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As categorias para entender o trabalho no tempo

Através do trabalho, o ser humano, que é parte da natureza, levanta-se contra as adversidades desta para submetê-la à sua vontade, transformando seus frutos em objetos úteis para satisfação de necessidades especificamente humanas; em uma palavra, produz valores de uso. A sociedade, o ser social, mobiliza assim as forças produtivas, “os elementos componentes do processo de trabalho” que, segundo Marx, são “1) a atividade adequada a um fim, isto é, o próprio trabalho; 2) a matéria a que se aplica o trabalho, o objeto de trabalho; 3) os meios de trabalho, o instrumental de trabalho.” (1988, L. 1, v. 1, p.318). A atividade do sujeito, o trabalho vivo, é o movimento dinâmico que imprime ao objeto de trabalho, estático e sem vida, sua forma útil, utilizando-se dos instrumentos de trabalho para tal fim.

O objeto de trabalho primordial e universal com o qual se depara o homem, principalmente em seu estado mais primitivo, são os frutos que espontaneamente encontra em seu ambiente natural e dos quais se apropria para consumo imediato, como plantas silvestres, a água da chuva, os minérios da terra, o peixe e a caça, etc. Esses objetos de trabalho são muitas vezes extraídos da natureza em seu estado cru ou silvestre e transformados através do trabalho para que sejam usados na produção, como fios de algodão, tábuas de madeira, água

fervendo, pepitas de ouro, etc, convertendo-se assim em matéria-prima. Toda matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem todo objeto de trabalho é matéria-prima, que por definição é, por um lado, produto de um processo de trabalho e, por outro, também objeto de trabalho em outro processo produtivo; em outras palavras, produto do trabalho pretérito consumido pela sociedade produtivamente e não para satisfação de necessidades individuais. Na produção dentro do capitalismo, o setor industrial extrativista é o único cujo objeto de trabalho não é matéria-prima, todos os outros dependem, em última instância, do produto deste setor para levar a cabo seu trabalho, inclusive a agricultura que já não depende da terra virgem, mas a prepara como matéria-prima antes do cultivo.

O instrumento de trabalho é uma coisa ou um grupo de coisas das quais se apropria o trabalhador para transformar o objeto de trabalho, desde pedras para lançar contra um animal ou moer uma planta no mundo primitivo, ao atual computador pessoal. Porém, “O objeto do qual o trabalhador se apodera diretamente — abstraindo a coleta de meios prontos de subsistência, frutas, por exemplo, em que somente seus próprios órgãos corporais servem de meios de trabalho — não é objeto de trabalho, mas o meio de trabalho.” (MARX, 1988, L. 1, v. 1, p.299). Ele se apropria das características naturais de certos elementos para alterar a natureza de outros elementos segundo sua vontade, por exemplo, dominar o fogo para cozinhar a caça. São também considerados instrumentos de trabalho aqueles objetos ou estruturas que servem ao processo de produção indiretamente, como os edifícios que permitem o exercício do trabalho; as vias sobre as quais são transportados objetos, sujeitos e produtos do trabalho; os condutores de eletricidade, etc.; em resumo, toda a infraestrutura produtiva.

Essa apropriação da natureza por parte do trabalhador se dá historicamente de maneira sistemática e cumulativa; assim, cada nova geração e cada época histórica se apoia no acúmulo técnico e social que a precede, o vê como base “natural” de sua existência, para avançar na satisfação de suas necessidades. Da perspectiva marxista, “Observando-se todo o processo do ponto de vista de trabalho do resultado, do produto, evidencia-se que meio e objeto de trabalho são meios de produção e o trabalho é trabalho produtivo” (MARX, 1988, L. 1, v. 1, p.300).

O grau de desenvolvimento da sociedade, ou o quanto se desenvolveu essa relação mediada do homem com a natureza e dos homens entre si – as chamadas relações sociais de produção – se reflete no nível de desenvolvimento e complexidade dos objetos e instrumentos de trabalho em diferentes momentos da história – nos chamados meios de produção. As condições de trabalho são o resultado histórico, que observamos na realidade, desta relação

dialética entre o desenvolvimento das forças produtivas – que incluem os meios de produção e a própria força de trabalho – e as relações de produção. O instrumental de trabalho guarda a informação sobre o que e, principalmente, como os homens historicamente geravam os produtos para satisfazer suas necessidades em cada época: sua comida, vestimenta, moradia, arte, etc.; ou seja, são provas históricas de como o homem produz sua sociedade e cultura em geral.

O trabalho em si, como atividade metabólica do homem com a natureza, foi considerado pelo filósofo marxista György Lukács uma categoria ontológica do ser social (2010, passim), como explica Ronaldo Vielmi Fortes, “[...] O ponto de partida decisivo da ontologia do ser social encontra-se na definição da especificidade humana como uma nova forma do ser surgida mediante o complexo do trabalho, que Lukács define como pôr teleológico” (apud LUKÁCS, 2010, p.44). Segundo Foladori, que como Lukács se apoia em Marx, o que nos diferencia dos outros animais que transformam a natureza segundo suas necessidades é justamente o fato de não apenas produzir instrumentos que transformam a natureza, mas produzir meios de produção para transformá-la no tempo. O trabalho humano se apoia na experiência social anterior e a projeta para um futuro diferente,

[…] estabelecendo uma mediação progressiva através do tempo. Diferente dos demais seres vivos, que utilizam os instrumentos de maneira imediata face à necessidade, o ser humano produz instrumentos que, por sua vez, produzem outros instrumentos. Esta característica de produzir meios de produção tem implicações substanciais na forma de conceber o meio e de relacionar-se entre si. Quanto à consciência, porque a fabricação de meios de produção é um ato que utiliza instrumentos do passado, no presente, para um uso futuro. A tridimensionalidade do tempo está presente e, com ela, a atividade teleológica (ação em previsão de um futuro). (FOLADORI, 2012, p. 12, tradução nossa).

Em suas próprias palavras, Lukács explica o trabalho como:

[…] um pôr teleológico conscientemente realizado, que, quando parte dos fatos corretamente reconhecidos no sentido prático e os avalia corretamente, é capaz de trazer à vida processos causais […] do ser que normalmente só funcionam espontaneamente e transformar entes em objetividades que sequer existiam antes do trabalho. (2010, pp.43-44)

e enfatiza que “[…] o devir do homem, a adaptação ativa (conforme o trabalho) ao ambiente oculta em si uma tendência à autossuperação além da determinidade biológica, um destacar-se sucessivo, ainda que nunca inteiramente completável.” (LUCKAKS, 2010, p.231) Eis o segredo por trás das pirâmides do Egito, das rochas de Stonehenge, da viagem do homem ao espaço e do alcance das redes sociais: trabalho coletivo, acumulado historicamente e organizado para um fim premeditado.