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2.4 O trabalho através dos diferentes modos de produção pré-capitalistas

2.4.2 O trabalho no Escravismo

A origem da escravidão foi consequência do próprio desenvolvimento das comunidades primitivas. O acúmulo de riquezas e melhores condições de vida em relação a outras comunidades, ou seja, a diferenciação social, e a incipiente produção de excedente são acompanhadas pelo aumento da produtividade do trabalho, o que torna o trabalho alheio muito interessante. A história dá exemplos de grandes confederações de tribos com alto desenvolvimento dos meios de produção e organizações sociais muito complexas para as quais os escravos não tinham nenhum valor, matavam os prisioneiros de guerra e adotavam seus filhos e mulheres.

Ao introduzirem-se, porém, a criação do gado, a elaboração dos metais, a arte do tecido e, por fim, a agricultura, as coisas ganharam outra fisionomia. Principalmente depois que os rebanhos passaram definitivamente à propriedade da família, […] eram necessárias mais pessoas para os cuidados com a criação; podia ser utilizado para isso o prisioneiro de guerra que, além do mais, poderia multiplicar-se tal como o gado. (ENGELS, 1964, Cap. II)

A escravidão, portanto, marca o momento histórico que dá início à relação social de propriedade privada, que, como condição subjetiva de uma dada sociedade, necessita perpetuar-se tanto quanto as condições objetivas de sua reprodução. Assim, surge a perpetuação de relações de produção que garantem a apropriação privada inclusive depois da morte, ou seja, que garantem a herança. Marca a passagem do matriarcado ao patriarcado, pois a linhagem humana até então só podia ser identificada naturalmente pela mãe, e marca portanto a submissão da mulher ao homem, que constitui o gérmen da família monogâmica instaurada mais adiante com o feudalismo, que já era em suas origens monogâmica apenas para as mulheres. A divisão original do trabalho se mantém; porém, aquilo que se baseava espontaneamente na diferença natural entre os gêneros (objetiva), transforma-se em diferença moral (subjetiva), a mulher passava a ser formalmente considerada inferior:

No antigo lar comunista, que compreendia numerosos casais com seus filhos, a direção do lar, confiada às mulheres, era uma indústria socialmente tão necessária quanto a busca de víveres, de que ficavam encarregados os homens. As coisas mudaram com a família patriarcal e, ainda mais, com a família individual monogâmica. […] O governo do lar se transformou em serviço privado; a mulher converteu-se em primeira criada (ENGELS, 1964, Cap. II).

O modo de produção escravista permitiu eventualmente que uma parte da sociedade se abdicasse da necessidade de trabalhar, podendo se dedicar a outras atividades sociais e viver do trabalho alheio; o exemplo clássico é a Era Heróica da Grécia Antiga, cujo desenvolvimento da filosofia, da ciência e das artes nos impressiona até hoje. Nessas sociedades, pode-se observar ainda algumas características das gens – no caso da Grécia, o cultivo comum da terra, eleição dos chefes administrativos e militares, proibição de matrimônio dentro das gens – porém, já constam também novos elementos que dariam origem aos modos de produção subsequentes – direito de herança paterna, acumulação privada de riqueza, a escravidão e a guerra como fontes regulares de enriquecimento. Os homens e mulheres submetidos à escravidão não eram considerados humanos, eram meios de produção como os animais domesticados.

Com o desenvolvimento da produtividade do trabalho e dos meios de produção, junto à possibilidade de apropriação do trabalho alheio, desenvolve-se a produção de mercadorias e o comércio como atividades regulares e, assim, viu-se alterada

significativamente a divisão social do trabalho. Na Grécia, a divisão entre cidadãos e escravos subdividia também trabalhadores entre agricultores e artesãos e, principalmente em épocas de paz, a administração se dava territorialmente por corporações incipientes baseadas em ofícios e não mais por relações gentílicas. As federações tribais foram convertendo-se em um único povo que ocupava cada vez maiores extensões de terra e a organização política passou a ser com base no território e não nas relações sanguíneas, os povos se converteram em apêndices da terra. (ENGELS, 1964, Cap. IX). O trabalho militar especializado substitui o povo organizado para sua própria defesa e eventualmente se oporá a este. Já começara historicamente a guerra para dominação e não para sobrevivência: nascera o latifúndio; também a produção para a troca e não para o consumo: nascera a mercadoria; o trabalho excedente é uma realidade inseparável da exploração e da sociedade de classes: “Mal os homens tinham descoberto a troca e começaram logo a ser trocados, eles próprios. O ativo se transformava em passivo, independentemente da vontade humana.” (idem).

