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Parte I – Alguns comentários iniciais sobre a ordem do Imperialismo Capitalista

Capítulo 4. Considerações sobre as bases que sustentam a hipótese do “sumiço” e “retorno”

4.1 A “mudança” na política externa estadunidense sob Bush

4.1.1 Entre “neoliberais” e “neoconservadores”

Acompanhamos David Harvey mais uma vez: embora seja possível afirmar que o petróleo é uma motivação importante e que a ascensão conservadora em grande medida justifica a maneira como o discurso foi se articulando em torno do consenso, não podemos imaginar que o complexo político militar como um todo ou os interesses corporativos em geral pudessem aprovar uma guerra simplesmente por essas razões e o governo de Bush foi muito mais do que uma máfia que usurpou o poder público – o que

ficou confirmado com o fato de Obama, quaisquer que tenham sidos seus desejos e interesses, não reverteu essas políticas242.

O que nos coloca mais uma vez em nossa velha pista. Procuremos identificar, pelo seu avesso, o que o discurso cínico manifesta. Nas palavras de Stephen Peter Rosen [citado por Foster], responsável de Estudos Estratégicos do Instituto Olin na Universidade de Harvard: “O nosso objetivo [da ação militar] não é combater um rival, mas manter a nossa posição imperial bem como a ordem”. Mas de onde vem e no que implica essa busca incondicional da ordem?

Comentando sobre as circunstâncias que precederam e eleição de George Bush II, o geógrafo David Harvey, nos fornece o mapa da sociedade estadunidense conforme a via então. Sintetizando seus argumentos, temos algumas das principais linhas desse mapa. Vejamos:

1. A recessão iniciada no começo de 2001 e agravada depois de setembro, não cedia.

2. O desemprego crescia.

3. A sensação de insegurança econômica era palpável. 4. Os escândalos corporativos se sucediam em cascata.

5. Impérios empresariais aparentemente sólidos se dissolviam literalmente da noite para o dia.

6. Wall Street estava se desmoralizando por conta de erros contábeis, brechas na regulamentação e pela corrupção pura e simples.

242Cf: Harvey, p. 24. Numa visão em certo sentido contrária, mas que não incorre na ingênua afirmação de que somente a rapinagem já explicaria o processo todo, Paulo Arantes defende que “Sem querer sugerir que a Casa Branca esteja sob o domínio do crime organizado, o que pensar do fato – o mais saliente de uma constelação portentosa – de que a empresa que enriqueceu o vice-presidente dos Estados Unidos é exatamente a mesma que açambarcou contratos milionários para a reconstrução de um país ocupado, e previamente destruído pelas mesmas forças armadas do país presidido por seu superior imediato? Uma operação desse calibre atende pelo nome científico de racket, que é como se denomina a atividade profissional dos gangsteres, a saber: a dominação e apropriação diretas, sem maiores rodeios, a alma de um negócio que consiste em ameaçar com a violência e depois cobrar o devido pagamento pela 'proteção' oferecida no mesmo pacote assustador, o conjunto da obra se exprimindo na forma de monopólios e demarcação de territórios exclusivos. Segundo o historiador Charles Tilly, a formação original do Estado europeu obedeceu rigorosamente a esse mesmíssimo esquema de chantagem, num momento em que a distinção entre senhores da guerra, bandoleiros e governantes não era muito nítida, sobretudo quando esses últimos, ao cabo de sucessivas guerras de subjugação, monopolizando os meios de violência em um determinado território, se dedicavam a extorquir os tributos que financiaram as próximas campanhas militares de expansão. Endinheirados em geral e mercadores de longo curso, cujos lucros extraordinários provinham da proteção de governantes, pela qual de resto pagavam, em nada diferem das empresas ou dos grupos econômicos que cooperam e compram proteção de uma organização criminosa vitoriosa na luta pelo poder numa 'jurisdição' particular – qualquer que seja a dimensão histórica dos protagonistas, a lógica é a mesma.” (Último round, p. 188-9, em Extinção).

7. As ações e outros ativos estavam despencando.

8. Os fundos de pensão perderam entre um quarto e um terço de seu valor (quando não evaporaram de vez).

9. As perspectivas de aposentadoria da classe média sofreram um rude golpe. 10. A assistência médica estava em profunda crise.

11. Os superávits dos governos federal, estaduais e locais estavam evaporando com rapidez.

12. Os déficits começaram a aumentar sem cessar.

13. O saldo comercial das operações com o resto do mundo ia de mal a pior e os EUA se tornaram a maior nação devedora da história.

14. A desigualdade vinha aumentando há muito.

15. O fetiche do corte de impostos do governos parecia acentuar ainda mais as desigualdades.

16. As proteções ambientais estavam sendo ignoradas.

17. Havia profunda relutância em voltar a impor um arcabouço regulatório aos mercados mesmo diante de provas do fracasso destes.

18. O presidente enfrentava uma grande crise de legitimidade (50% de contestação) por conta de a sua eleição ter sido definida na Suprema Corte, não no voto direto do povo.

19. A competição era viciosa.

20. Os líderes da “nova economia” tornaram-se milionários da noite para o dia e ostentavam sua opulência.

21. Os golpes eletrônicos e esquemas fraudulentos proliferavam.

22. Escândalos (reais e imaginários) eram recebidos em toda parte com prazer. 23. Circulavam rumores de assassinatos tramados na Casa Branca.

