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Uma pensadora na Revista de Occidente

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 58-87)

4. MARÍA ZAMBRANO NA REPÚBLICA E NA GUERRA CIVIL

4.1. Uma pensadora na Revista de Occidente

Como já tivemos a oportunidade de observar, consideram-se os anos que compreendem o período de 1923 a 1936 como a idade de ouro das revistas literárias. Entre essas importantes publicações está a Revista de Occidente. Reforçamos que a sua importância não está somente na qualidade de seus textos e

na plêiade de escritores que fizeram parte de seus colaboradores, mas também se encontra nas significativas marcas que deixaram e que serviram de elo de comunicação entre a sua época, os anos subsequentes e a chamada cisão do ano de 1939. É perfeitamente compreensível o fato de que nos anos 30-36 os autores fossem resituando as preocupações pela criação de um mundo metafórico e independente de fatores políticos presentes na Geração de 27 por uma politização à força dos acontecimentos históricos que foram ocorrendo paralelamente às publicações das próprias revistas, as quais, é evidente, foram juntamente aos seus colaboradores testemunhas de tais acontecimentos. A literatura deveria deixar de possuir um caráter eminentemente minoritário e ser capaz de falar ao mundo e às pessoas de forma geral, onde o autor deveria posicionar-se de maneira clara e decisiva diante dos acontecimentos políticos e sociais por meio da palavra escrita e de uma atuação representativa que pudesse defender a liberdade do estado espanhol. As revistas possuem as etapas de pré e pós-guerra, que imprimiram um pensamento ideológico à cultura espanhola.

Como afirmamos antes, a Revista de Occidente representa o período criativo zambraniano antes de 1936, ano em que a Espanha padece sérios infortúnios com o início da guerra civil. A participação da ensaísta na Revista de Occidente a torna ainda mais conhecida do público leitor e revela uma formação erudita inspirada, sobretudo, por Ortega Gasset, García Morente e Zubiri. Seus escritos dão cabida à constituição de uma filosofia singular em torno do poético alicerçada na reflexão da crise do pensamento ocidental e da política social espanhola, onde a guerra civil iniciada em 1936 exercerá um papel fundamental, pois determinará um exílio voluntário da autora por mais de quarenta anos em razão do governo franquista. Infelizmente, a Revista de Occidente deixou de ser publicada no início da guerra civil espanhola.

A Revista de Occidente, como uma publicação espanhola de relevo, apresenta artigos culturais e científicos heterogêneos pertinentes a várias esferas da comunidade culta, expandindo-se tanto pela Europa quanto também pela América Latina. Foi comparada por Ernst Robert Curtius a outras importantes revistas culturais da Europa naquele momento, como Nouvelle Revue Française e Neue Rundschau. Sempre ligada às tendências inovadoras do pensamento, da arte e da

literatura, despertou naturalmente enorme interesse como um veículo irradiador de uma cultura espanhola e européia em constante renovação pela excelência de seus colaboradores. No espaço destinado às Humanidades, houve traduções e textos sobre importantes filósofos contemporâneos. Foi inaugurada e dirigida pelo pensador espanhol José Ortega y Gasset em 1923 e apresentou edições até 1936. Sob a responsabilidade de Ortega y Gasset, a Revista de Occidente tinha o propósito de reestruturar a vida de uma Espanha em decadência por meio de um trabalho de europeização, que poderia modificar significativamente a cultura política do país, embora desde a sua fundação em 1923 até 1930, a revista tenha vivido as opressões do governo ditatorial de José Antonio Primo de Rivera.

Para levar a efeito essa proposta de europeização, partilhou o seu engenhoso saber com os leitores da Revista de Occidente uma notável lista de pensadores estrangeiros, como Carl Jung, Thomas Mann, Max Scheler, Georg Simmel, Albert Einstein, Werner Heisenberg, Jean Cocteau, Luigi Pirandello, Benedetto Croce e Johan Huizinga. A publicação dos artigos desses intelectuais na Revista de Occidente com tradução à língua espanhola viabilizou um acesso mais facilitado do seu saber ao mundo hispânico.

