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Revolução, modernidade e reencontro com o passado

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 90-98)

4. MARÍA ZAMBRANO NA REPÚBLICA E NA GUERRA CIVIL

4.2. Dimensão reflexiva e política em Hora de España

4.2.1. Revolução, modernidade e reencontro com o passado

Em Hora de España, reforçamos o acentuado caráter do seu projeto político realizado pelos escritores na literatura, denotando um singular vanguardismo da publicação. Nos números da revista em que publica Zambrano, seu texto localiza-se ao lado de escritores como Antonio Machado, Montesinos, Luis Cernuda, Serrano Plaja, Rosa Chacel, Vicente Aleixandre, Vicente Huidobro, Emilio Prados, Octavio Paz, Altolaguirre, Miguel Hernández e Sánchez Barbudo, muitos deles da geração de 27, que, no geral, pretendem resgatar um passado tradicional da Espanha a fim de entender a situação atual em que se encontra o país. Alem disso, vários discursos referentes à guerra, à revolução e toda uma defesa da difusão da cultura são questões frequentes ao longo da revista.

Como María Zambrano constrói uma imagem de escritora e de intelectual no âmbito literário de seu tempo, no texto “La reforma del entendimiento español” (Valência-Barcelona, n.º IX, setembro 1937, pp. 13-28), se discutirá, por meio da figura de Dom Quixote, a crise do pensamento ocidental e a identidade no sangrento espaço da guerra civil daquele momento. A autora, a partir de questionamentos diversos, reforça seus supostos básicos, que lhe

garantem assumir uma singularidade de enunciação no discurso ensaístico. Podemos afirmar que dito ensaio divide-se em dois momentos, na medida em que, na primeira parte, a escritora discute o passado espanhol e os motivos que levaram à decadência política da Espanha às portas da modernidade. Essa forma de entender a própria história irá conduzir inevitavelmente María Zambrano a estudar e polemizar as características mais profundas e específicas de toda uma tradição cultural hispânica.

Dentro da vivência de um contexto trágico, a autora, a partir da leitura do passado, tem o objetivo de compreender as causas da tragédia que afetava o povo espanhol naquele momento da escritura do referido ensaio. Na segunda parte de “La reforma del entendimiento español”, temos o romance de Don Quijote de la Mancha e o personagem Dom Quixote como núcleo temático. “La reforma del entendimiento español”, como outros ensaios da pensadora, interpreta a tradição cultural do povo espanhol, o qual, pela palavra, procura erguer o seu futuro e conquistar uma independência libertadora. Os escritos zambranianos centram-se em uma luta pela conscientização de um silêncio sufocante em relação ao passado, que precisa ser preenchido pela representação literária. A história, conforme assevera Roger Chartier, é “[…] una escritura siempre construida a partir de figuras retóricas y de estructuras narrativas que también son las de la ficción” (CHARTIER, R., 2007, p.22), que, sem sombra de dúvida, requerem um significativo esforço intelectual por descifrar os mistérios do acontecer pretérito. Os fatos e a criação, portanto, não são antinômicos, visto que se interpenetram constantemente tanto na fala como também na escrita. Entretanto, nesse plano da constituição do ensaio nomeado por Arenas Cruz (1997, pp.33, 34) como sintático-semântico, é preciso dizer que entre história e escritura, há uma presença do paradoxo, que elabora o saber não como uma repetição do discurso, mas como uma construção enunciativa, auxiliada fundamentalmente pelo conhecimento do alheio. María Zambrano valoriza essa ideia quando em “La reforma del entendimiento español” distingue as peculiaridades da cultura espanhola em contraposição aos demais países europeus: “Difícilmente pueblo alguno de nuestro rango humano ha vivido con tan pocas ideas, ha sido más ateórico que el nuestro.” (ZAMBRANO, M., 1937, p.14) Para a ensaísta, essa

