• Nenhum resultado encontrado

Caracazo: o fim e o começo

A partir de 1974, o adeco Carlos Andrés Pérez (CAP) assume a presidência do país, em um período no qual o país foi apelidado popularmente como “Venezuela Saudita”. Com a batalha do Yom Kipur em 1973, o preço do petróleo sobe de US$2 para US$14 dólares por barril e o país mantém um crescimento médio de 8% ao ano devido à entrada dos 'petrodólares' estadunidenses que o embargo árabe rechaçava. Mesmo nestas condições, CAP deixa a presidência do país em 1979 com uma dívida externa duas vezes maior que no início de seu mandato. No começo dos anos 1980, durante o governo da democracia-cristã (COPEI), o preço internacional do petróleo volta a cair, a dívida externa pesa ainda mais sobre a economia nacional e a desvalorização do Bolívar é inevitável para a política econômica, conjugando o episódio de 1983 denominado Viernes Negro (sexta-feira negra), prelúdio do que estaria por vir em 1989. Iradia Sulbarán assim o sintetiza:

A crise à espreita desde a década de 70 se intensificava. A recessão econômica conjugada ao clientelismo partidário, a corrupção e a crescente incapacidade do estado de proporcionar uma adequada base de serviços sociais (educação, saúde, segurança social), constituíam sinais de que a crise não só era econômica, mas também social. (SUlBARÁN, 2011, p.60)

O presidente do turno AD, Jaime Lusinchi, assume o país em um momento de grave crise econômica e sua gestão se caracteriza pelos planos de renegociação da dívida, decretada em 1986 pelo próprio presidente como “o melhor refinanciamento do mundo” (apud MEMORIAS, 2009, p.50), que teve certa eficiência apenas até a queda no preço do petróleo, que submeteu a economia nacional a uma situação insustentável. Ao final de seu mandato em 1989, as reservas internacionais estariam esgotadas, a inflação geral em 52,1% – especificamente no setor de alimentos e bebida alcançou 102,9% em 1989 – e o índice oficial de desemprego estava em 9,6% (op. cit., p.56). A nova instituição criada para o controle de diferentes taxas preferenciais de câmbio viria a ser cenário de diversos escândalos de corrupção nos próximos anos; a escassez de produtos básicos, gerada pelo comportamento especulativo dos setores de distribuição, acompanhada pelo baixo poder aquisitivo do salário mínimo desvalorizado, suficiente para comprar em janeiro de 1989 2Kg de tomate no mercado informal (ÚLTIMAS NOTICIAS apud MEMORIAS, 2009, p.60), contribuíam com o sentimento de desespero da população.

As eleições de 1988 rompem com a alternância puntofijista e o adeco Carlos Andrés Pérez é eleito sobre a lembrança de crescimento econômico que caracterizou sua primeira presidência, refletindo a esperança popular de melhores dias em um momento de “esgotamento político com o bipartidismo tradicional e com as velhas figuras políticas” (SULBARÁN, p.70). CAP chega a um país desolado socialmente, politicamente degenerado e economicamente destruído: 83% da população vive sem infraestrutura básica e 70% está em condições de subalimentação (CÉLULA, 2009, 00:13:00). A situação econômica que Lusinchi deixou no país não poderia mais ser encoberta por discurso político e no primeiro mês de seu mandato, CAP implementa no país o famigerado pacotazo neoliberal, conjunto de medidas econômicas ditadas pelo FMI que todos nós latino-americanos tivemos o desprazer de conhecer. Na Venezuela, as medidas incluíam acabar com a regulação de preços sobre produtos da cesta básica, liberar as taxas de juros, aumentar o custo dos serviços públicos como água e luz, aumentar o preço do transporte em 30%, a gasolina em 100% e aumentar o salário da administração pública. Porém, em resposta a este pacotazo sucede algo novo, a população caraquenha saiu em massa a protestar de maneira violenta, destruindo e saqueando, comportamento que foi imediatamente reprimido pelas forças armadas. As imagens da época demonstram claramente o caráter de classe e as motivações de quem estava na rua: “Sempre as medidas econômicas afetam o povo, nunca afetam a parte aristocrática!” (CÉLULA, 2009, 00:06:10).