Entre os colaboradores espanhóis, encontramos ícones como Rafael Alberti, Vicente Aleixandre, Dámaso Alonso, Max Aub, Francisco Ayala, Américo Castro, Luis Cernuda, Rosa Chacel, Federico García Lorca, Ramón Gómez de la Serna, Jorge Guillén, Benjamin Jarnés, Gregorio Marañón, José Antonio Maravall, Ramón Pérez de Ayala e María Zambrano. Por outro lado, como Ortega y Gasset tinha a intenção de globalizar o conhecimento tornando a revista plural e aberta a vários países estrangeiros mediante o uso da língua espanhola era imprescindível a publicação também de autores latino-americanos, construindo, realmente, uma convergência intelectual pan-hispânica significativa para a história espanhola de publicações seriadas. A revista contou com artigos de Jorge Luis Borges, Pablo Neruda, Eduardo Mallea, Victoria Ocampo, Alfonso Reyes, Torres Bodet entre outros.

De fato, o nome dado à revista refere-se ao objetivo de congregar trabalhos de pensadores estrangeiros às não menos relevantes produções nacionais. A Revista de Occidente foi importante na história intelectual espanhola, pois no seu

período fundacional ocorreram encontros, tertúlias e grupos de discussão nos gabinetes editoriais da revista, o que a caracterizou como um grande núcleo catalisador da vida intelectual espanhola, cujos leitores faziam parte de um segmento extremamente culto oriundo principalmente das universidades e das profissões liberais. Embora inicialmente a revista não intencionasse abordar acontecimentos políticos, seu perfil foi alterando-se ao longo dos anos em virtude das transformações ocorridas no próprio panorama político espanhol, principalmente a partir do ano de 1929, que se distinguiu como um momento importante de transição política para o povo espanhol com o abandono, em 1930, do poder por parte de Primo de Rivera. Essa mudança de postura da Revista de Occidente procurou aproximar a sua oratória da vida cotidiana espanhola e despertar o interesse de novos leitores.

Tendo a sua história dividida em fases, a revista cessou suas publicações em 1936, porém, no ano de 1962, retornou às suas atividades sob a supervisão de José Ortega Spottorno até o ano de 1980. A partir dos anos 80, a sua filha Soledad Ortega Spottorno incubiu-se da direção da revista e atualmente lança onze números por ano, pois o formato dos meses de julho e agosto é duplo.

Como uma publicação já muito conhecida e respeitada no meio intelectual, María Zambrano começa a publicar na Revista de Occidente em 1933 e permanece entre seus colaboradores até o ano de 1935, um pouco antes de terminar a primeira fase da história da revista. No total, a pensadora espanhola publica oito artigos entre 1933 e 1935, que podemos caracterizar como ensaios filosóficos, tipo de discurso constante em sua trajetória literária. É interessante observar que sua vida intelectual recém havia começado efetivamente, já que antes de sua incorporação à Revista de Occidente havia publicado sua primeira obra Horizonte del liberalismo (1930), na qual já se encontrava compromissada com o movimento de oposição à ditadura de Primo de Rivera nesse mesmo ano terminada. O desejo de uma geração renovadora das ideias e do fim de um regime político de opressão define essa primeira obra zambraniana de 1930, que, através de uma filosofia política, leva a termo uma filosofia crítica da modernidade. Com o liberalismo e a democracia, o homem moderno pode chegar a ser pessoa. No entanto, para lograr esse objetivo, o ser precisa rediscutir-se, entrar em crise,

equilibrando-se entre a necessidade de uma inescapável razão histórica e uma urgente sede de razão poética.

Na Revista de Occidente, no período de 1933 a 1936, a atividade intelectual em núcleos editoriais foi protéica, propiciando um importante contexto de debates filosóficos na Espanha. Essa revista era, decerto, um centro que reunia e disseminava um labor periodístico intelectual de peso, contudo, no ano de 1936, essa publicação já não existe e, um pouco mais tarde, uma série de escritores abandona o país e parte rumo ao exílio.

