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Parte I – Alguns comentários iniciais sobre a ordem do Imperialismo Capitalista

Capítulo 1. Sobre a ordem e o Imperialismo Capitalista

1.1 Sobre a ordem em geral

Assume-se como verdade – corroborada – entre muitos outros – por um iconoclasta filósofo europeu – que “os homens” são dotados, quase que por coisas da sua própria natureza, de certo instinto de obediência que, traduzido para a sociedade, determina que todos os agrupamentos humanos organizados obedecem – porque

precisam obedecer – a princípios hierárquicos mais ou menos rígidos em que o poder se

se é verdade que em todas as épocas, desde que os homens existem, houve também grupos humanos (associações sexuais, comunidades, tribos, nações, igrejas, estados) e sempre um grande número de homens obedecendo a um pequeno número de chefes; se, consequentemente, a obediência é aquilo que foi por mais tempo melhor exercido e cultivado entre os homens, temos o direito de presumir que em regra geral cada um de nós possui em si mesmo a necessidade inata de obedecer, como uma espécie de consciência formal que ordena: 'Farás isso sem discutir; privar-te-ás daquilo sem reclamar; em suma, é um 'tu farás'3.

É enorme o poder de sedução dessa verdade – que se assenta na percepção sobre o mundo em que vivemos e a “natural” extensão do que estamos vendo para a “eternidade” – o que não poderia ser operado senão a partir de um egocentrismo latente. Mas, olhando mais de perto, é igualmente impressionante o efeito que ela produz no que toca ao encobrimento da História, inteiramente cicatrizada por atos de rebeldias, rebeliões, insurreições e vandalismos, dificilmente explicáveis sob essa lei geral.

Parece-nos, contudo, que essa verdade sobrevive, a despeito de incontáveis e contundentes refutações. Somente a título de exemplo, ficaremos com outro europeu iconoclasta, já este um antropólogo. Pierre Clastres. Encarnando o espírito dessa ciência moderna condenada a empreender a “revolução copernicana” contra o etnocentrismo4 que ela mesma outrora alimentou – Clastres refutou essa verdade com classe e fundamento empírico (!) “(em conformidade com os dados da Etnografia)” 5. Como fruto

de uma embasada reflexão comparativa, afirma

3Nietzsche, Frederich, citado por Pierre Clastres em Copérnico e os selvagens [1969], artigo que abre os trabalhos do fundamental A sociedade contra o Estado, pág. 7. (grifos do autor)

4P. 19.

5As seguintes citações de Clastres são do referido livro A sociedade contra o Estado, dos quais citamos aqui o primeiro (Copérnico e os selvagens, de 1969) e o último artigos (também chamado de A sociedade contra

o Estado, de 1972). Todas as críticas que devem ser mantidas, mantidas; a Antropologia continua nos

ensinando que nem tudo somos “nós” e que, muitas vezes, a despeito de “nossa” limitada maneira de ver o mundo, o impossível continua sendo tão possível quanto sempre o fora. Por outro lado, também cumpre que ressaltemos o fato de que, segundo Bento Prado Junior – amigo do autor, com quem chegou a passar compartilhar das férias em mais de uma ocasião – diferentemente de muitos de seus pares, Clastres nunca rejeitou a filosofia, de onde partiu e da qual esteve sempre hereticamente próximo. Para uma apreciação dessa discussão, sugerimos a apresentação de Bento para o Arqueologia da Violência – pesquisas de

que o poder político é universal, imanente ao social (quer o social seja determinado pelos ´laços de sangue' ou pelas classes sociais), mas que ele se realiza de dois modos principais: poder coercitivo e poder não- coercitivo. [E, portanto] O poder político como coerção (ou como relação de comando-obediência) não é o modelo do poder verdadeiro, mas simplesmente um caso particular, uma realização concreta do poder político em certas culturas, tal como a ocidental (mas ela não é a única, naturalmente).6

Desta maneira, ainda seguindo suas palavras, “não existe (…) nenhuma razão científica para privilegiar essa modalidade de poder a fim de fazer dela o ponto de referência e o princípio de explicação de outras modalidades diferentes” 7. Assim, ao contrário daquele citado filósofo – e de todo o senso comum [inclusive o acadêmico] – que busca na obediência uma espécie de generalização da “natureza do homem” e procura demonstrar que seria, portanto também natural o nosso estatuto de obediência contemporâneo, nosso amigo antropólogo, procurando olhá-las a partir de outras perspectivas, observa que aquelas sociedades “primitivas”, ao contrário do que se supunha, são caracterizadas não pela ausência de mecanismos de poder, mas na forte e organizada recusa a essa forma do poder, que advém do trabalho e do gosto pela acumulação8, por sua vez o fundamento das sociedades divididas entre dominantes e dominados9. Noutros termos, que antecipam uma discussão que se mostrará importante nesta tese: é por recusarem à economia10 que conseguem impedir o surgimento do Estado e da propriedade privada11 e manter uma sociedade que vive da igualdade de seus participantes. Em suas próprias palavras,