A gigantesca complexificação do trabalho durante essa fase pode se constatar quando comparamos as heranças arqueológicas legadas pelas sociedades escravistas com a de seus predecessores. Com os exploradores dedicados às ciências e artes, tendo direito divino e mundano a concentrar, planejar e dirigir todo trabalho excedente, o trabalho vivo dos escravos produziu não apenas as Sete Maravilhas do mundo antigo, mas sistemas de irrigação, obras de arte, navios e artefatos de guerra nunca antes imaginados. Nas cidades, artesãos especializavam-se ainda mais na produção dos mais variados e criativos artigos para a classe parasitária. Porém, esse desenvolvimento do trabalho era ainda destinado a satisfazer uma classe de exploradores cuja quantidade era muito reduzida e cuja capacidade de acumulação se limitava a necessidades pessoais ou grupais a serem consumidos em vida, ainda que exuberantes; o excedente do trabalho se destinava aos prazeres mundanos (comida, vestimenta, arte, etc.), divinos (cultos, oferendas, etc.) e quando muito se acumulava nas obras arquitetônicas, as que mais persistiam no tempo. O desenvolvimento das forças produtivas era ainda lento, apesar de significativo em relação ao modo de produção anterior.

Esse desenvolvimento significativo das forças produtivas, inclusive dos próprios trabalhadores como força de trabalho, implica também o desenvolvimento das relações entre os homens, que, com a enorme imigração, o incipiente comércio e concentração populacional, dividiam-se também em exploradores e explorados, em cidadãos e não cidadãos, em exploradores mais ricos e mais pobres, etc. Essas transformações sociais eventualmente exigiram uma legitimidade formal, as relações sociais de consanguinidade das gens já não condiziam com as diferenças sociais e a distância geográfica de seus membros. Era necessária

uma instituição que, como sintetizou Engels, “não só perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito de a classe possuidora explorar a não-possuidora e o domínio da primeira sobre a segunda. […] Inventou-se o Estado” (1964, Cap. IV) e, para mantê-lo, os impostos. No caso da história europeia, estamos diante da democracia grega e das leis romanas como ápice do desenvolvimento humano naquela época; relegando a “bárbaros” povos como os germânicos, que inclusive já haviam desenvolvido produção metalúrgica e têxtil avançadas (op. cit., Cap. VIII). Até aqui, na subjetividade humana, o trabalho era algo indesejável e relegado aos nãocidadãos, a subumanos; a própria pilhagem era para os bárbaros uma atividade mais digna que o trabalho produtivo (idem).

Como tudo em seu movimento dialético, a grandeza e opulência das cidades romanas e gregas foram, por suas próprias contradições internas, degenerando-se a ponto de inclusive serem subjugadas por bárbaros. A escravidão já não valia a pena, a quantidade de escravos chegava a quase vinte vezes a quantidade de cidadãos e, como meios de produção, havia que mantê-los. A expansão das sociedades por meio da guerra e a consequente concentração cada vez maior de pessoas implicavam maior dificuldade administrativa a custos exorbitantes. A nobreza e as cidades, que dependiam da produção das províncias, foram intensificando a exploração sobre estas, apoiadas legalmente na coesão do Estado e nada mais, o que dialeticamente foi corroendo essa mesma coesão. Os latifúndios foram cada vez mais difíceis de se manter, muitos se descompuseram de novo em pequenas propriedades agrícolas e o poderio militar se constituía acima do Estado centralizado e distante; as relações sociais locais apontavam, num horizonte menos distante, à servidão feudal. Já existiam relações que se assemelhavam ao tributo feudal durante o auge do Império Romano, que se dedicava cada vez mais à conquista como principal atividade. Os produtores agrícolas explorados pelos estados em decadência e arrasados pelas constantes guerras submetiam-se à força de chefes locais principalmente em busca de proteção e pagavam por isso em espécie. Os chefes militares que conseguiram unir sob seu jugo extensões de terra e consequentemente os produtores que nelas residiam e produziam, foram os precursores da eventual nobreza feudal. As propriedades foram roubadas do povo e concentradas; ainda que consideráveis extensões permaneciam comuns para a caça e busca de objetos de trabalho não oferecidos pela agricultura; a relação comunal de propriedade desaparece, mas não por completo. Além dos altos comandos militares, essa nova nobreza incluía cidadãos e antigos escravos, servos e libertos, de acordo com as especificidades locais e as preferências do conquistador. No caso do império romano, eventualmente, toda essa nova estrutura econômica e produtiva foi abençoada pela religião do império que ela mesma destruiu: a igreja católica se converteu em

um dos principais poderes do regime feudal, tanto subjetivamente, constituindo o paradigma para toda a superestrutura social; como objetivamente, convertendo-se em um dos maiores proprietários de terra de toda Europa.