María Zambrano, em seus primeiros artigos, que defendem a República, dedicou-se a escrever críticas a obras literárias, sob as quais podia desenvolver seus próprios conceitos artísticos. Vários desses textos podem ser encontrados na obra Los intelectuales en el drama de España (1937). Nas publicações posteriores, a autora espanhola começa a abandonar a crítica literária e surge com textos que vão desenhando um método original de reflexão filosófica. “Por qué se escribe” e “Hacia un saber sobre el alma” tornar-se-ão emblemáticos dentro do conjunto de sua obra.

Conforme havíamos explicado na introdução, na Revista de Occidente, nosso intento é estudar o ensaio “Por qué se escribe” (Madri, t.XLIV, n.º 132, ju- nho 1934, pp.318-328), primeiro texto filosófico de María Zambrano, que traduz uma criação originária de cunho marcadamente pessoal anterior a 1936, ano em que teve início a guerra civil espanhola. Antes dessa análise, contudo, parece-nos apropriado fazer referência a dois outros ensaios precedentes escritos por María Zambrano também na Revista de Occidente, cujos títulos são “Hoffmann: «Des- cartes»” (resenha, Madri, t.XXXIX, n.º 117, março 1933, pp.142-145) e “Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»” (resenha, Madri, t.XLIV, n.º 131, maio 1934, pp.209-221). Acreditamos que, para a nossa pesquisa, esses dois últimos textos deixam transparecer as linhas mestras que orientam o pensa- mento estético zambraniano e subsidiam a construção de “Por qué se escribe”, além de prepararem o leitor para a recepção desse primeiro ensaio filosófico parti- cular da autora, cujos pressupostos artísticos serão reiterados e desenvolvidos no decorrer de sua obra.

No ensaio “Hoffmann: «Descartes»”, María Zambrano comenta o livro de Hoffmann, escritor alemão, que discute o sistema de Descartes aliado aos seus pensamentos e crenças, onde também podemos perceber a remissão a alguns dados biográficos do filósofo francês do final do século XVII. Temos ciência de que Descartes, como uma das figuras basilares na revolução científica, se notabiliza como um dos intelectuais mais relevantes e influenciadores na história do pensamento ocidental. Como o primeiro filósofo moderno, conseguiu cativar a atenção tanto dos seus contemporâneos como também dos seus descendentes. No texto, Zambrano afirma que a tradição filosófica aparece, em diversos momentos, como um questionamento às suas obras e até mesmo a autores inspirados pelo pensador francês. No processo de construção dos ensaios de María Zambrano, observamos que a autora remete-se a grandes nomes da filosofia, realizando um metadiscurso, onde lhe é possível tornar públicas as suas próprias visões sobre o tema. Em “Hoffmann: «Descartes»”, a escritora malaguenha disserta sobre o ofício de ser filósofo, como um modo de ser e de viver humano que conduz à promoção de suas aflições a níveis racionais e teoréticos.

Un filósofo es el hombre en quien la intimidad se eleva a categoría racional; sus conflictos sentimentales, su encuentro –encontronazo– con el mundo se resuelve y transforma en una teoría. Es el hombre que logra cristalizar su angustia en el diamante puro, geométrico y transparente de un pensamiento sistemático, de un logos, el que resuelve sus pasiones more geometrico. La biografía de un filósofo es un sistema. (ZAMBRANO, M., 1933, p.345)

No caminho do filósofo, porém, há muitos percalços, pois antes de tudo ele é um simples homem, com vacilações e paradoxos. Por isso, a autora diz que a Filosofia, ao contrário de um dom divino ou iluminação, desponta como um esforço racional por tentar amenizar um caos interno. Caos interno e metafísico, que põe em dúvida as próprias circunstâncias. Zambrano assegura que justamente um homem e um homem de seu tempo foi Descartes em uma Europa em clímax histórico, na qual a juventude representa a fé de todos ao mesmo tempo em que questiona o seu próprio contexto. A autora menciona o viver sempre em perigo, mas conservando a lucidez nietzscheano para se referir à consciência sobre a natureza da vida e a condição contraditória do homem em um mundo que experimenta constantemente a crise e o desejo permanente de renovação do

