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Parte I – Alguns comentários iniciais sobre a ordem do Imperialismo Capitalista

Capítulo 3. A hipótese do “sumiço” e “retorno”

3.1 A “imposição” do tema

3.1.1 A Estratégia de Segurança Nacional de

No dia 17 de setembro de 2002, o então presidente dos Estados Unidos da América, George Walker Bush (Bush II) – que enfrentara uma eleição manchada por polêmicas e fraudes; resolvida, por fim, num imbróglio jurídico de legitimidade muito contestada216 – cumprindo obrigações legais para com a sociedade que o elegeu – enviou para o Capitólio217 um documento que teria por destino estabelecer um dos (possíveis)

216A eleição de Bush II foi marcada por uma porção de fraudes e outros trambiques. Por fim, foi homologada na Suprema Corte dos Estados Unidos, por critérios confusos até mesmo para quem conhece a fundo o intrincado sistema de “colégios eleitorais” que o fundamenta – tão confuso que até hoje se contesta a legitimidade desta eleição. Mesmo assim, a despeito de ter obtido menos votos absolutos que seu adversário Al Gore, e de uma grotesca fraude no estado governado por seu próprio irmão (Jeb Bush), George foi eleito presidente em 12 de dezembro de 2000 e nomeado em 20 de janeiro de 2001. Essa decisão jurídica, contudo, não serviu para eliminar os protestos em favor da candidatura democrata, que só foram atenuados com os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, em onze de setembro de 2001. Para mais informações, amplamente disponíveis na internet, sugerimos, a título de exemplo,

http://en.wikipedia.org/wiki/Bush_v._Gore e

http://operamundi.uol.com.br/conteudo/historia/32916/hoje+na+historia+2000+-

+suprema+corte+dos+eua+confirma+bush+como+presidente.shtml ambos acessados em 25 de janeiro de 2015.

217http://pt.wikipedia.org/wiki/Capit%C3%B3lio_dos_Estados_Unidos acessado em 25 de janeiro de 2015.

marcos do século que se enunciava: a Estratégia de Segurança Nacional218. Começava – como de costume em documentos dessa natureza – por um balanço geral, no qual afirmava que

As grandes lutas do século 20 entre liberdade e totalitarismo terminaram com uma vitória decisiva das forças da liberdade – e um

único modelo sustentável para o sucesso nacional: liberdade,

democracia e livre iniciativa. No século 21, somente nações que compartilhem um comprometimento para proteger direitos humanos básicos e garantindo liberdade política e econômica serão capazes de libertar o potencial de seu povo e garantir sua prosperidade futura. (grifos nossos)

Não obstante a declarada oposição entre “liberdade” e “totalitarismo”, e a suposta defesa da “liberdade” por parte dos estadunidenses [quem, afinal, em nossos dias, poderia tecer um discurso abertamente contra a liberdade?] o que dá o tom do texto é a idéia – totalitária por si mesma – de que havia [e há] somente um caminho a seguir.

Sem dúvida, essa – insistimos: totalitária – idéia de que só existe um caminho foi favorecida pela extensiva lavagem cerebral que dominou a década que a precedeu: a inevitabilidade da “Globalização e da Nova Ordem Mundial” 219, que naquela época acabou por mitigar o tom totalitário da mensagem.

218É interessante que notemos que embora cada presidente estadunidense seja obrigado a pronunciar uma “Estratégia de Segurança Nacional”, posicionando-se ante as estratégias de longo prazo [Estado] e “imprimindo a sua marca” nas políticas do país [governo] nenhuma das anteriores – possivelmente a de Reagan – assumiu o destaque da de Bush – o que sem dúvida reflete um tanto da espetacularização dos atentados que a precederam, mas não pode ser reduzido a ela. A hoje Professora do Departamento de Direito Público da Universidade de São Paulo, Juliana de Oliveira Domingues, em O imperialismo: do século

XIX ao século XXI nos informa que "Quem, primeiramente, divulgou a expressão Doutrina Bush foram as

próprias autoridades do governo Bush, diferentemente da Doutrina Monroe, de 1873, que foi assim definida pelos historiadores, os quais, no passado, eram os responsáveis por definir quais as idéias que deveriam ser chamadas de doutrinas. Especificamente, foi a assessora de segurança da Casa Branca, Condoleeza Rice, que primeiro a mencionou durante entrevista aos jornalistas, em novembro de 2001.” (página 123). disponível em

http://lob-svmfa.com.br/arquivos/site/publicacoes/files/artigos/38_O%20imperialismo%20- %20do%20seculo%20XIX%20ao%20seculo%20XXI%20%28JOD%29.pdf