característica supostamente ateórica do povo espanhol é questionável, pois a Espanha não somente compartilhou, mas também assumiu um compromisso político sério ao se aliar à luta européia contra a crise desencadeada pela ameaça fascista. Embora a elite européia houvesse criticado duramente os valores da tradição cultural espanhola, o povo espanhol solidarizou-se com o resto da Europa, a fim de salvá-la de um destino nefasto de repressão. Segundo a autora: “No parece ciertamente Europa merecer lo que por ella hace el pueblo español, y ni Paris, ni Londres se merecen a Madrid; pero si no se lo merecen, lo necesitan.” (ibidem, p.16) A identidade define-se por um enfrentamento com o outro, que, por sua vez, propicia esses muitos sujeitos que inventamos para nós mesmos; daí que a identidade é uma construção literária e, na verdade, somos a partir do momento em que tomamos consciência. O ensaio sempre causa polêmica, pois inclui o alheio e o outro na modernidade, sendo encarado a partir de uma perspectiva histórica, que necessita de contornos épicos que valorizem o relato.

O fato de que a construção ensaística de María Zambrano se sustente por um tipo particular de relação que possui com o passado leva-nos a acreditar que a identidade no está definida propriamente pelos eventos históricos, mas pela palavra que os dramatiza e os organiza no homem íntimo. Essa é a diferença entre o passado e a sua representação, cuja memória cumpre o papel de promover a continuidade de uma história que já não existe, a não ser pela capacidade de organização psíquica e pela experiência de quem a viveu de uma maneira muito sui generis. Além disso, é importante também recordar que, hoje em dia, todos os envolvidos são outros, ou seja, pessoas completamente diferentes.

La lucha terrible que conmueve al pueblo español ha puesto de manifiesto todo nuestro pasado. Pasa nuestro pasado por nuestra cabeza como si lo soñásemos. Con ser ahora cada español protagonista de tragedia, diríase que, sin embargo, deliramos y es nuestro delirio el ayer que «siglo a siglo y gota a gota» sucede atravesando todas las conciencias. (ibid., p.13)

O sentimento de catástrofe é lugar comum na obra de María Zambrano, que critica as derrotas de um estado republicano e o padecimento dos horrores da guerra civil, que provocou uma paralisia intelectual com o exílio de diversos autores espanhóis, entre eles, a própria ensaísta em 1939. Sabemos que a

percepção do trágico moderno espanhol é o pilar essencial de sustentação dessa época, sobre o qual se poderá desenhar uma imagem da Espanha. Nesse momento, foi fundamental a formação de um grupo, que instaurou um cânone literário e artístico com razões ideológicas, nacionalistas, estéticas muito definidas e firmes, que tentou combater o fracasso do neoliberalismo. Esses intelectuais, muitos deles exilados, considerar-se-ão um tipo de vanguarda política e social importante de meditação e participação política no cenário espanhol, capaz de questionar a sua própria cultura e tradições por meio de linhas de pensamento não conclusivas, que caracterizam o discurso ensaístico. Na Espanha, a filosofia não está em sistemas filosóficos, mas na arte. Muitos dos escritores daquela época eram amigos e as tertúlias realizadas funcionavam como uma instituição para-literária, que tinha grande valor histórico e artístico, cuja liderança determinava os ideais de todo o grupo.

Aproveitando-nos dos estudos de Ulrich Grumbrecht (2001, p.9-12), podemos dizer que a noção do trágico, na forma de um gênero dentro da literatura, apresenta algumas afinidades com a cultura espanhola em períodos decisivos de sua história. De fato, as grandes manifestações da cultura ocidental da tragédia emergiram de uma situação política, cultural e religiosa específica, porquanto o trágico abarca um sentido extremamente sintomatológico. Por isso, é necessário analisar esse conceito na cultura ocidental moderna. A experiência do tempo como trágica requer um estado de espírito em que os conflitos tenham um reflexo atemorizador em sua vida imediata.