6P. 17, grifos do autor. 7P. 17. 8P. 137. 9P. 138. 10P. 139, grifos do autor. 11P. 142.

nada existe, no funcionamento econômico de uma sociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da diferença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranho desejo de fazer, possuir, parecer mais que o seu vizinho. A capacidade, igual entre todos, de satisfazer as necessidades materiais e a troca de bens e serviços, que impede constantemente o acúmulo privado de bens, tornam simplesmente impossível a eclosão de um tal desejo, desejo de posse que é de fato desejo de poder. A sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa nenhum espaço para o desejo de superabundância. As sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas, o Estado é impossível12.

O que – insistimos – não significa que nessas sociedades não exista poder, ou qualquer tipo de liderança, mas que

(...) o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar uma ordem. O chefe não é um comando, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O

espaço de chefia não é o lugar do poder, e a figura (mal denominada) do

'chefe' não prefigura em nada aquela de um futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode deduzir o aparelho estatal em geral, [porque] (...) a sociedade primitiva nunca tolerará que seu chefe se transforme em déspota.13

Como curiosa ilustração, nosso amigo antropólogo reproduz as palavras de um chefe guerreiro de uma tribo abipone do Chaco argentino, o cacique Alaykin:

Os abipones, por um costume recebido de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a de seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por eles.14

O objetivo de nosso herético antropólogo parece ser o de provocar o senso comum e contrariar os consensos estabelecidos – e aos nossos olhos ele o faz com clareza e rigor. Não obstante sejam as “primitivas sociedades” empenhadas em fazer vigorar sua própria “ordem” 15, o que as caracteriza é – pela visão que acompanhamos – exatamente a solidez dos mecanismos que existem para impedir a emergência do que

hoje e aqui entendemos por Estado. O Estado, “que em sua essência é unificado” 16, é interditado naquelas sociedades exatamente pelo seu caráter totalizante, uma vez que,

12P. 143.

13P. 143, grifos no original. Qualquer semelhança entre esses líderes reais e os hipotéticos servidores públicos dos contratualistas não nos parece mera coincidência.

14P. 145. A quem notar a total inversão dos pressupostos maquiavélicos que fundam a Ciência Política Moderna, novamente notamos que não nos parece haver coincidência alguma.

15P. 147. 16P. 148.

para o sistema simbólico que ali vigora, a representação do Um é a própria representação do Mal17.

Para quem já estiver especulando o que essa reflexão está fazendo na introdução de uma tese sobre o Imperialismo, não temos razão para esconder que estamos também aqui, nos referindo à crítica ao “monopólio” [poderíamos acrescentar, tanto a sua versão “política”, quanto sua versão “econômica”], fundamental para o raciocínio que iremos acompanhar mais de perto adiante18. Teremos a ocasião de voltar a comentar sobre essa (tentativa de) monopolização do poder que tribos indígenas chamavam de “Um”. A quem quiser seguir a pista: esse será um dos eixos condutores dessa tese, embora nem sempre isso possa parecer evidente @ leitorx pouco familiarizado com nossos assuntos, com quem gostaríamos de conversar neste exercício.

Para finalizar nossa digressão introdutória, fechemos com a conclusão daqueles estudos de antropologia, que oferecem uma singela lição a todxs aquelxs que porventura ainda acreditem na inevitabilidade de que as coisas humanas tenham sido e sempre sejam conforme as conhecemos aqui e agora:

17P. 150.