destino: “La vida del filósofo Descartes nos muestra que no le son necesarias a la vida humana, aventuras extraordinarias para estar en peligro, pues es ella misma el acontecimiento más peligroso del universo.” (ibidem, p.346) María Zambrano critica a intolerância européia às vertigens ou às inseguranças, dúvidas tão necessárias à rotina da vida, a menos que dificilmente possa se encontrar algo verdadeiro ou apaziguador que consiga aquietar o anseio dessa busca pessoal. A vida em desespero é relegada quando o homem não é capaz de constatar a ausência de algo, embora o destino humano esteja atormentado pelo inquietante sentimento de carência. Essas angústias são comuns aos pensadores, que tomam para si o compromisso ético de delatar as incongruências de seu tempo. María Zambrano considera esse pensamento oposto à situação vital ou às tendências modernas de bovarismo presentes naquele tempo, pois, segundo a autora, “Madame Bovary y sus discípulas necesitan que les ocurran cosas, que su vida se vea rota por acontecimientos inusitados, llegados de fuera, extraños a ella, para darse cuenta, por el peligro ante lo inesperado, de que en verdad existen.” (ibid., p.347) Em razão da leitura de María Zambrano, julgamos que o entendimento humano de suas próprias estruturas culturais, econômicas, sociais, políticas respondem à uma ânsia de consciência de si mesmo, da descoberta de uma quintaessência primordial do sujeito, que ao revelar o desconhecido, também se desvela na aventura de sua existência e no sabor desafiador das incertezas que o rodeiam.

Pero hoy el intelectual en Europa tiene, además de los motivos permanentes y esenciales que originaron la duda cartesiana, otros críticos, concretos y actuales que añadir al peligro. Como ser humano, dotado de un imperativo de claridad, tiene el europeo de hoy los mismos motivos de Descartes para dudar metafísicamente de la totalidad de cuanto existe. Pero se encuentra, además, viviendo en un mundo en crisis, en medio de una cultura, de una estructura económica y social que parece negarse a seguir sosteniéndole. Ahora más que nunca el intelectual europeo vive en peligro y su imperativo de claridad le exige que viva serena y luminosamente en peligro, alumbrando con su propia luz sin llamas el fondo oscuro en que tal vez su cultura, su mundo y con él el sentido de su propia existencia, pueden disolverse un instante u otro. (ibid., p.348)

É óbvio que essa forma de pensar a realidade em toda a sua amplitude é inegavelmente influenciada pela ideia de modernidade, que, ao lado da concepção do progresso, identifica-se com o que é novo, o qual, por sua vez, aponta para a ruptura do já existente através do procedimento crítico da mudança e da

renovação. Naquela época de esplendor parisiense do século XVII, certamente, Descartes, afirma Zambrano, possuía um foco diferente do sentimento da dúvida em torno de tudo que circunda o homem, pois a sua consciência forma-se mediante o perigo em que se encontra, sob a égide de uma permanência ou essencialidade das coisas, quando, na verdade, permanência e essencialidade complementam conceitos, mas não os abrangem totalmente. Sem dúvida, a escritora espanhola concebe, por meio de um discurso do saber filosófico sustentado pela consciência crítica e autônoma do intelectual, uma imagem de ensaísta, que vislumbra a sua circunstância histórica moderna como uma idade em que incertezas e transformações de toda ordem fazem parte indissociável da subjetividade em crise do escritor: “La vida sólo precisa de la conciencia de ser vivida para constituir la más peligrosa y fantástica aventura que puede pensarse. En su virtud, el filósofo es el más audaz aventurero, el que ejecuta el más arriesgado juego, poniendo su vida en el máximo peligro al pretender alcanzar la suma claridad de su conciencia.” (ibid., p.347)

Em “Hoffmann: «Descartes»”, a ensaísta escreve que o ‘método cartesiano’, seguindo uma tendência da modernidade, refere-se a um ceticismo metodológico, no qual se preconiza a dúvida de cada ideia que não tenha clareza ou que seja distinta. Isso vem contradizer o pensamento grego e da escolástica tradicionais, que defendiam a existência quase que divina das coisas por elas precisarem simplesmente existir e era assim porque deveria ser dessa maneira. Segundo esse ensaio zambraniano, a grande contribuição filosófica de Descartes foi mostrar que só se pode dizer que existe o que pode ser provado, isto é, eu duvido até que provem que o objeto da minha descrença é claro, diferente e irrefragável. A existência cartesiana da subjetividade está na crença de que o eu duvida e, por conseguinte, prova que é sujeito de alguma coisa e de Deus –cogito ergo sum. No texto da autora, lemos que Descartes é o precursor do racionalismo da Era Moderna, movimento a partir do qual foi possível, alguns anos mais tarde, o surgimento de uma visão reagente propiciada pelo pensamento empírico de John Locke e David Hume. Conforme esse ângulo de visão, podemos afirmar que o gênero ensaístico surgiu como uma classe de texto que questiona o sujeito fabricado pelo absolutismo do racionalismo moderno, na medida em que acaba

