Desde esse momento, o pudor de Cândida e a sua vergonha começaram a esbater-se e ela tornou-se curiosa, provocadora, atrevida. Após os ensaios amorosos com os mancebos que frequentavam os bailes e lhe enviavam correspondência, a sua degradação recrudesce a partir do instante em que conhece e se apaixona por Souvanel53.

Lucinda, «a fonte maldita» (AVA, 31991: 190), concertada com o francês, além de amante, levava a sua correspondência a Cândida que ingenuamente acreditava ser amada profundamente. Mais tarde, como também já afirmado, incentivada pela sua mucama e não seguindo os conselhos de Frederico, a jovem senhora, depois das aulas de piano e do pedido de casamento recusado pelos pais, acaba por receber Souvanel no seu «leito virginal», introduzido em casa pelo pajem fiel de Florêncio e, obviamente, por Lucinda. A sua dignidade perdera-se (AVA, 31991: 265).

Porém, o exemplo mais pertinente e simultaneamente sintetizador da ação perniciosa do escravo ocorre quando, após ter fugido de casa com a ajuda da mucama, Cândida, pensando estar grávida, vai ter com Souvanel a um cortiço. No capítulo LIII, com a atitude clara de desculpabilizar a senhora, é a escrava que aparece descrita como a culpada do comportamento nada digno de Cândida e da sua perdição. Lucinda é aquela que arrancou a jovem da sua inocência e a fez «menina sábia precoce da ciência pudenda da mulher». Lucinda é aquela que a amesquinhou, a impeliu «para vãos e aviltantes namoros» e a atraiçoou dando, perversamente, alento a um amor dissimulado:

A mucama escrava depois de tentar debalde arrastá-la para as garras de Dermany, abrira a este a porta do quarto de sua senhora, e a abandonara quase desmaiada ao algoz.

A mucama escrava dera-lhe doses repetidas de uma substância vomitiva, para aluciná-la com a convicção de um estado, que patentearia o seu opróbrio.

A mucama escrava finalmente, inventando ainda aterradoras notícias, conseguira arrastá-la da nobre e respeitada casa de seus pais, para levá-la de rastos pelo braço de um miserável para o escuro recanto de um cortiço. (AVA,

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1991: 308)

53 Souvanel, de seu nome verdadeiro Dermany, é um francês, professor de piano que, como já foi referido, se apresentara à sociedade como sendo um exilado político, mas que afinal não passava de um estrangeiro sedutor e lascivo pronto a fazer perder, com a ajuda de Lucinda, a honra de Cândida.

Se os dados apresentados permitem perceber a intenção de apresentar a escravatura como culpada da degradação sociedade brasileira (cf. AVA, 31991: 309), que leva Macedo a defender a emancipação gradual dos escravos, não deve, porém, esquecer-se que o que motiva essa intenção não é a humanidade dos escravos que ele tenta a todo o transe negar, mas a ameaça que eles constituem para uma sociedade senhorial.

Daí poder dizer-se, ou pelo menos questionar-se, se os textos que compõem As Vítimas Algozes não constituirão uma tese, uma teoria de dissimulação. Na verdade, mais do que abolicionistas, as novelas, que mostram os escravos criminosos, são pretexto para defender a sobrevivência dos senhores, face à ameaça escrava.

Desta maneira, entende-se a existência, ao longo do texto, de uma clara desculpabilização dos senhores, o que leva a concluir que Macedo, concebendo um narrador-senhorial, apenas pretende cortar com as amarras do sistema esclavagista, em virtude da degradação moral (Paulo Borges, em “Pai-Raiol, o Feiticeiro”, e Cândida, em “Lucinda, a Mucama”) e económica (Paulo Borges, em “Pai-Raiol, o Feiticeiro”) dos fazendeiros e proprietários de escravos. E é por isso que se pode afirmar que ao mesmo tempo que ocorre a endemonização do escravo se assiste à vitimização do senhor.

Logo nos primeiros parágrafos do prólogo, quando se tenta convencer os proprietários a enveredar por uma emancipação gradual dos escravos, Macedo não resiste à tentação de absolver o senhor. Repare-se que ele descreve a escravatura como um «quadro do mal que o senhor, ainda sem querer, faz ao escravo.» (AVA, 31991: 4).

No entanto, é nas duas últimas novelas que esse quadro, que pretende vitimizar os senhores, se torna mais evidente. Em “Pai Raiol, o Feiticeiro”, ainda na parte em que se formulam considerações gerais sobre a feitiçaria dos escravos, diz-se que os senhores que assistem a tais práticas o fazem porque são crédulos, simples, supersticiosos (cf. AVA,

3

1991: 75).