O texto original dessa estratégia, na íntegra de 35 laudas, está disponível em http://nssarchive.us/?page_id=32, acessada em 20 de janeiro de 2014 às 19:38h. Para uma necessária comparação com as demais estratégias, de outros presidentes como Bill Clinton, Barack Obama, Ronald Reagan e o próprio George H.W. Bush (Bush I), acessar http://nssarchive.us. Aqui, para facilitar que mantenhamos nossa “política” de escrever no “corpo do texto” somente na língua portuguesa, citaremos a tradução (um tanto truncada) que Marcelo Vaz publicou no sítio da Folha de São Paulo em 29 de outubro de 2002: Leia a introdução da 'Estratégia de Segurança Nacional dos EUA', Folha de S.Paulo, publicada em 29/10/2002 – 02h50. George W. Bush, Washington, 17 de setembro de 2002.

219Que costumam, sob nosso ponto de vista de modo equivocado, ser tratadas como idênticas ao pensamento “neoliberal”.

Assim, a liberdade (sic) repetitivamente220 contrasta com o totalitarismo (sic) em um texto inerentemente totalitário que explicita a importância da imposição da

liberdade221.

Na sequência, Bush afirma que

pessoas em todos os lugares querem ser capazes de falar livremente; escolher quem as vai governar; cultuar conforme seu desejo; educar suas crianças – dos sexos masculino e feminino; possuir propriedade; e aproveitar os benefícios de seu trabalho. Esses valores de liberdade são direitos e verdadeiros para todas as pessoas, em todas as sociedades – e a tarefa de proteger esses valores contra seus inimigos é a exigência básica de pessoas, em todo o globo e de todas as idades, que apreciam a liberdade. (grifos nossos) 222

Mas para deixar claro de que se tratava afinal, de uma peculiar “Estratégia de Segurança Nacional”, Bush II precisava dizer logo a que vinha. Fazia-se mister enfatizar o fim de uma era e a inauguração de novos tempos – e de uma nova situação, em que aquela propalada liberdade traria, como muitos outros produtos, o selo made in USA. Nas palavras de nossa ilustre personagem:

hoje, os Estados Unidos aproveitam uma posição de poderio militar sem

paralelos e grande influência política e econômica. (…) Nós defenderemos a paz lutando contra terroristas e tiranos. Nós preservaremos a paz construindo boas relações entre as grandes potências. Nós estenderemos a paz encorajando sociedades livres e abertas em todos os continentes. (grifo nosso)

Bush decretava, portanto – mais uma vez – o fim da Guerra tida como Fria. O imperativo do momento – respondendo (sic) aos atentados de 2001 – passava a ser reafirmar a ordem – sempre ela – em todo o tempo, todos os lugares e de qualquer maneira. Agora, além da fronteira geográfica, se abolia do horizonte de cálculo da potência a “fronteira temporal”, dando forma àquela que se tornaria conhecida como a “Guerra (preventiva [prehemptive]) ao Terror”:

A guerra contra terroristas de alcance global é uma iniciativa global de

duração incerta. (...) E, como um problema de senso comum e

autodefesa, a América vai agir contra as ameaças desses inimigos antes

220Confrontar com A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica de Walter Benjamin, cuja

primeira versão está disponível em

http://www.mariosantiago.net/Textos%20em%20PDF/A%20obra%20de%20arte%20na%20era%20da %20sua%20reprodutibilidade%20t%C3%A9cnica.pdf.

221Qualquer semelhança com a novilíngua não é mera coincidência.

cf: http://pt.wikipedia.org/wiki/Novil%C3%ADngua, acessado em 25 de janeiro de 2015.

222Evidentemente não há espaço para contestação da própria existência de governos, do sexismo, da propriedade e do trabalho, bem como não há espaço para se discutir os conteúdos da educação e dos cultos. Do contrário, tudo isso é assumido enquanto “valores de liberdade” e, portanto, como verdades rigorosamente incontestáveis, para todas as pessoas de todas as partes do mundo.

que elas estejam totalmente formadas. Nós não podemos defender a

América e nossos amigos somente esperando pelo melhor. (grifos nossos).