renegando o caráter individual, histórico, biográfico e empírico do homem. Ao longo do trabalho, será possível comprovarmos que o método ensaístico filo- poético de María Zambrano adota um impacto dramático espetacular de escritura, cujo ponto de partida, em resposta à crise da subjetividade, compreende o eu do ensaísta como uma representação de si mesmo no próprio texto. Dentro dessa perspectiva, o ensaio configura-se como um gênero discursivo capaz de não desprezar a experiência, visto que não nega o sujeito como uma instância de enunciação. Dessa maneira, o filósofo aparece como um pensador que se atribui uma responsabilidade ética e moral, que almeja se aprofundar nas especificidades da existência e no projeto de se colocar sempre em tensão, com o objetivo de converter a sua vivência transparente ou consciente à sua própria razão. Apesar de ser uma publicação bem posterior, é interessante observar o que María Zambrano nos confessa em “Adsum” (1955): “[…] cuando lo mido (mi yo), siento que es mío, que podría ir más allá, pero que este más acá a donde he ido a parar, ahí soy yo, ahí no tengo más remedio que aceptar responsabilidad, porque es el punto de la moral y es un punto también de revelación.” (ZAMBRANO, M., 1987, p.70)

Retomando a figura de Descartes, sabemos que, como um inquiridor do seu tempo, o escritor defendia que a essência do sujeito e da vida era a consciência. Para María Zambrano, o labor filosófico começa com a percepção do divino, mediante o qual o homem procura elucidar a vida diária para escapar da ignorância, da falta, do desconhecimento do ser mediante o extrapolamento de todos os conceitos racionais. A atitude filosófica está precisamente no ato indagador que pretende entender as ‘coisas da vida’. Ao lado da atitude filosófica interrogadora, sedenta por acalmar a tragicidade indigente do desconhecimento, emerge, na concepção literária zambraniana, a atitude poética, que responde aos desassossegos do homem, preenchendo os seus vazios e atribuindo, de alguma forma, sentido a tudo, enfim, conferindo-lhe identidade. Se aceitarmos a realidade de que o ato de perguntar é eterno e que continuamente conceitos estão sendo destruídos ou revistos pelo pensamento humano, teremos, inegavelmente, a consciência de que sempre retornaremos ao estado atemorizante, sagrado ou trágico do começo. Esse conceito da necessidade de regressar ao princípio de tudo, tendo como objetivo a autocompreensão é promovido pelo pensamento

zambraniano diversas vezes na escritura das suas obras e, nós, o abordaremos de modo intenso.

A interpretação desse ensaio zambraniano, “Hoffmann: «Descartes»”, é- nos pertinente, pois, como vimos, surge como um ponto crítico de inflexão da modernidade, que María Zambrano vai desenvolver de uma maneira repetidamente inovadora em seus escritos, tomando como sustentação basilar a assertiva de que o homem moderno tem a característica de persistir na dúvida em relação a quase tudo, pois se nos é claro que o mundo da modernidade é o da crise, o do perigo, é natural que a busca por uma clareza jamais é categórica, pelo contrário, ela se renova por meio da recusa ao absolutismo de valores ditos permanentes e na brecha do pensar revigorado de que tudo o que existe, inclusive o eu, pode mudar a qualquer momento.

Em “Robert Aron y Arnaud Dandieu. «La Révolution Nécessaire»” (resenha, Madri, t.XLIV, n.º 131, maio 1934, pp.209-221), María Zambrano explica que na obra se critica o pensamento, a obra teórica e a consequente

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 58-87)