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A razão poética como método de reconciliação

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-44)

3. UM CONCEITO DIFERENTE DO TRÁGICO

3.2. A razão poética como método de reconciliação

A razão poética foi um estilo zambraniano utilizado expressamente como uma possibilidade de realização não somente estética, mas também ética e pessoal, mostrando-se, para a autora, cada vez mais necessária em nossos tempos, nos quais a severidade do racionalismo vulnera o espírito humano e oculta as dimensões enigmáticas da vida. Por meio da palavra literária, esse método zambraniano possui o poder de iluminar os caminhos misteriosos da história e conceder-lhes um depoimento que aspira a contribuir para a formação de uma consciência circunstancial e ampla no homem ante um mundo por vezes confuso, ameaçador e sombrio. A história, na concepção de María Zambrano, manifesta-se como uma espécie de mal necessário que desafia o ser humano a superá-la ou

transcendê-la, posto que a existência compõe um universo desejoso por confidenciar infinitas e insuspeitadas revelações. Em contraposição aos presságios de guerras na Europa e de difíceis tempos de ditadura, a linguagem artística, a razão poética de María Zambrano ocupa um lugar privilegiado ao oferecer explicações da realidade em uma relação de significado diferenciada. Dentro de um contexto ocidental, a opção estética zambraniana denota uma leitura política, ética e social de seu país, que necessita urgentemente exteriorizar-se por meio de uma liberdade enunciativa da escritura ensaística, crítica e poética, como um modo de reforçar os seus questionamentos com referência à história.

María Zambrano, em “Adsum” (1955, In: ZAMBRANO, M., 1987a, pp.3- 7), exibe uma experiência de declaração do eu, a partir da exposição da sua criação literária, que conjuga pensamento-conhecimento e invenção-teatralização da referencialidade escritural ao dissertar sobre a sua profunda vocação filosófica, onde a morte e o nascimento metaforizam o signo trágico da existência oriunda do desejo divino.

Había querido morir, no al modo en que se quiere cuando se está lejos de la muerte, sino yendo hacia ella. No la había llamado, simplemente debió de ponerse en marcha por el camino que a ella lleva o quizá equivocarse; quizá fue que cayó en una trampa o que se fió de un espejismo; un error. Y el error se paga con la muerte. Por eso es inexorable morir para todos. También porque nunca se ha estado vivo del todo ni sea posible estarlo. [...] La tragedia única es haber nacido. Pues nacer es pretender hacer real el sueño. Nacer es realizar o pretender realizar el sueño de nuestros padres; el sueño de Dios inicialmente. (ZAMBRANO, M., 1987a, pp.3, 4)

Em “Adsum”, a autora comenta alguns de seus escritos, à primeira vista mais sobressalentes, na Revista de Occidente. O primeiro texto que menciona é “Por qué se escribe”. Nele, mantém suas concepções sobre a existência de três formas de razão: a razão cotidiana, a razão mediadora, a qual, esclarece, aparece depois no prólogo de seu livro El pensamiento vivo de Séneca (1944) e, embora sem declarar exatamente a expressão, a razão poética, recuperada um pouco mais tarde em seu outro ensaio “Hacia un saber sobre el alma”, publicado primeiramente na Revista de Occidente em dezembro de 1934. Após alguns anos, em 1950, o referido ensaio passa a compor um livro com o mesmo título.

Rememorando alguns de seus ensaios, a escritora garante que suas apreciações sobre a razão poética também surgem, entre outras publicações, em uma nota sobre um livro de Antonio Machado, ““La guerra” de Antonio Machado” redigida em dezembro de 1937 para a revista Hora de España. A autora explica que esses artigos foram publicados muito próximos às vicissitudes da guerra civil espanhola. Para María Zambrano, não somente os infortúnios experimentados na Espanha nesse período, mas também a história em geral é captada na forma de um constante processo de transmutação poética, que visa reconstruir uma identidade subjetiva e transcendente do homem na modernidade. Diante dessa perspectiva, o ensaio, para Arenas Cruz (1997, p.55), submete a experiência argumentativa às idiossincrasias do escritor, que, em lugar de revelar um conhecimento arbitrário, almeja alicerçar e defender uma posição particular em seu tempo. Sendo assim, o papel singular do ensaísmo literário de María Zambrano, dentro dos juízos levados a cabo com referência à uma racionalidade moderna, é digno de uma contemplação crítica investigativa. É óbvio que o tratamento temporalmente diferenciado de determinadas problemáticas em estudos filosóficos, como o que estimula o ser humano a um exercício tão espinhoso como a escritura ou o autoexame de sua própria história e cultura ou ainda o pensar sobre a importância de uma razão poética no âmbito da existência e a religação espiritual do indivíduo com o sentimento do divino, está estreitamente conectado à assertiva de que o homem caracteriza-se como uma questão fundamental para si mesmo, visto que denota um eterno desejo pela realização pessoal, anímica e material. Certamente, se a plenitude da satisfação existencial fosse uma meta facilmente alcançada em nossas contingências, não seria viável a contínua problematização humana ao longo da história da filosofia e da literatura. O tema da ‘razão poética’, ao contextualizar as obras zambranianas e conformar um dos núcleos primordiais do seu pensamento, serve ao propósito de dilucidar os matizes característicos de uma subjetividade moderna, influenciada por uma sucessão de fatos culturais, históricos e sociais extremamente distintivos, que peculiarizam a situação trágica do homem na modernidade provocada pelos excessos do racionalismo. A razão poética cumpre a função de humanizar a história e recobrar os valores espirituais do homem moderno.

Tomando-se em consideração todo o exposto anteriormente, dentro da presente pesquisa, ratificamos que as correspondências existentes entre o discurso ensaístico, o discurso filosófico, o conceito atualizado do trágico, as reflexões suscitadas pelo fenômeno da modernidade e todos os seus vetores intrínsecos de abordagem perfilam-se como pilares de sustentação que consideramos intimamente correlacionados e aparecem como parâmetros fundamentais ao desenvolvimento do nosso pensar.

4. MARÍA ZAMBRANO NA REPÚBLICA E NA GUERRA

No documento – PósGraduação em Letras Neolatinas (páginas 40-44)