Em um tempo onde a razão queria instalar-se completamente na realidade humana, se pôde vislumbrar que os acontecimentos históricos arrasaram o delírio da modernidade e, ainda mais, constatou-se que a ineficiência da racionalidade pura indicava o fracasso do próprio homem, o qual, acatando a uma diretriz agora não mais simplesmente histórica, mas também filosófica tenta recuperar-se da situação de perda pelo uso da palavra ficcional, que transcende a destruição e pode construir outro porvir. Essa maneira que o sujeito encontra de contemplar o seu próprio espírito conduz-lhe à surpresa de uma verdade, a uma descoberta de conceitos tão somente subjetivos, pessoais, cujo valor, em primeira instância, estará estreitamente relacionado com o indivíduo revelado, com o qual se pode

começar a viver e a se expressar novamente de modo particular. É possível que a busca da verdade parta de um estado romântico intelectual de solidão, no entanto, desemboca em um encontro com uma comunidade, com os outros que se é e com os quais dialoga e divide suas inquietações.

A constatação de que a vida precisa ser ilustrada por ideias ou conceitos acalma as tensões da alma humana, livrando-a das trevas da irreflexão e elevando- a a um nível de sagrado: “En la incertidumbre que es la vida, los conceptos son límites en que encerramos las cosas, zonas de seguridad en la sorpresa continua de los acontecimientos.” (ZAMBRANO, M., 1937, p.13) Conforme mencionamos antes, segundo María Zambrano, ao contrário dos outros povos europeus, os espanhóis estiveram ‘carentes de ideias’ e, por isso, fundaram padrões extremamente rígidos para o entendimento do mundo. Como crítica à estupidez da guerra civil espanhola, a autora indaga-se sobre como pode um povo com tantas qualidades ficar privado, em sua vida quotidiana, do poder do discernimento intelectual, que combate o negro sentimento da angústia. O saber não é um privilégio de poucos que podem tê-lo, mas um movimento importante para que a vida não se esgote inutilmente. María Zambrano discute os resultados que a forma de pensar a sua própria cultura proporcionou à vida e ao povo espanhol. Entre as principais consequências, está o carácter dogmático característico do pensamento espanhol desde a Contra-reforma. Para o surgimento de ideias, a ensaísta coloca como imperativo a associação entre vida e pensamento com o objetivo de construir realidades mais transparentes e mais poeticamente racionais e humanas.

[…] el pensamiento es función necesaria de la vida, se produce por una íntima necesidad que el hombre tiene de ver, siquiera sea en grado mínimo, con qué tiene que habérselas, por ser la vida algo que tenemos que hacernos y no regalo cumplido y acabado, por estar rodeada la misteriosa soledad de cada uno, de cosas y aconteceres que no sabe lo que son, y por haber destrucción, muerte y sinrazón, es necesario –y hoy más que nunca– el pensamiento. (ibidem, p.14)

A forma de conhecimento desenvolvida pelo espanhol durante séculos distanciava-se da que fluía nos ambientes do saber clássico e filosófico dos outros países da Europa. Dentro do contexto da modernidade, esta disparidade concatenava perfeitamente com a conturbada situação social do país e a imagem de êxito e prosperidade do sistema capitalista em plena expansão pelo mundo, que

observava com menosprezo o atraso da vida espanhola, embora esta fizesse parte da cultura do Ocidente. Frente à circunstância de isolamento cultural da Espanha com relação à Europa e na aparente carência de conceitos e ideias para reencontrar e compreender o passado de toda uma nação era imprescindível, para a escritora, descobrir as origens da selvageria irracional que havia provocado uma bárbara guerra civil. O crescimento da decadência política na Espanha, afirma María Zambrano, provocou um afastamento dos valores culturais em ebulição no restante do continente europeu. Nesse cenário de paralisia cultural, surge um forte sistema dogmático espanhol, quase sagrado, sobre certos conceitos como a honra, a religião, a unidade nacional, a monarquia, a mistificação do passado, a forma de ser da Espanha e do espanhol. Ana Bundgard sustenta que

Desde el momento en que se inicia la decadencia del Estado español no habría existido en el país un pensamiento capaz de desarticular el dogmatismo de la Iglesia que en colaboración con una Monarquía absolutista y unitaria había desintegrado paulatinamente a la sociedad desde los tiempos de los Reyes Católicos hasta el siglo XX. (BUNDGARD, A., 2000, p.308)