18 Noutro registro, Elias defende que “a sociedade do que hoje denominamos era moderna caracteriza-se, acima do tudo no Ocidente, por certo nível de monopolização. O livre emprego de armas militares é vedado ao indivíduo e reservado a uma autoridade central, qualquer que seja seu tipo, e de igual modo a tributação da propriedade ou renda das pessoas concentra-se em suas mãos. Os meios financeiros arrecadados pela autoridade sustentam-lhe o monopólio da força militar, o que, por seu lado, mantém o monopólio da tributação. Nenhum dos dois tem, em qualquer sentido, precedência sobre o outro, pois são dois lados do mesmo monopólio. Se uma desaparece, o outro o segue automaticamente, embora o governo monopolista possa ser, às vezes, abalado mais fortemente num lado do que no outro. [...] Apenas quando surge esse monopólio permanente da autoridade central, e o aparelho especializado para administração, é que esses domínios assumem o caráter de ‘Estados’ (vol. ii, páginas 97 e 98)”; para depois acrescentar que “quando falamos em ‘livre competição’ e ‘formação de monopólio’, em geral temos em mente fatos correntes: pensamos, em primeiro lugar, na ‘competição livre’ por vantagens ‘econômicas’, da qual participam pessoas ou grupos, dentro de um dado conjunto de regras, empregando-se o poder econômico, e no curso da qual alguns aumentam gradualmente seu controle sobre as vantagens econômicas, simultaneamente destruindo, submetendo ou restringindo a existência econômica dos demais. As lutas econômicas dos nossos dias, porém, não só culminam diante de nossos olhos, numa restrição constante à competição realmente ‘livre de monopólios’ e na lenta formação de estruturas monopolistas. Conforme já indicamos, tais lutas pressupõem a existência assegurada de certos monopólios muito desenvolvidos. Sem a organização monopolista da violência física e da tributação, limitada no presente às fronteiras nacionais, a restrição dessa luta por vantagens ‘econômicas’ ao emprego do poder ‘econômico’, bem como a observância de suas regras básicas, seriam impossíveis em qualquer época, mesmo em Estados isolados. Em outras palavras, as lutas econômicas e os monopólios dos tempos modernos ocupam seu lugar dentro de um contexto histórico mais amplo. E só em relação a esse contexto mais amplo é que nossas observações genéricas sobre o mecanismo da competição e do monopólio podem assumir todo o seu significado. Só se levarmos em conta a sociogênese dessas instituições monopolistas firmemente enraizadas do “Estado’ – que durante uma fase de expansão e diferenciação em grande escala abriu a ‘esfera econômica’ à competição individual irrestrita, e assim à formação dos monopólios privados –, só então poderemos distinguir mais claramente, em meio ao grande número de fatos históricos particulares, a interação dos mecanismos sociais, a estrutura organizada da formação desses monopólios. (vol. ii; páginas 106 e 107)”.

(…) o que os selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem chefes, é a recusa da unificação, é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A história dos povos que têm uma história é, diz-se, a história da luta de classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á com ao menos tanta verdade, a história de sua luta contra o Estado.19

Pensando em nosso trabalho, julgamos que as reflexões sobre como as coisas poderiam ser se não fossem como são – ou, o que é também uma implicação dessa afirmativa – como elas podem vir a ser diferentes, já fornece, pelo negativo, algumas pistas de por quais caminhos deve percorrer nossa busca por uma sociedade mais livre e mais igualitária.

Mas, cumpre que nos indaguemos: por que, afinal de contas, continua sendo propagandeada aos quatro ventos aquela verdade segundo a qual o instinto de obediência

é natural, de modo que se faça a “todos” convencidos de que “os homens” desejam, naturalmente, a ordem?

Alguns anos atrás, em um filme comercial de grande circulação (em português,

blockbuster), um louco [“vilão” ou (“anti-”) “herói”?], cinicamente retirou o véu do

esquema terrível e injusto no qual vivemos. Esquema este que condena milhões de pessoas à miséria e à morte, para que, abaixo de tudo, as pessoas (algumas!) possam viver sob a falsa aparência da tranqüilidade e da ordem. Alguma ordem. Qualquer ordem, desde que ordem. Mesmo uma péssima ordem. Mesmo uma ordem nefasta. Mesmo uma ordem violenta20.

Muito concorre para que essa ordem seja sustentada. Um intenso pacto de solidariedade – hegemonia – faz com que mesmo gentes prejudicadas por essa ordem defendam-na com unhas e dentes, amedrontadas, sucumbindo a um esforçado e constante processo de manutenção perpétua de uma situação de submissão21. Quem pode fazer a denúncia? Os loucos. Apenas os “vilões”, tal qual nossa personagem. Nada

19P. 152

20 “Quando se diz que a política internacional busca uma ‘ordem’, deve-se perguntar ‘ordem’ para quem e com quais interesses?” (HALLIDAY, 2007, p. 80.) Na “politica interna”, o mesmo é verdadeiro.

21Sobre o processo de manutenção da submissão, sugerimos a leitura de “Resposta a pergunta: O que é o

Esclarecimento?” de Immanuel Kant. Existem muitas versões online desse precioso texto, por exemplo em

http://thomasconti.blog.br/2013/immanuel-kant-que-e-esclarecimento/, acessado em 17 de março de 2015 às 10:40h.

mais que um baderneiro louco e inconseqüente que dizia tentar subverter a “ordem” em favor do “caos” 22. Se essa classificação fizer algum sentido, esses somos “nós”.