Se uma contradição não se resolve, ela se acirra. Uma classe não pode exterminar a outra sem seu extermínio mútuo, depende dela: não há capital sem trabalho. As manchetes de dois principais jornais em dias subsequentes citam estimativas oficiais que situam o número de mortos em 400 durante os quatro dias que duraram os protestos (MEMORIAS, 2009, p.63) e em 800 nos seis dias de repressão militar (op. cit., p.60); antes disso, segundo os expedientes da contrainteligência militar apurados pela Comissão pela justiça e verdade da Venezuela, a IV República deixou 1292 vítimas de violência – tortura, prisão, assassinato, desaparição forçada, abuso de poder – em 40 anos de governo (PRENSA CJV, 2015): não puderam, nem assim, acabar com seu antagonista. Da morte, surge a vida; esse genocídio deixou, contraditoriamente, plantada uma semente no povo bolivariano e o rechaço ao neoliberalismo constituiu-se em força política. O Caracazo é o ponto de chegada e fim de um ciclo, mas é também início de um processo; é o salto qualitativo resultado de um acúmulo quantitativo. Não era a primeira vez que o transporte aumentava de preço, nem que o bolívar se desvalorizava; pelo contrário, foram muitos episódios como estes que constituíram a política neoliberal da IV República. O acúmulo de insatisfação que conjuga um novo processo político-social responde a medidas econômicas desenhadas a favor do capital financeiro e especulativo em detrimento da população do país; dois exemplos que precederam o Caracazo ajudam a ilustrar a tensão política que caracterizava a época (MEMORIAS, 2009, p.51-3):

1. Em março de 1987, um poderoso advogado da cidade de Mérida, noroeste do país, disparou contra um estudante de engenharia da Universidad de los Andes que, durante festas de rua, urinou na porta de sua casa; um grupo de estudantes reagiu incendiando a mansão, cujo proprietário foi salvo pela polícia local. Uma vez que foi anunciada a morte do jovem engenheiro, a cidade estudantil entrou em convulsão: barricadas foram armadas em vários pontos da cidade, ônibus destruídos, edifícios foram apedrejados e queimados, entre eles a sede da AD, e seguiram-se ataques e roubos a diversos pontos comerciais. O governo de Lusinchi, que deteve 500 pessoas nos três dias de protesto, alegou que os acontecimentos foram promovidos por grupos de extrema esquerda que tentavam gerar instabilidade.

2. No estado Apure, fronteira com a Colômbia, em outubro de 1988 foram assassinados 14 pescadores que o governo identificou como guerrilheiros colombianos. Em poucos dias, dois sobreviventes contaram sua versão da história,

desmentindo a versão oficial e oferecendo detalhes do massacre perpetrado pelas forças especiais de contrainsurgência, evidência da violência e manipulação midiática com a qual se movia o governo. Este, se negou a investigar os fatos, gerando uma comoção nacional contra a tergiversação de um acontecimento extremamente grave.

A partir de 1989, a “Venezuela se transformou em uma sociedade de protesto e rebeldia, onde os eventos de protesto social se duplicaram em relação aos que ocorreram entre os anos de 1958 e 1970” (MANTEROLA e CÓRDOVA, pp.119-120); o país estava, portanto, em convulsão. A situação se intensificou com as duas tentativas de golpe de Estado em 1992, que polarizam ainda mais a situação política do país. No episódio de 04 de fevereiro, cujo fracasso o converte em um ato simbólico de significado histórico, surge um grupo de militares cujo líder fez duas coisas que corresponderam aos anseios do povo venezuelano: 1) Entra com um tanque ao Palácio de Miraflores, sede do governo central, arriscando a vida para enfrentar os políticos que o povo identificava como seus inimigos; 2) Assumiu toda responsabilidade pelo que aconteceu, o que nenhum político venezuelano tinha feito até então. O jovem Chávez personifica assim a esperança de mudança e, no mesmo ano, começaram as mobilizações políticas em apoio ao Movimento Bolivariano Revolucionário 200 (MBR-200), movimento cívico-militar que organizou a conspiração. A própria institucionalidade da IV República não pode sustentar a situação de ingovernabilidade vigente e em 1993 o Congresso destitui CAP do poder por malversação comprovada de fundos.

