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3. A ABOLIÇÃO COMO ESTRATÉGIA DISSIMULATÓRIA 1. O Racismo e o Estereótipo: as Chaves do Poder

3.2. Macedo e Guimarães: Abolicionistas ou Não?

3.2.3. Guimarães e o exercício do poder

1991: 78).

Outra situação reveladora ocorre no momento em que Simeão se torna íntimo de José Borges, o Barbudo: «escravo é a matéria-prima com que se preparam crimes horríveis que espantam a nossa sociedade.» (AVA, 31991: 37).

Expressiva no levantamento de situações que comprovam esse clima é a associação de Pai Raiol a um monstro negro que assustava as crianças. É Luís, o filho mais velho de Paulo Borges quem, ao ver o escravo feiticeiro pela primeira vez, premonitoriamente o identifica como o ser terrível que há de perder a sua família. É Luís quem serve de paradigma ao narrador para mostrar que, desde a mais tenra idade, o senhor sente, não apenas medo da figura, mas também receio de perder a sua vida e a sua família (cf. AVA,

3

1991: 92-3). A forma como o branco vê o escravo, moldada logo na infância, é muito simples e, simultaneamente, redutora — o negro, o escravo, estava associado ao mal:

Em muitas histórias e baladas, por exemplo, o negro simboliza o demônio. A fusão negro-demónio logicamente produziu a imagem do Negro qua Negro,

possuidor pelo menos de características semelhantes às do demónio, enquanto que o Demónio mesmo disfarçava-se de Negro. (Brookshaw, 31983: 13)

Portanto, não é a preocupação com a situação miserável dos escravos, as humilhações que sofrem, as punições que lhes são infligidas, a ausência de uma educação que os possa preparar para uma vida após a emancipação, que preocupa o professor de História do Colégio Pedro II, mas, numa visão paternalista, a defesa dos esclavagistas.

3.2.3. Guimarães e o exercício do poder

Se, como se demonstrou, o verdadeiro objetivo de Macedo é proteger uma camada social composta pelos senhores proprietários de escravos, criando um clima de medo, a

forma e a estratégia de Guimarães demonstrar essa preocupação com a manutenção de um determinado poder é bem diferente. Ele não demonstra com a mesma amplitude os efeitos maléficos do escravo, nem apresenta insistentemente o escravo como terrível ou diabólico. Essa visão aparece restrita a Rosa, como já se verificou.

Pode-se dizer que a dissimulação de Guimarães é mais subtil. Ela é visível na forma como o sofrimento da escrava surge metaforizado no amor, ou na violência e nos rigores da escravatura que são amenizados, ou, ainda, na consideração de que a situação escrava é um acidente provocado pelo destino.

Analisando estes textos de Guimarães, o cativo, numa perspetiva generalizadora, e não particular — que é a que representa Isaura na literatura brasileira considerada abolicionista —, está na mão dos senhores. É no discurso deles, através do escritor, que o escravo aparece retratado e está dependente dos seus interesses e desejos.

Apenas como elemento dispensável, mero elemento decorador do cenário, que ora aparece mencionado ora não, o escravo raramente surge como um ser humano que opina e fala. O que acontece é que, mesmo na ficção, a possibilidade de o escravo comum intervir na sociedade como responsável dos seus atos não existe. Ele não passa de uma «coisa, instrumento de trabalho e propriedade do senhor, até as últimas décadas do século XIX» (Süssekind, 1982: 19). O pajem, as escravas da fiação, Rosa, são provas disso.

Na realidade, isso só não acontece com Isaura, aparentemente. Isaura é sujeito da ação, contudo isso não é razão suficiente que permita afirmar que Guimarães tencione romper com essa situação de subserviência. Como já se afirmou, Isaura está vestida, desenhada à imagem do branco e como branca.

Elaborado ficcionalmente pelo escritor branco, o escravo e sobretudo o negro veem a sua verdadeira identidade ser descaracterizada, despida dos seus traços mais característicos, inclusive a cor, e aparecendo, desse modo, sob uma máscara, uma máscara branca, em muitos casos.

Nessa sequência, entende-se que haja a reprodução dos comportamentos, das atitudes e até dos gestos e falas dos senhores nas personagens escravas. Reproduzindo a imagem que têm de si baseada no outro, travestem-se, assim, como brancos, adquirem uma «máscara branca que se cola ao rosto, ao corpo e à fala» (Süssekind, 1982: 17).

Tingindo os escravos como brancos, o romance arremeda, nesta perspetiva, uma realidade idealizada pelos brancos, onde os cativos não são mais do que símiles dos

senhores. Por essa razão, Isaura se comporta como uma verdadeira sinhá-moça bem-educada, sensível e generosa.