Diante desse panorama, torna-se mais lógico pensar que a história espanhola houvesse se diferenciado por um alto grau de misticismo em contraposição à uma não oportunidade de se oferecer como um objeto de conhecimento sistemático e filosófico puramente racional. Tais temas tornam-se cruciais dentro da história do pensamento hispânico e acabam refletindo um determinado sentimento niilista vigente, que exprimia um contraste entre a verdadeira vontade dos espanhóis e a sua circunstância. Para María Zambrano, essa situação de enfraquecimento político e evidentemente cultural era extremamente preocupante e grave, na medida em que ocasionou uma forte segregação entre as classes dominantes, segundo a autora, responsáveis por congelar o pensamento e por fazer fracassar o estado espanhol e o povo, que, em sua grande maioria, inconscientemente, acabou tanto realizando o ideário político do governo, como também sofrendo as suas perversas consequências. Essa mencionada falta de ideias dificultou ao povo espanhol examinar analiticamente a sua própria história, o que também impediu que se refletisse suficientemente sobre a colocação histórica e cultural da Espanha à margem da Europa.

Mientras Europa creaba los grandes sistemas filosóficos desde Descartes a Hegel, con sus consecuencias; mientras descubría los grandes principios del conocimiento científico de la naturaleza desde Galileo y Newton a la física de la Relatividad, el español, salvo originalísimas excepciones individuales, se nutría de otros incógnitos, misteriosos manantiales de saber que nada tenían que ver con esta magnificiencia teórica, como nada o apenas nada tenía que ver su mísera vida económica con el esplendor del moderno capitalismo. (ZAMBRANO, M., 1937, p.15)

Faltou a consciência de que o olhar pretérito é essencial para a compreensão do seu próprio ser e para verificar em que momentos acertou ou se equivocou. Para María Zambrano, refletir sobre o passado é condição indispensável para a análise do presente e do futuro da Espanha; é fundamental para entender a sua forma de construir o conhecimento. Há certa atitude serena ou madura do sujeito quando, diante do trágico, mostra-se em relação ao destino ou ao inevitável no que concerne à sua tragédia pessoal, histórica e cultural. A tragédia ocidental floresceu no momento em que o equilíbrio de uma visão objetiva racional do mundo chocou-se com uma cultura moderna, na qual imperava uma cultura da subjetividade. Dentro da sociedade moderna, segundo Gumbrecht (2001, pp.15, 16), há elementos ‘desparadoxificadores’, que amenizam ou tentam resolver esses conflitos dentro do mercado capitalista e midiático das relações financeiras e comerciais.

O único mal ainda irremediável e limitador da ação humana, sustenta Grumbrecht (ibidem, p.16), é a morte, sobre isso já falava Miguel de Unamuno na transição do século XIX para o século XX. A morte é o que nos causa pavor e dela queremos fugir ou retardar a todo custo em um sentimento tragicofóbico inerente a nosso estar no mundo, levando-se em consideração que somos tragicofílicos, na medida em que somos também filhos da tragédia do pecado dentro da formação ocidental da filosofia cristã. Nesse sentido, o sentimento do trágico inicia no nosso nascimento, permeia nossa vida em diversos instantes e está mais do que presente em nosso fim. A vida do homem segue o esquema do início, meio e fim trágico, o qual apresenta relação com a ideia de fracasso, como um sentimento não de destruição irrevogável, mas sim como uma oportunidade de reflexão filosófica, o que se torna uma oportunidade também de subir ao palco e fazer de si, como os ciclos de vida e de morte, também um espetáculo, do qual devemos tirar o melhor proveito e prazer, já que sua situação é concreta e irremediável. Ao longo de toda a

história, o fascínio e a repulsa pela morte, pela tragédia e pelo fracasso são inegáveis. Muitas vezes, torcemos para que isso aconteça em um movimento interior de catarse de nossos próprios medos. O pensamento sobre o fracasso é um valor intelectual e filosófico para María Zambrano, como uma maneira de lidar com o que a aterroriza e a faz sofrer como escritora e intelectual e como uma mulher espanhola durante um período de guerra em seu país ao expor o seu pensamento em relação às suas próprias tragédias e às suas próprias mortes, bem como as de seu povo com uma intenção estética e ética responsável.

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 90-98)