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Acumulação Primitiva, a gênese do trabalho assalariado

2.4 O trabalho através dos diferentes modos de produção pré-capitalistas

2.4.4 Acumulação Primitiva, a gênese do trabalho assalariado

Até agora vimos como surgiram no horizonte os principais elementos que compõe a relação-capital que enxergamos hoje como um grande sistema “natural”, ao qual somos submetidos e que parece praticamente impossível derrubar. Porém, ainda sob as relações de produção feudais, nenhum desses elementos, ou categorias são ainda capital; nem se

consideradas em conjunto, pois o capital não é um objeto – ele não é o dinheiro ou a mercadoria – nem um local – não é a fábrica, nem a bolsa de valores –; o capital é uma relação social que significa reprodução, criação e acumulação de valor criado através do trabalho, porém trabalho assalariado que não tem outra alternativa que se vender a quem já tem valores acumulados e pode assim comprar a força de trabalho e mobilizar as demais forças produtivas que compõe esse processo cíclico de acumulação. Mas se a sociedade funcionava de acordo a um sistema de produção e relações sociais determinadas por este, se todos os elementos dessa nova sociedade já estão presentes, mas apenas como elementos da sociedade feudal que persiste, como se dá o “salto qualitativo”, a transformação dialética de um sistema a outro? Marx resume esse processo da seguinte forma:

O produtor direto, o trabalhador, somente pôde dispor de sua pessoa depois que deixou de estar vinculado à gleba e de ser servo ou dependente de outra pessoa. Para tornar-se livre vendedor de força de trabalho, que leva sua mercadoria [sua força de trabalho] a qualquer lugar onde houver mercado para ela, ele precisava ainda ter escapado do domínio das corporações, de seus regulamentos para aprendizes e oficiais e das prescrições restritivas do trabalho. Assim, o movimento histórico, que transforma os produtores em trabalhadores assalariados, aparece, por um lado, como sua libertação da servidão e da coação corporativa; e esse aspecto é o único que existe para nossos escribas burgueses da História. Por outro lado, porém, esses recém-libertados só se tornam vendedores de si mesmos depois que todos os seus meios de produção e todas as garantias de sua existência, oferecidas pelas velhas instituições feudais, lhes foram roubados. E a história dessa sua expropriação está inscrita nos anais da humanidade com traços de sangue e fogo. (1988, L.1, v. 2, p.340)

Em O Capital, Marx dedica um capítulo extenso e rico em dados para ilustrar esse período histórico, principalmente na Inglaterra, apesar de ter-se observado em toda Europa em diferentes graus. A chamada acumulação primitiva implica que milhares de camponeses foram violentamente expropriados de suas terras, vendo-se privados não apenas de um lugar para viver e obrigados a migrar, mas privados também da possibilidade de viver de seu próprio trabalho, sendo agora obrigados a se vender para um arrendatário em uma manufatura ou fábrica e poder comprar seus meios de subsistência. Devido ao crescente comércio, cresce também o interesse por produzir mercadorias, sejam produtos agrícolas, de mineração ou pecuária; sob impulso desses interesses, foram eliminadas as chamadas terras comuns, este último vestígio da propriedade coletiva na Europa foi cercado e transformado em propriedade particular. Essa migração do campo à cidade, de produtor rural a trabalhador assalariado não foi um processo pacífico, gradual ou voluntário por parte dos camponeses, mas uma imposição à força que significou um retrocesso nas condições de vida da maioria dos camponeses, que, com sua relativa autonomia e com as melhorias técnicas, desfrutavam de

certo conforto como pequenos proprietários. Com a acumulação, a demanda por trabalho assalariado, tanto nas manufaturas como no campo, crescia mais rapidamente que sua oferta, o que permitia salários que o colocavam socialmente próximos ao mestre de ofício e arrendatário. Tudo isso foi destruído com a passagem ao capitalismo, como afirmou Marx: “De sua idade de ouro, a classe trabalhadora inglesa caiu sem transição […] à idade de ferro.” (1988, L. 1, v. 2 p.344)

O Estado inicialmente, na Inglaterra durante quase 150 anos, decretou leis contra a concentração de terras e o cercamento das terras comuns, mas foram em vão contra o desenvolvimento sem igual das novas forças produtivas que a relação-capital despertou. Uma nova organização do trabalho significou atingir níveis de produtividade nunca antes visto; a manufatura cresceu e deu lugar à indústria que despertou a cooperação entre muitos trabalhadores reunidos, uma potência adormecida que acarretou o desenvolvimento de diversos setores que a alimentavam (fornecedores de matérias-primas e outros bens de produção), assim como daqueles que se abasteceriam de seus produtos: a quantidade de cereais, tecidos e ferramentas poderia satisfazer as necessidades de uma população muito mais ampla. A modernidade foi inaugurada com o casamento entre a ciência e a produção, convertendo a primeira em uma das principais forças produtivas a impulsionar nosso processo de desenvolvimento tecnológico até hoje.