Neste “novo mundo”, não há espaço para hesitação, por que

a história julgará cruelmente aqueles que viram esse perigo, mas não agiram. No novo mundo em que entramos, o único caminho para paz e segurança é o caminho de ação. Enquanto defendemos a paz, nós também tiraremos proveito de uma oportunidade histórica para preservar a paz. Hoje, a comunidade internacional tem sua melhor chance desde a ascensão do Estado-nação no século 17 para construir um mundo em que grandes poderes compitam em paz em vez de continuamente se preparar para a guerra. (grifos nossos)

Aqui temos mais um ponto de extrema importância. Anotemos: segundo Bush II,

agora vivenciamos um novo mundo. Um mundo que não se pauta mais pelas jurisdições

nacionais, que vigoravam desde o longínquo século XVII. Agora, a crença no “Estado- nação” – e na soberania, seu paradigma-sistêmico-chave desde o século XVII – deveria – atendendo às exigências de todas (sic) as pessoas do mundo – ser substituída pela crença na “globalidade”, porque “(...) os Estados Unidos usarão esse momento de oportunidade para estender os benefícios de liberdade por todo o globo” 223. Mas como se a liberdade fosse uma categoria vazia – e como Bush não é homem de meias-palavras – é preciso explicitar os pormenores do plano [scheme]: “Nós lutaremos ativamente para trazer a esperança de democracia, desenvolvimento mercados livres e livre comércio para todos os cantos do mundo” (grifos nossos). [Vamos repetir: Democracia, Desenvolvimento, Mercados Livres e Livre Comércio – conteúdos agora defendidos até as últimas consequências pelos “neoconservadores”, mas valores “neoliberais” por definição], porque “livre comércio e livre mercados provaram sua habilidade de tirar sociedades da pobreza”; e

por isso os Estados Unidos trabalharão tanto com nações individualmente, regiões inteiras e toda a comunidade global de comércio para construir um mundo que negocia com liberdade e,

portanto, cresce em prosperidade (grifos nossos).

Qualquer especulação filosófica sobre a liberdade é mera perda de tempo: liberdade é liberdade de fazer negócios. Em bom português, liberty is business224. Na novilíngua missionária bushiana:

a liberdade é uma exigência não-negociável da dignidade humana. O

direito inato de todas as pessoas – em todas as civilizações. Ao longo da

história, a liberdade foi ameaçada pela guerra e pelo terror; ela foi ameaçada pelos desejos conflitantes de Estados poderosos e ordens perniciosas de tiranos; e ela foi testada por amplas pobreza e doença. Hoje, a humanidade tem em suas mãos a oportunidade para ampliar o triunfo da liberdade sobre esses opositores. Os Estados Unidos dão as boas-vindas à nossa responsabilidade de liderar essa grande missão (grifos nossos).

Não iremos aqui mais uma vez reiterar a importância da comoção “universal” que sucedeu os atentados sobre os prédios no ano anterior – e não é coincidência que esse malfadado pronunciamento tenha sido proferido no primeiro aniversário daquele acontecimento. Mas antes de mirarmos o campo de ressonância desse discurso, cumpre que anotemos que ele pode ser sintetizado nos seguintes pontos:

a Estratégia de Segurança Nacional de Bush, além de ser uma exigência legal que recai sobre todo e qualquer presidente daquele país, é um documento oportunista, no sentido literal do termo, conforme fica claro quando reivindica o “senso de oportunidade” do governo estadunidense, que procura reforçar, por outro lado, a inevitabilidade dessa nova forma de ação;

apesar das noções vagas de liberdade, é um tratado em defesa da importância dos negócios na promoção da paz – cuja forma principal, ao menos no discurso, é o “livre-comércio”;

 não há qualquer oposição entre “livre comércio” (comumente tomado como pilar de sustentação da ideologia neoliberal; e se coloca no campo semântico do “Estado Mínimo”) e “segurança” (usualmente considerado

224Não acrescentaremos o famigerado e quase irresistível “stupid” imortalizado em forma de slogan por James Carville na bem-sucedida campanha de Clinton contra Bush I (http://pt.wikipedia.org/wiki/It's_the_economy,_stupid, acessada em 25 de janeiro de 2015). Essa coisa de tratar interlocutorxs por idiotas é uma postura deveras totalitária. E, conforme já dissemos antes: é necessário que lutemos incansavelmente contra o fascista que reside em nós.

parte da ideologia “neoconservadora” e do campo semântico do “Estado Máximo”);

apesar da repetição da palavra liberdade, todos os Estados e – muito mais do que isso – todas as pessoas de todo o mundo têm somente um caminho a

seguir, e este caminho será inequivocamente imposto pelos Estados Unidos da América225 ;

 por ser escrito quase que em sua totalidade em tom imperativo, não se pode com certeza afirmar se é uma promessa, uma necessidade, uma ameaça, ou uma propaganda.

Aquela referida comoção conferiu, pelo menos no plano simbólico, e pelo

menos inicialmente a desejada legitimidade [interna e internacional] às

ações do Estado dos Estados Unidos – pelo menos no caso do Afeganistão226.

É sobre essa legitimidade que falaremos na sequência, procurando investigar as motivações que faziam com que essa ordem tenha sido aplaudida pelos “cidadãos de bem” – sempre eles227.