Ao somar estes aspetos referidos, se a imagem do escravo apresentado não corresponde à realidade, então o escravo na ficção não é mais do que uma caricatura, com um retrato falseado pelo escritor. A imagem do escravo não passa assim de um «simulacro», como a designa Flora Süssekind56.

A equiparação que Guimarães tenta fazer ficcionalmente com Isaura, conferindo-lhe os traços de humanidade e beleza associados ao branco, fica, no entanto, colocada em causa pelo facto de a possibilidade de ascensão social continuar na dependência dos senhores. A escrava, para ser livre, tem que ser excecional, comportar-se delicada e educadamente como uma senhora, ter uma beleza inigualável, e finalmente ser amada por um branco, necessariamente generoso e filantrópico. A liberdade do escravo, mesmo com essas características, está dependente do branco. O mesmo é dizer que a tradicional relação de poder não se alterou.

3.2.3.1. O amor, metáfora da escravidão

O processo de metaforização sofrido pelo cativo, que conduz objetivamente ao encapotamento da realidade, dos rigores esclavagistas, e necessariamente a uma conceção estereotipada do escravo, pode ser vista ainda numa dimensão: a afetiva.

Tendo em atenção A Escrava Isaura, constata-se que o único meio de se nomear a indignidade da escravatura é associando-a ao sofrimento, com os assédios sexuais por parte dos senhores lascivos, Leôncio e Henrique, e às dificuldades em concretizar o amor com Álvaro. Neste romance, a escravidão só é esconjurada por impedir a ligação amorosa e o próprio Álvaro sente-se escravo do amor. Estrategicamente, transformando-se a escravidão num «traço característico da própria condição humana, e não da formação social onde aqueles que trabalham se acham reduzidos, jurídica e concretamente, a condições subumanas de existência» (Süssekind, 1982: 28), a imagem negativa e abjeta não só fica esbatida como não se sobreleva.

56 «Seja através de um deslocamento metafórico do escravismo para outros campos de discussão, seja pelo recurso a personagens convencionais ou idealizados, o que se tem são simulacros de escravos.» (Süssekind, 1982: 53).

Se se excetuar a ocasião em que Isaura é posta no tronco, onde sofre punições físicas, o que se destaca ao longo da ação é o sofrimento causado pelas invetivas do obcecado Leôncio, que a persegue mesmo depois de ela ter fugido. Isaura recusa sempre os seus desejos, como também recusou os do irmão de Malvina, Henrique, e do próprio pajem e do jardineiro Belchior. Tal conjunto de candidatos ao coração da sofrida e triste Isaura, como ela simbolicamente se autoapresenta na canção que entoa no início do romance, acaba por ser o único meio de pressão e dominação do senhor que se nomeia no romance. Por outro lado, se se acrescentar a atitude de não revolta e de submissão da «escravinha», a representação da escravidão rigorosa e castradora da liberdade quase não existe.

Observando em pormenor esse processo de metaforização, logo nos primeiros momentos do romance, antes da canção de Isaura, o sofrimento da moça é apresentado de forma mitigada, através de um discurso modalizante, o que evidencia uma vontade pouco explícita do narrador em mostrá-la como vítima da escravidão: «O tom velado e melancólico da cantiga parecia gemido sufocado de uma alma solitária e sofredora» (AEI,

10

1981: 10-11).

No mesmo momento, o canto entoado por Isaura, suscetível de favorecer a auto-comiseração, onde sobressai a infelicidade, não denuncia qualquer atitude de revolta com o facto de ser escrava, situação que aliás se mantém ao longo de toda a narrativa. A canção torna-se mesmo num elemento importante da estratégia encetada para amenizar a imagem negativa da escravidão, já que em nenhum verso ela delata o horror do regime. Pelo contrário, o texto da canção apenas lamenta a falta de liberdade para amar. Deste modo, a metaforização do sistema esclavagista pelo ângulo do amor retira a ênfase social, e, consequentemente, o motivo maior da necessidade da abolição.

Novo exemplo significativo ocorre quando, no capítulo VII, Isaura, sozinha, no mesmo registo da canção que tende a provocar no leitor a compaixão e a piedade pela sua condição escrava, pensa que é uma desgraçada que vive perseguida pelos brancos que lhe armam intrigas. Com um tratamento privilegiado em casa do comendador que já falecera, confirma-se que é uma vez mais no domínio da violência emocional e não física que a referência ao branco prevaricador aparece (cf. AEI, 101981: 43).

Pouco depois, malgrado seja indiscutível que o assédio sexual às escravas é também uma forma de o cativeiro mostrar a sua indignidade, repare-se como novamente a questão da escravidão é colocada pela própria protagonista sempre no campo das emoções.

