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A escritura como simulacro

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 175-180)

8. A CONFISSÃO AUTOBIOGRÁFICA NO ENSAIO

8.1. A escritura como simulacro

A crise histórica e de valores que vivencia María Zambrano em sua época dirige-se ao plano artístico filosoficamente por meio do ensaio, que viabiliza falarmos sobre uma reversibilidade das correspondências entre a confissão autobiográfica e a ficção, onde podemos detectar a presença de elementos autobiográficos nos textos literários zambranianos, que creditam a necessária confiança na realização do pacto entre autora, obra e leitor. A confissão e a autobiografia discutem esse problema da identificação entre o modelo e a sua representação literária, entre, por exemplo, o sujeito empírico María Zambrano e a escritora, a ensaísta, a intelectual María Zambrano, contemplada em suas obras.

O movimento de revisão da experiência do escritor transcorre através de um eu sempre suscetível de ser interpretado, carente de um parâmetro único, com o qual possa determinar a sua suposta verdadeira autenticidade; em definitivo, o texto autobiográfico-confessional não pode permancer incólume em referência a tal desconstrução.

María Zambrano anuncia que a confissão tem como origem o mesmo tempo real da vida, partindo da confusão e do imediato temporal. A confissão destina-se à procura de outro tempo distinto do factualmente vivido. Zambrano ainda explica que aquele que escreve uma confissão está, na verdade, em busca de um tempo não fantasioso ou imaginário, porém quer descobrir um tempo real como o seu por não se conformar com o tempo virtual do artista.

La Confesión es el lenguaje de alguien que no ha borrado su condición de sujeto; es el lenguaje del sujeto en cuanto tal. No son sus sentimientos, ni sus anhelos siquiera, ni aun sus esperanzas; son sencillamente sus conatos de ser. Es un acto en el que el sujeto se revela a sí mismo, por horror de su ser a medias y en confusión. [...]

La confesión parte del tiempo que se tiene y, mientras dura, habla desde él y, sin embargo, va en busca de otro. La confesión parece ser una acción que se ejecuta no ya en el tiempo, sino con el tiempo; es una acción sobre el tiempo, mas no virtualmente, sino en la realidad. (ZAMBRANO, M., 1995, pp.29, 30)

A confissão anseia encontrar uma relação entre a vida e a verdade. É certamente por essa razão que o confessor procura não anular a sua condição de sujeito dentro de uma realidade concreta, embora, por se originar de um ato desesperado, a confissão sempre começa com uma fuga de si mesmo. Essa saída de si motiva a aflição em referência ao que se é e a esperança de que o que ainda não se conhece apareça. A aflição extrema deve ser compreendida como uma queixa, antes que a contemplemos como uma confissão, na qual há uma fuga de si e a expressão de alguma culpa, de um eu que não se aceita. Explica Zambrano que, primeiramente, há uma queixa e não uma confissão, porque o desespero e a esperança são imediatos. Através do desespero, não se pode descobrir a interioridade como na confissão, pois a dor sentida é provocada por problemas externos, que estimulam a perguntar e a pedir razões. A confissão, como um processo autobiográfico, é o resultado da revisão organizadora de uma

experiência, enquanto a queixa do desespero demonstra tão somente a insatisfação e o medo.

A confissão, na maioria dos casos, pretende chegar ao veridito de que vários sucessos poderiam ter sido diferentes se as atitudes também tivessem sido outras. Na realidade, o sujeito que vivenciou uma existência real assume os desabores da sua vida. A realização de desejos e planos não vingou, visto que dependia de suas escolhas. Na confissão, o sujeito sente-se responsável por fracassar ao passo que, no desespero, o indivíduo sente-se anulado e completamente dependente do divino, não confiando em seu ser. No desespero, o sujeito não pode descobrir a sua interioridade, pois a sua existência desagua-se na dor, no conflito e na injustiça. A ação do indivíduo, nesse estado, é queixar-se e implorar salvação à divindade.

