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A especificidade do modo de produção da Venezuela Colônia

3.2 Formação da Venezuela na história

3.2.1 A especificidade do modo de produção da Venezuela Colônia

A economia venezuelana pode ser tomada como exemplo de uma típica colônia ameríndia, porém, o que implica ser uma colônia? Com base em Garavaglia, pensamos a nossa realidade histórica colonial como a unidade dialética entre a “relação colonial, ou seja, a submissão política-econômica de um espaço sobre outro” (1986, p.10, tradução nossa), e a estrutura geográfica, social e econômica pré-existente sobre a qual se impõe esta relação. À medida que a economia precisa ser direcionada cada vez mais à produção de valores de troca, o capital luta para criar as relações sociais que permitem a maior extração possível de trabalho excedente. A força com a qual se impõe essa relação depende do tipo de metrópole e do grau de desenvolvimento de suas forças produtivas, ainda que a dissolução de um modo de produção anterior não necessariamente leva ao estabelecimento de relações capitalistas de produção. No caso da América Latina, do genocídio e roubo de centenas de anos, que pretendiam enterrar historicamente nossos povos originários, não brotaram relações capitalistas até o segundo quarto do século XIX (idem). Contudo, não se pode esquecer que, em geral, nas colônias chegaram expedições europeias que não vieram em missão de paz e que tinham como objetivo resolver as crises capitalistas da Europa:

O capital comercial desta etapa, ao enfrentar uma forma produtiva determinada, propõe como único fim a extração da maior quantidade possível de trabalho excedente. [...] essa ‘fome de trabalho excedente’ esteve acompanhada no geral pela imposição das relações marcadas fortemente de aspectos servis [não capitalistas], onde o elemento instintivo será o uso da força, ou seja, da coação extra-econômica. (GARAVAGLIA, 1986, p.11).

Esse ainda é um debate extenso, e concordamos com Ciro Flamarion Cardoso que sua principal dificuldade reside justamente em entender a especificidade do modo de produção colonial como algo além do que uma mistura de diferentes modos de produção, extraídos das categorias marxistas, como etapas lineares de desenvolvimento (CARDOSO, 1986, p.141). Como explica o autor, as estruturas aqui presentes não são redutíveis aos modos

de produção elaborados por Marx em seu estudo sobre o desenvolvimento da Europeu e do Mediterrâneo. As categorias de modos de produção parciais ou secundários poderiam contribuir para compreender a composição de um modo de produção que surge especificamente da dominação europeia sobre o continente americano e que subsiste após as lutas de independência até a implantação do capitalismo no continente, que em cada país se deu em diversos momentos, mas nunca antes do final do XIX; ainda assim, os EUA foram quase exclusivamente os que conseguiram desenvolver internamente um modo de produção capitalista antes do final do século XIX. Porém, esta crítica ao marxismo termina sendo mais uma crítica à sua implementação mecanicista, pois a transformação das relações sociais não se dão de forma automática, como uma imposição linear. A seguinte passagem pode ser elucidativa nesse sentido, pois nela, Marx explica como um modo de produção advém totalidade em relação ao desenvolvimento das forças produtivas:

Deve-se ter em mente que as novas forças produtivas e relações de produção não se desenvolvem a partir do nada, nem caem do céu, nem a partir do seio da Ideia que se postula; mas de dentro e em antítese ao desenvolvimento da produção existente e das relações tradicionais de propriedade herdadas. Enquanto no sistema burguês pleno toda relação econômica pressupõe todos as outras em sua forma econômica burguesa, e tudo posto é, portanto, também um pressuposto, este é o caso em todo sistema orgânico. Esse próprio sistema orgânico, como uma totalidade, tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento a sua totalidade consiste precisamente em subordinar todos os elementos da sociedade a si próprio, ou na criação, a partir deles, dos órgãos que ainda não possui. Assim é, historicamente, como se torna uma totalidade. O processo de se tornar esta totalidade constitui um momento de seu processo, de seu desenvolvimento. -Por outro lado, se em uma sociedade as relações modernas de produção, ou seja, o capital, estão desenvolvidas em sua totalidade, e esta sociedade, em seguida, se apodera de um novo território, como por exemplo, as colônias, ela descobre, ou melhor, o seu representante, o capitalista, descobre que seu capital deixa de ser capital sem trabalho assalariado e que um dos pressupostos deste último não é apenas a propriedade da terra em geral, mas moderna propriedade da terra; propriedade fundiária que, como renda capitalizada, é cara e que, como tal, exclui o direito ao uso do solo por parte dos indivíduos. (MARX, 1973, p.277, tradução nossa).

Assim, sem o trabalho assalariado e sem propriedade privada da terra, como foi o caso das colônias, não há capital; o desenvolvimento do capitalismo não surge por imposição e tentar encontrá-lo sem investigar os elementos constitutivos que o precederam é um exercício em vão. Mais útil é partir da compreensão do modo de produção preexistente e acompanhar seu desenvolvimento, ou melhor, sua “submissão” ao sistema capitalista, a criação dos elementos do capitalismo a partir dos órgãos do sistema anterior que eventualmente deixa de existir. É possível identificar modos de produção que foram dominantes em territórios específicos durante certo tempo no continente, como o escravismo nas Antilhas e no Brasil, porém isso não os torna determinantes para a região como um todo.