Debatendo-se com Leôncio, tenta convencê-lo que também tem emoções, ao retorquir-lhe que o seu «coração é livre, ninguém pode escravizá-lo, nem o próprio dono.» (AEI, 101981: 53).

Mais tarde, em duas ocasiões distintas, observa-se igualmente o sofrimento de Isaura: em Pernambuco e após ter-se apaixonado por Álvaro, a moça, sob o nome de Elvira, confessa-lhe melodramaticamente que apesar de amá-lo nunca poderá concretizar o seu amor; em Goitacazes, quando a escrava toma conhecimento da suposta carta de Álvaro, informando-a que se casara com outra mulher (cf. AEI, 101981: 117).

Pelos exemplos apresentados, verifica-se que as menções às práticas negativas da escravidão se circunscrevem a um discurso emotivo, que apresenta o sofrimento do escravo de forma mais simbólica, no domínio das emoções.

3.2.3.2. A escravatura como fatum

Depois de ter escolhido uma escrava branca para personagem principal, Bernardo Guimarães concede, ainda, a uma tradição patriarcal própria de um sistema esclavagista, a imagem da escravatura como uma circunstância do destino, algo que não está no domínio dos homens controlar.

Naquilo que se pode entender como estratégia de desculpabilização de uma sociedade ainda escravocrata, os rigores do cativeiro são amenizados com referências pontuais, e a escravatura é vista como desgraça, como infelicidade, de caráter irreversível e imutável.

Um mês depois do baile em que Isaura é reconhecida como escrava (capítulo XV), Geraldo, em diálogo com Álvaro, realça dois aspetos fundamentais que comprovam o que se afirmou anteriormente. Não obstante concorde com a caracterização feita pelo amigo e reconheça que a escrava tem as qualidades de um anjo, o advogado tenta chamar Álvaro a uma razão de natureza patriarcal, considerando, em primeiro lugar, que Isaura por uma fatalidade não passa de uma cativa e, depois, que não há ninguém que lhe possa tirar a nódoa da sua condição:

— Mas por uma triste fatalidade o anjo caiu do céu no lodaçal da escravidão, e ninguém aos olhos do mundo o poderá purificar dessa nódoa, que lhe mancha as asas. Álvaro, a vida social está toda juncada de forças caudinas, por debaixo

das quais nos é forçoso curvar-nos, sob pena de abalroarmos a fronte em algum obstáculo, que nos faça cair. (AEI, 101981: 93)

Na sequência do «fatídico» baile, o encontro entre Álvaro e Isaura é ainda mais revelador. O moço, triste, na chácara, tenta reconfortar Isaura, afirmando que quer salvá-la das garras da escravatura, que ele designa como «abismo da escuridão». Porém, para ela, descrente, não se pode fazer nada para impedir o curso fatal do destino que a colocou no cativeiro: «– Ah! senhor, não se mortifique assim por amor de uma infeliz, que não merece tais extremos, é inútil lutar contra o destino irremediável, que me persegue.» (AEI, 101981: 101).

Perantes estes dados, a noção da escravatura como acidente provocado pelas forças incontroláveis do fatum que subtilmente retira a responsabilidade do homem branco, na implementação e manutenção do sistema, é reforçada pelo facto de ser a própria Isaura, num discurso que pretende mover a piedade dos leitores, a insistir nesse argumento da infelicidade: desesperada com a postura dos senhores que a tentavam desencaminhar, e esmorecida com a inveja de Rosa, lamenta, num tom triste, «a desgraça de nascer cativa» (AEI, 101981: 43).

Assumindo-se a escravatura como fatalidade na boca da própria escrava, revela-se um aspeto muito relevante que obstaculiza a leitura linear, segundo a qual A Escrava Isaura

representa a intenção de Guimarães em mostrar a generalização dos horrores da escravidão. Ora, tal não corresponde à verdade. Isaura, além de quase nunca se referir à vida de cativeiro e ao sofrimento das suas companheiras, ao vê-las como feias e diferentes, demonstra que não consegue ver a escravatura para além de si, o que a impede de representar uma perspetiva solidária de denúncia. Com uma visão individualizante e não generalizadora, ela parece ser capaz de abordar somente o seu sofrimento e apenas num domínio emocional, nunca questionando as razões sociais que levam os senhores a tratar os escravos de forma desumana.

Noutra situação em que se espelha a ideia de que é o destino o inquestionável norte da vida dos seres humanos, Álvaro afirma, após todo um período de hesitação relativamente à atitude a tomar com Isaura, que será ele, por desígnio divino, a libertá-la dos ferros do cativeiro (cf. AEI, 101981: 126). Desta forma, a ideia que assoma é a de que só o destino é responsável pela liberdade ou pela escravidão.