É necessário salientar, contudo, que a confissão acaba vencendo o desespero e a queixa. De uma forma ou de outra, o desespero e a queixa convertem-se em um ato confessional, que põe de manifesto a tragicidade da existência humana. Além disso, como já discutimos, a confissão é uma saída de si mesmo em fuga por não aceitar o sujeito a sua própria condição de ser e a vida tal qual se configura diante dos seus olhos. María Zambrano (ibidem, p.37) assegura que a confissão expressa o caráter fragmentário de toda a vida, na qual o homem sente-se como um pedaço incompleto, um esboço de nada, uma partícula de si mesmo. Nos ensaios zambranianos, atendendo às prerrogativas da modernidade e do sujeito em crise, observamos que a vida não está contemplada de forma harmônica e perfeita, mas sim como um dom incompleto e carente de unidade. Essa constatação do caráter fragmentário de toda a vida evidentemente interfere na compreensão que tem de si o próprio homem. É em virtude de uma existência que não se transcende na eternidade que o ser humano se descobre infeliz e dilacerado dentro de sua contingência histórica. A prolongação da escritura ensaística em direção à autobiografia e a confissão denunciam que a criação real- ficcional trágica perpassa e se perpetua nas obras de María Zambrano. Em seus escritos, encontramos irrefutavelmente a expressão de um sentimento de falta e de preocupação com o homem e com a vida estampados na arte.

María Zambrano estima que o desespero de si mesmo e a fuga de si na esperança de se encontrar são os traços que definem a confissão. As palavras ‘desespero’ e ‘esperança’ são vitais, quando nos referimos à confissão, porque como explica María Zambrano:

Desesperación por sentirse obscuro e incompleto y afán de encontrar la unidad. Esperanza de encontrar esa unidad que hace salir de sí buscando algo que lo recoja, algo donde reconocerse, donde encontrarse. Por eso la Confesión supone una esperanza: la de algo más allá de la vida individual, algo así como la creencia, en unos clara, en otros confusa, de que la verdad está más allá de la vida. (ibid., pp.37, 38)

A teórica novamente ensina-nos que a confissão somente nasce com a esperança de uma revelação interior e pessoal. Por essa razão, apresenta a condição da vida humana tão imersa em contradições e paradoxos. María Zambrano patentiza que a figura de autora que constrói e reafirma em seus ensaios demonstra que a vida carece de unidade, embora a necessite fervorosamente. A ensaísta espanhola, em suas obras, ao mesmo tempo em que reflete o esfacelamento do eu em uma existência real-ficcional e a crise de valores do mundo moderno ocidental, anseia, através da repetição da característica agônica e trágica do sujeito, adquirir a desejada unidade de que se ressente a vida. O desdobramento e a atomização da personalidade e do tempo cronológico pretendem evidenciar a possibilidade da busca de alguma outra dimensão desprovida da angústia e do sofrimento do momento presente. É interessantíssima a ideia suscitada por María Zambrano (ibid., p.38) de que a confissão é uma espécie de realidade virtual compensatória e que a vida se expressa com vistas a conquistar a transformação. Para a autora, a confissão não é senão um método, a fim de que a vida se livre de seus paradoxos e consiga coincidir consigo mesma na procura de um dificílimo equilíbrio.

A confissão, como gênero literário, não obteve sucesso em todos os tempos. A confissão é própria e exclusiva de nossa cultura ocidental e aparece, dentro desse espaço, em momentos determinantes, decisivos, em que parece estar em dissolução a cultura e o homem sente-se sem apoio e solitário. São esses momentos de crise em que o homem concreto tira a capa protetora do seu

desenvolvimento material que propiciam a confissão, espelho inconteste da revelação do seu fracasso, tema esse que estamos discutindo ao longo dessa tese.

