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2.3. De Macedo a Guimarães: um Mundo Patriarcal

2.3.4. Amenizando o tom?

A terminar este capítulo, pode-se afirmar que neste romance de Bernardo Guimarães, embora se constate o apelo à abolição da escravatura através de algumas personagens, não se observa uma defesa intransigente e convicta da emancipação total dos escravos de forma incondicional. E nem isso era expectável em 1875.

Em A Escrava Isaura, não se pode refutar que o escravo seja tratado numa dimensão mais humana e sensível, evidenciando uma alteração na forma de encará-lo e inverter a tendência estereotipada para o ver como animalesco, insensível e indigente. É disso exemplo a escrava da fiação que assume um discurso crítico e consciente sobre a sua

29 A passagem inicial do romance em que a mulher do comendador Almeida promete libertar Isaura é exemplificativa:

condição escrava e o sofrimento por que passam os negros. Ora este discurso, na prosa brasileira da época, não era ainda usual.

Todavia, a estratégia seguida para veicular uma mensagem abolicionista consiste no refúgio da excecionalização de uma escrava com características e qualidades muito especiais. Além de detentora de uma beleza sem igual e de virtudes como a humildade e a dignidade, Isaura é retratada como se de uma mulher branca se tratasse.

O motivo para esta caracterização invulgar da protagonista de A Escrava Isaura, que configura uma espécie de transição na forma de apresentação do escravo, dever-se-á possivelmente ao facto de o público-leitor predominante em 1875 ser ainda incapaz de aceitar tão abertamente aspetos positivos nos escravos negros ou mestiços. Conhecendo as expectativas dos seus leitores, tendentes à emoção e ao deleite dos enredos amorosos, não foi decerto casual que Bernardo Guimarães, para sensibilizar a consciência dos brasileiros, tenha optado por alinhavar Isaura com traços de branquidade30.

Seguindo este entendimento, Bernardo Guimarães pode ser visto como um escritor de transição na apresentação do escravo na literatura brasileira. O cativo-protagonista é apresentado com outra dimensão humana31: digno, humilde, sensível, perspicaz.

Porém, como já se referiu, Isaura é muito peculiar. O escritor estaria persuadido de que só desenhando as personagens como brancas e envolvendo-as numa intrincada trama amorosa os leitores aceitariam a mudança de paradigma que apresentaria o escravo como verdadeiro ser humano. Não havia ainda condições para apresentar um escravo negro bom e humano, digno e honesto, que não se aproximasse do modelo branco ou que, sem isso, desenvolvesse a função de protagonista.

Por outro lado, neste enquadramento de pensamentos concernentes com a intenção performativa e ideológica do escritor, repare-se como a morte de Leôncio, que à partida podia ser concebida como punição parece representar outra coisa. Querendo simbolizar o fim de uma mentalidade, essa morte aparenta permitir um novo tempo.

Essa possibilidade de uma nova época, só expectável e viável porque diluvianamente

antecedida pela redenção, não seria contudo concretizada se não se associasse ao casamento de Isaura com Álvaro. À morte de um tempo, segue-se a emergência de uma nova idade. Assim, o casamento dessas personagens, que representa a concretização

30

O mesmo aconteceu com Rosaura, oito anos mais tarde, no romance já aludido anteriormente, Rosaura, a Enjeitada.

31 A caracterização de Isaura constitui uma diferença significativa no cotejo com As Vítimas Algozes. Em Joaquim

literária da união entre várias etnias, significará a esperança do escritor num futuro diferente, mais tolerante, menos preconceituoso e, mesmo que sem uma assunção clara mas envergonhada da defesa da abolição, sem escravatura.

Nesta sequência, outro aspeto relevante prende-se como casamento de Isaura com Álvaro. Com ele, observa-se uma inversão incompleta no sistema escravocrata brasileiro, pois só é possível no domínio do ideal: a escrava transforma-se em senhora e o ex-senhor, não em escravo, mas num ser sem honra, indigno e falido.

O epílogo de A Escrava Isaura, preparado paulatinamente pelo narrador (cf. AEI,

10

1981: 129), estabelece uma diferença muito expressiva relativamente a As Vítimas Algozes: a vítima escrava não se transforma em algoz. Ao invés, o algoz é Leôncio, o seu senhor. Por outro lado, se no texto macediano é impossível o escravo tornar-se senhor

Simeão, Pai Raiol ou Esméria não concretizam esse desejo em Guimarães é, com a ressalva de que Isaura é uma escrava branca (cf. AEI, 101981: 129).

No final do romance, quando impede que Isaura case com Belchior, Álvaro afirma que ela é agora a proprietária das terras de Leôncio e que ascende a uma posição em que só mendigando o seu ex-senhor pode chegar perto:

Foi uma missão santa, que julgo ter recebido do céu, e que hoje vejo coroada do mais feliz e completo resultado. Deus enfim, por minhas mãos vinga a inocência e a virtude oprimida, e esmaga o algoz.

— Deixe-se de blasonar, senhor! — gritou Leôncio agitando-se em gesticulações de furor: – isto não passa de uma infâmia, uma traição, e ladroeira... — Isaura! — continuou Álvaro com voz sempre firme e grave: — se esse algoz ainda há pouco tinha em suas mãos a tua liberdade e a tua vida, e não tas cedia senão com a condição de desposares um ente disforme e desprezível, agora tens nas tuas a sua propriedade; sim, que as tenho nas minhas, e as passo para as tuas. Isaura, tu és hoje a senhora, e ele o escravo; se não quiser mendigar o pão, há de recorrer à nossa generosidade. (AEI, 101981: 129)

Oh! Bani a escravidão!...A escravidão é um crime da sociedade escravagista, e a escravidão se vinga desmoralizando, envenenando, desonrando, empestando, assassinando seus opressores. Oh!...Bani a escravidão! Bani a escravidão! Bani a escravidão!... (AVA, 31991: 314)

3. A ABOLIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DISSIMULATÓRIA