Essa monstruosidade que a humanidade celebra nos livros de história, recaiu com todo seu peso sobre aqueles cujo trabalho a construiu. A transformação do trabalhador camponês em operário “livre” implicou um esforço violento de submissão e disciplina, através da coesão econômica e do castigo físico. A manufatura não crescia na mesma velocidade que essa massa de seres que migravam do mundo feudal diretamente à modernidade e seu destino nas cidades nem sempre era honroso; na verdade constituíam atividades que a nascente burguesia não tinha como incluir em sua criação e acumulação de valores e, portanto, “o povo do campo, tendo sua base fundiária expropriada à força e dela sendo expulso e transformado em vagabundos, foi enquadrado por leis grotescas e terroristas numa disciplina necessária ao sistema de trabalho assalariado, por meio do açoite, do ferro em brasa e da tortura” (1988, L. 1, v. 2, p. 358), literalmente. Os centros filantrópicos, como a cruz vermelha e as infames workhouses londrinas, representavam casas de trabalho forçados para quem não conseguia trabalho em outro lugar. Durante sua infância, o capitalismo teve que se impor aos seres humanos desta maneira violenta através do que Marx chamou de subsunção formal (idem); em um segundo momento, onde a relação-capital aparece como algo “natural”, já não é necessário impor essas relações, apenas garantí-las, pois o próprio

trabalhador e 'cidadão de bem' zela por elas, no que Marx chama de subsunção real do trabalho ao capital:

Na evolução da produção capitalista, desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição, costume, reconhece as exigências daquele modo de produção como leis naturais evidentes. A organização do processo capitalista de produção plenamente constituído quebra toda a resistência, a constante produção de uma superpopulação mantém a lei da oferta e da procura de trabalho e, portanto, o

salário em trilhos adequados às necessidades da valorização do capital, e a muda coação das condições econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador.

[…]. Para o curso usual das coisas, o trabalhador pode ser confiado às 'leis naturais da produção', isto é, à sua dependência do capital que se origina das próprias condições de produção, e por elas é garantida e perpetuada. (1988, L. 1, v. 2, p.359)

As terras do Estado feudal também tinham sido alvo da apropriação privada, sendo anexadas, vendidas a preços irrisórios e doadas pelos poderes públicos aos grandes produtores agrícolas. O Estado que antes relutava contra essas novas relações sociais, no século XV, se transforma em seu principal agente, pois, como ferramenta histórica da exploração de classe, passa a representar a burguesia. As leis sanguinárias do final do século XV representam esse adoutrinamento forçado que transforma o trabalhador recém-retirado de suas terras em operário assalariado, ao penalizar a mendicância e vagabundagem, regular o salário e restringir a organização dos trabalhadores.

A reforma da igreja católica, além de liberar as terras desta para a apropriação burguesa e legitimar o novo rei inglês, trazia para seus seguidores uma nova doutrina que condizia com a dedicação ao trabalho como salvação na terra. Diferente do castigo original católico que condena o homem pecador ao trabalho, o protestante se dignifica através deste para chegar ao paraíso. Com suas leis, sua arte e sua própria religião, a superestrutura burguesa está armada e seus representantes saem a construir o mundo à sua imagem e semelhança.

As manufaturas e fábricas que não encontravam para onde escoar tremenda quantidade de mercadorias dentro das fronteiras nacionais, começam a se desenvolver principalmente nas cidades portuárias, o que evidencia a necessidade dos países mais avançados a ultrapassar suas próprias fronteiras e atender às necessidades de acumulação do capital, impondo novas necessidades a outros povos. As colônias tiveram papel determinante na acumulação primitiva do capital, representando novos mercados de escoamento e aquisição de força de trabalho; foram verdadeiras catapultas ao processo pelo qual o capitalismo se estabeleceu na Europa, pois forneciam a preços irrisórios o alimento da indústria, as matérias- primas, principalmente o ouro e prata que se convertiam em mais dinheiro para acumulação.

Nas primeiras multinacionais, as grandes corporações como A Companhia das Índias Orientais e Ocidentais, reuniram-se o Estado, antigas corporações, o setor financeiro e a igreja para levar as conquistas da civilização aos povos “selvagens” de outras latitudes; para isso, uma das primeiras atividades à qual se dedicaram foi a construção de uma ampla rede comercial em todo o mundo para resgatar do passado obscuro da humanidade um tipo de trabalho que já tinha deixado de existir: a escravidão, que volta à cena como uma das principais fontes de riqueza na relação colonial – seja por sua venda direta como mercadoria, seja por representar força de trabalho barata que competia com os assalariados. Para compreender melhor o significado da escravidão moderna no continente americano, recorremos a um trecho de uma carta de Marx a Annenkov, onde explica a importância desta para o desenvolvimento industrial:

A escravatura direta é o eixo do nosso industrialismo atual, tal como as máquinas, o crédito, etc. Sem escravatura, não temos algodão; sem algodão, não temos indústria moderna. Foi a escravatura que deu valor às colônias, foram as colônias que criaram o comércio mundial, o comércio mundial é que é a condição necessária da grande indústria mecânica. Por isso, antes do tráfico dos negros, as colônias só davam ao velho mundo muito poucos produtos e não alteravam visivelmente a face do mundo. Assim, a escravatura é uma categoria econômica da mais alta importância. Sem a escravatura, a América do Norte, o povo mais progressivo, transformar-se-ia num país patriarcal. Risque-se apenas a América do Norte do mapa dos povos e ter-se-á a anarquia, a decadência completa do comércio e da civilização modernos. Mas fazer desaparecer a escravatura seria riscar a América do mapa dos povos. Por isso a escravatura, sendo uma categoria econômica, se encontra desde o começo do mundo em todos os povos. Os povos modernos [subentende-se os europeus] só souberam disfarçar a escravatura no seu próprio seio e importá-la abertamente no Novo Mundo. (MARX, 1982)

A acumulação primitiva foi o processo que permitiu que a incipiente burguesia reunisse em suas mãos as condições para colocar em funcionamento o processo cíclico que caracteriza o capital de contínua produção, circulação e concentração.