Dentro do núcleo temático da pesquisa, é relevante ainda advertir que María Zambrano articula a confissão, como gênero literário, com o fracasso de nossa sociedade ocidental e da cultura aí implicada. A escritora assinala que quando a cultura encontra-se amadurecida e não se percebe em crise, o que quase sempre é muito pouco provável, as problemáticas da existência humana permanecem latentes. Atentemos para a seguinte citação, em que a teórica refere- se aos diversos tipos de confissões, por exemplo, a de São Agostinho e a de Job, outros intertextos dos seus ensaios, como também uma forma de interpretar, através da arte, os mais profundos desejos humanos.

Y así estas Confesiones manifestarán los géneros de fracaso que nuestra cultura ha soportado y algo tal vez más importante: los distintos anhelos, los profundos anhelos encubiertos por el arte, objetivados por la Filosofía, desteñidos en las épocas de indecisión y ocultos en la plenitud de los tiempos maduros. Pues cuando el hombre vive en una cultura madura, cuando ha hallado al fin una objetividad bajo la que habitar, la existencia humana en su desnudez se oculta. (ibid., p.39)

A fim de reforçar os nossos suportes teóricos, é importante referir-nos à relação entre cultura e crise social na visão nietzscheana de Roland Barthes (1986, pp.88-91), mais precisamente sob a interpenetração dos conceitos de cultu- ra e tragédia. Barthes defende, com grande acerto e com base em Nietzsche, que as épocas de questionamentos, ardentes são épocas trágicas, de reflexão cultural. A tragédia não seria senão um esforço caloroso de se despojar o sofrimento hu- mano causado por uma cultura em discussão. O sentimento trágico da vida deve a sua razão de existir e proliferar em determinados momentos da vida humana à tra- gédia, que afeta todos os âmbitos da existência, caracterizando-se como um espí- rito de época, em que se desnudam todos os conflitos sufocados por uma cultura aparentemente aceita pelo homem. Os receios manifestados na obra de arte são o resultado de uma crise cultural vivenciada em um momento histórico especial.

Retomando a ideia de que a obra ensaística de María Zambrano é uma re- ação ao racionalismo e ao tecnicismo exagerados da modernidade, que capitaliza o sentimento do divino para combater a mecanização do homem, voltamos a afir-

mar que a própria arte mostra-se, para a autora, como uma religião pessoal e uma ferramenta para exercitar a fé na concretização dos anseios humanos. Temos ciên- cia de que o sentimento de espiritualidade está muito vivo em toda a obra de Ma- ría Zambrano, especialmente, em seus textos mais maduros, cujo ápice é repre- sentado por El hombre y lo divino, que estudaremos mais tarde.

O que podemos dizer é que, na verdade, a insatisfação estimularia, no nível humano, o sentimento trágico, no nível social, a crise da cultura e, no nível literário, a confissão autobiográfica ou o desabafo, usando como instrumento o gênero moderno por excelência: o ensaio. A confissão surge de um sentimento de vazio e de inimizade com relação à realidade. Todos os que escreveram o relato de sua vida em tom de confissão partem de um momento, em que viviam de costas para o real, distantes dele, embora o ato da escritura ou de escrever declare abertamente a importância dos fatos pretéritos na trajetória existencial do confessor.

Levando-se em consideração as influências filosóficas de Miguel de Unamuno, para a ensaísta espanhola, todo o projeto humano, que seja levado a cabo sem a presença do divino, estará destinado às ruínas, posto que o culto exclusivo e egoísta ao eu termina por se identificar com o nada e, assim, torna-se sinônimo de niilismo, onde se delata a inegável relação do nada com o espírito crítico da modernidade. Chegar a essa conclusão é de extrema relevância para compreender a identificação da obra ensaística zambraniana com o religioso ou o divino. A autora necessita da utopia da esperança religiosa ou divina para se escrever e ressaltar ao leitor a condição trágica humana constituída pelo desgosto e pelo sofrimento. Esse alicerce extramundo e extrahumano é fundamental para a criação de uma existência zambraniana ficcional notabilizada a partir de uma existência subjetiva heróico-trágica particular.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 175-180)