Ciro Flamarion Cardoso oferece a concepção de modos de produção dependentes, pois a relação de “dependência – que tem como um de seus corolários a transferência de uma parte do excedente econômico às regiões metropolitanas […] é um dado inseparável do conceito e das estruturas de tais modos de produção” (CARDOSO, 1986, p.142). Para entender seu desenvolvimento histórico, o autor aponta ainda à necessidade de entender as contradições internas das formações coloniais como subordinadas aos impulsos externos que transformavam sua estrutura; impulsos que, por sua vez, são consequência das contradições internas das próprias metrópoles. Assim, os processos americanos de independência e a conformação dos estados modernos só podem ser entendidos quando temos presente a situação dos países colonizadores em seu próprio desenvolvimento capitalista.

Com base nesta concepção, pode-se explicar em parte a diferença da colonização inglesa na América do Norte com a espanhola e portuguesa na América Latina. Enquanto a primeira é movida pelas contradições internas da Inglaterra, império com economia capitalista mais desenvolvida em sua época, a colonização latino-americana é caracterizada pelas contradições da contrarreforma e pelo atraso econômico e político que caracterizam a decadente monarquia ibérica. O historiador brasileiro e marxista Cardoso resume essa relação a três principais modos de produção dependentes que caracterizaram a realidade colonial no continente. Primeiro, um sistema fundado sobre a apropriação de terras e a exploração da força de trabalho indígenas, que introduziu em formações econômico-sociais anteriores elementos externos, como o tributo e a economia monetária, e integrou essa força de trabalho aos interesses mercantis da colônia; ao mesmo tempo que, paralelamente, permite a permanência de algumas comunidades indígenas relativamente autônomas que mantiveram sua própria estrutura de expropriação e de classes, mas substituindo os antigos impérios – como o Maya no México e o Inca nos altiplanos andinos – pela nova metrópole espanhola; empurrando à marginalização as regiões que não se integraram, pois, incapazes de competir com o desenvolvimento produtivo capitalista, vão sendo expulsas para regiões pouco férteis. Segundo, uma economia diversificada e autônoma de pequenos proprietários, que se constituiu quase exclusivamente na América do Norte e permitiu o desenvolvimento à industrialização ainda na época colonial. Terceiro, um desenvolvido em regiões com população indígena pouco densa e favorável a atividades de exportação com base no plantio de produtos tropicais em grandes extensões e na exploração de jazidas de metais preciosos; aqui a escravidão, expulsão e consequente extermínio dos indígenas e a importação de escravos negros caracterizam a força de trabalho. (CARDOSO, 1986, pp.152-154). O Brasil colonial possui características mais próximas a este terceiro modo de produção, já a

Venezuela seria composta predominantemente pelo terceiro – nas regiões “Amazônico- Orinoquense” e de “Los Llanos” – e, em menor parte, pelo primeiro, que traça semelhanças com a região “Costeiro Montanhosa”, devido a um maior grau de desenvolvimento econômico e maior densidade demográfica, pesar de não chegar a se constituir como império. Em sintonia com essa concepção, o também marxista brasileiro Bvila sintetiza e explica de maneira mais abstrata o movimento da economia brasileira, em diálogo com outros intelectuais nacionais, na seguinte passagem que, apesar de focar-se no caso brasileiro, acreditamos ser relevante para o desenvolvimento venezuelano em sua passagem de colônia a economia capitalista dependente:

O desenvolvimento das forças produtivas, relações sociais de produção e classes sociais do modo de produção capitalista na sociedade brasileira, não resultam de uma contradição fundamental interna entre o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e as relações sociais de produção feudais, que dá origem àquele elemento médio revolucionário – a classe burguesa nascente – que para se firmar necessita liquidar o velho modo de produção, suas classes sociais e contradições de classes. Mas, sobretudo, das relações de complementariedade entre o modo de produção da sociedade brasileira e o desenvolvimento global do modo de produção capitalista na Europa. Logo, as contradições que daí derivam é que operam o salto histórico do modo de produção escravista ao capitalista no Brasil, tomando por base a grande propriedade privada da terra, transformando as relações de produção e conformando as estruturas sociais da sociedade às necessidades de produção e consumo da divisão internacional do trabalho e do padrão de acumulação, ditados pelo centro hegemônico do sistema.

[...]

Nessas condições, a economia agro-exportadora, herdada da colônia, torna-se a base principal do desenvolvimento capitalista no Brasil; sua baixa acumulação de capital não decorre de como os homens produzem, mas para quem e sob quais condições se produz – a herança colonial de dependência do capital financeiro imperialista e do mercado externo não permitem a constituição imediata de um mercado interno, logo, a maior parte da mais-valia produzida no país não se realiza internamente e é acumulada pelo capital financeiro imperialista, impedindo assim o desenvolvimento autônomo do capital industrial, comercial e bancário. (BVILA, 1996, p.47-48)