Quase a seguir, apesar de ambiguamente considerar a escravatura humilhante e criticar o senhor por perpetrá-la, o narrador considera correto e justo que se puna exemplarmente o escravo: «o senhor nunca punia sem razão.» (AVA, 31991: 80).

Igualmente na segunda novela e antes do «choro compungido» (AVA, 31991: 123) do fazendeiro, pela morte de Teresa, relevam-se atitudes como o remorso, o choro, o empalidecimento que tendem a apresentá-lo como um ser que tem a capacidade de se emocionar e de se arrepender por ter trocado a esposa pela escrava. Alertado por Luís de

que a mãe chora muito e que ele já não quer saber dos filhos, Paulo Borges não o consegue encarar e foge, maldizendo a escrava-demónio que o dominou e lhe causou a ruína (cf.

AVA, 31991: 115-6).

Em “Lucinda, a Mucama”, a estratégia projetada pelo narrador para destacar a vitimização da amada de Frederico é similar. Embora vaidosa, curiosa, e incentivadora dos namoros, Cândida, cujo nome, como já se referiu, é já simbólico dessa ausência de culpas, é, a partir de meio da intriga, sistematicamente alvo de um plano preciso do escritor: mostrar que a jovem senhora só agiu assim em virtude da influência maléfica de Lucinda. Subtraindo-lhe todos os vícios, Macedo mostra que não se pode conceber uma descendente de dignas famílias como culpada da sua própria degradação moral. Os únicos culpados, para Macedo, só podem ser os escravos, ou então, em algumas circunstâncias, como já se referiu, os estrangeiros (Souvanel/Dermany) e os brancos pobres e andrajosos (o Barbudo). Uma outra situação que reproduz esse quadro diz respeito às tentativas insistentes de Lucinda em tentar marcar uma entrevista com Souvanel, que a jovem senhora, mesmo apaixonada, vai recusando. A moça, ainda com pudor e presumindo a situação em que pode incorrer, tenta encontrar motivos que neguem as pretensões da escrava e do francês. A carta que escreve, apelando a Souvanel que a peça em casamento aos seus pais, revela que ela, malgrado influenciada negativamente por Lucinda, demonstra a resistência das qualidades de uma sociedade senhorial virtuosa, e evidencia, de forma notória, a luta a favor da honra e da dignidade (cf. AVA, 31991: 244).

Não se estranha, por isso, ver a irmã de Liberato, poucos momentos depois da ida de Souvanel ao seu quarto, envergonhada, procurar refúgio junto de sua mãe. Ela foge da sua consciência que lhe diz que pecou. Sentindo-se criminosa, chora «desesperadamente amarguíssimo pranto» (AVA, 31991: 266).

Realçando as suas qualidades naturais como a vergonha, a distância e a repugnância que a moça sente progressivamente pelo francês, o narrador tem o cuidado de destacar, no início do capítulo XLVI, que ela só se perdeu por causa da influência nefasta e perversa de Lucinda e da ação de Souvanel. Com remorsos e mais «cautelosa, prudente e sábia», pois não pactuava com os crimes do estrangeiro54, Cândida consegue retirar Lucinda do seu

54 A jovem senhora condenava racionalmente o francês por causa dos seus crimes, mas, ambígua e romanticamente, os seus sentimentos faziam amá-lo.

quarto à noite, e recusa de forma tenaz conceder-lhe uma nova entrevista (cf. AVA, 31991: 283-4).

Os últimos instantes de “Lucinda, a Mucama” são igualmente significativos. Depois de ter fugido, Cândida, apresentada como «leal e sincera» e quase sem vontade própria, deixa-se arrastar para o cortiço, mas resiste às carícias de Souvanel, percebendo, finalmente, a dimensão escandalosa da sua atitude e que o francês já não a encantava, antes a envergonhava (cf. AVA, 31991: 306-7).

Pelo que se apresentou, a arquitetura de um plano desculpabilizador das atitudes e comportamentos senhoriais serve um desiderato concreto e necessário: demonstrar que com a prossecução dum sistema esclavagista se assistirá a uma inversão social, em que o senhor será a vítima dependente do escravo que, em virtude dos crimes, se tornará senhor. Foi o que aconteceu com Esméria, tornando-se senhora da casa de Paulo Borges. Foi o que quase aconteceu com Pai Raiol, caso Paulo Borges tivesse morrido com o envenenamento do café. Foi o que aconteceu com Cândida que progressivamente se tornou escrava da sua escrava: «A escrava vendia ou revendia a senhora» (AVA, 31991: 273). Ora este aspeto constitui a inversão completa que se prepara ao longo do texto: os senhores são tão vítimas que já não vendem escravos, antes são vendidos por eles. Esta é a tese de Macedo.