A década de 1990 não trouxe mudanças significativas para a classe trabalhadora venezuelana, apenas a continuidade do projeto neoliberal sobre a economia do país. Vale destacar duas medidas específicas que foram tomadas pelos governos de turno que representaram um retrocesso ainda maior nas condições de vida dos trabalhadores: as alterações à Lei do Trabalho e a chamada Abertura Petroleira. A primeira, as alterações à Lei do Trabalho em 1991 e 1997; o primeiro caso foi um esforço de reunir diversas leis e marcos regulatórios em um único texto e implicou a ênfase sobre o contrato individual e a disputa individual do trabalhador com o patrão, restringindo os mecanismos de contrato e negociação coletivos; e incluiu novas definições de remuneração do trabalho para reduzir o salário nominal do trabalhador na hora de calcular as prestações sociais, ou seja, ao integrar à base da remuneração do trabalhador outros benefícios trabalhistas - bônus noturno, hora extra, férias remuneradas, etc; - a base para cálculo das prestações sociais foi reduzida a 16,5% do salário real (BERNARDONI DE GOVEA, 2011). A segunda lei do trabalho de 1997 elimina a

retroatividade do cálculo de prestações sociais no pago de antiguidade e liquida o Instituto Venezuelano de Seguridade Social. (DA COSTA, 2013, p.2). Já a abertura petroleira, em resumo:

Sob o argumento verdadeiro da necessidade de se recuperar níveis satisfatórios de reservas provadas, muito minguadas no momento da nacionalização, permitiu-se que a PDVSA não pagasse dividendos a seu único acionista (o Estado) por anos. Apenas a aguda crise econômica de 1994, causada pela mais severa crise financeira do país em toda sua história, forçou o governo de então a exigir pela primeira vez o pagamento desses dividendos. Diversos mecanismos criados e aperfeiçoados durante o período concessionário para garantir uma adequada participação do fisco nos rendimentos do negócio petroleiro foram sendo desmontados. Os royalties, por exemplo, estabelecidos em no mínimo um sexto pela Lei de 1943, passou a ser um máximo e em algumas associações da Abertura chegaram a fixá-lo em 1%. Os Valores Fiscais de Exportação, que serviam como instrumento de tributação indireta em momentos de ganhos excessivos devido aos elevados preços do petróleo no mercado internacional, foram, por pressão da corporação, eliminados. Uma grande quantidade de investimentos no exterior, com pouquíssimo controle por parte do Executivo e com dividendos inexistentes, elevaram os custos demasiadamente, reduzindo desta maneira a arrecadação tributária. Tudo isso resultou em uma significativa queda da participação estatal no negócio petroleiro venezuelano. (PDVSA, 2005a, tradução nossa).

Depois de sair da cadeia em 1994, Chávez se dedica a construir uma articulação política para as eleições presidenciais de 1998, reunindo diversos partido de esquerda e um novo partido, o Movimento V República (MVR), no Pólo Patriótico, que resultou eleito com 56,20% dos votos válidos; o candidato proposto pela coalizão que incluía AD e COPEI, Henrique Salas Romer, ficou em segundo lugar com 39,97%. Segundo dados do Conselho Nacional Eleitoral, a abstenção foi de 36,55% e os votos nulos totalizaram 5,55% (CNEa, p.1). Começa em 1999 a chamada Revolução Bolivariana.