24. Houve a tentativa de provocar o impeachment do presidente.

25. Os meios de comunicação – e os programas sensacionalistas – estavam totalmente descontrolados.

26. Houve distúrbios em Los Angeles.

27. As tragédias de Waco e Oklahoma simbolizaram uma inclinação à violência e à oposição interna que por muito tempo permanecera latente.

28. Adolescentes atiraram em colegas e os mataram em Columbine. 29. A exuberância irracional prevaleceu sobre o bom senso.

30. A corrupção corporativa do processo políticos era flagrante243.

Mais uma vez, é imperativo que lidemos com o problema da percepção sobre o Imperialismo. Parece-nos muito claro que, inclusive por basear-se muito mais na memória de Harvey do que na documentação, precisamos observar criticamente as considerações dessa seção244 [e qual fonte, afinal, não precisa?]. Mais do que isso, tendo sido escrito em 2004, o texto todo – e essa seção, pelo seu próprio caráter, mais que outras partes – deve, a rigor, ser compreendido enquanto uma visão retrospectiva “pós- traumática”, com tudo o que isso implica na reconstrução da memória. A despeito disso, é evidente que essas considerações não são ruins em si mesmas. Inclusive, nos parece extremamente importante que as levemos em consideração, sobretudo para capturar as “sensações”, uma espécie de “espírito coletivo” da sociedade estadunidense desde os antecedentes da ascensão de Bush II – que, pelo contraste do que se sucedeu no trauma, tende a idealizar – de modo pessimista ou otimista – o que o precedeu. Isso se expressa em Harvey de várias formas, como quando afirma que

na década de 1990, não havia um inimigo inequívoco, e a economia doméstica em expansão deveria ter garantido um nível sem precedentes de contentamento e satisfação para todos exceto os mais desprivilegiados e marginalizados da sociedade civil. Não obstante (…) os anos 1990 vieram a ser uma das décadas mais desagradáveis da história norte-americana. 245

Assim, considerando o contexto da transição eleitoral de Clinton (Democrata) para Bush II (Republicano) e os primeiros momentos de seu contestado governo, Harvey defende – em tom de denúncia – que “(...) a sociedade civil estava longe de civil. A sociedade como um todo parecia estar fragmentando e perdendo a coesão com alarmante rapidez”. Deste modo, “a única coisa capaz de evitar a aniquilação política dos republicanos era a intensa solidariedade – que beirava o retorno ao nacionalismo – criada ao redor dos eventos [11 de setembro de 2001] e o terror do antraz”. É evidente que a apreciação deste “problema” da manipulação nacionalista mereceria toda a atenção em qualquer lugar, mesmo porque, o autor reconhece que “há de fato uma longa história de governos com problemas internos que buscam livrar-se de suas dificuldades seja por meio de aventuras externas, seja pela fabricação de ameaças externas com

243 Voltando um pouco o assunto: é ou não é o cenário perfeito para uma empresa como a

Blackwater/Academi prosperar?

244Todas as seguintes citações, salvo eventual disposição em contrário foram tiradas de A dialética da

sociedade civil norte-americana, p. 20 e seguintes de O Novo Imperialismo.

vistas a consolidar solidariedades internas”. Mas para David Harvey, naquele contexto a gestão do problema era particularmente “delicada”, uma vez que os Estados Unidos “são uma sociedade imigrante extraordinariamente multicultural movida por um inflexível individualismo competitivo que revoluciona de modo perpétuo a vida social, econômica e política”, o que, para ele, implica que “essas forças tornam a democracia cronicamente instável246, difícil, senão impossível, de controlar exceto por meio da corrupção do poder financeiro. Há momentos em que todo o país parece insubordinado a ponto de ser ingovernável247”.

Não estamos certos da particular dificuldade da democracia estadunidense, nem tampouco porque ela seria mais “cronicamente instável” que outras, que supostamente seriam mais governáveis e subordinadas. Mas concordamos que, em sociedades

capitalistas – nunca de todo afastadas de seu caráter eminentemente plutocrático – não

é possível conceber a democracia senão “controlada” por meio da corrupção do dinheiro, de modo que, levando em consideração que “a condição interna dos Estados Unidos durante 2002 estava em muitos aspectos mais perigosa do que o fora durante anos”, não causaria espanto a assim chamada “ascensão (neo) conservadora”, porque – ainda para Harvey – “parte do atrativo eleitoral de George Bush em 2000 foi, suspeito, a promessa de fornecer um diapasão determinado e moralmente firme a uma sociedade civil perto da total perda de controle”. O que também ajudaria a explicar porque “todos os seus principais assessores vinham das fileiras de neoconservadores inclinados à ação estatal autoritária”, dando espaço para toda e qualquer teoria conspiratória que ligue a administração ao conspiracionista think-tank The Project for the New American Century, que ansiava por um “evento catastrófico catalizador” a la Pearl Harbor. Ainda neste sentido, o espetáculo de 2001 teria “caído como uma luva” às pretensões imperiais.

246Sublinhemos de passagem que o tema “Democracia contra capitalismo” é o norte de um interessante livro de Ellen M. Wood, autora que trava com Harvey um debate importante sobre as características “contemporâneas” do imperialismo. Voltaremos a esse debate.

247Nunca é demais lembrarmos que os Estados Unidos possuem desde a sua “fundação” – caminhando lado a lado com um conservadorismo extremamente poderoso – uma importante tradição libertária e/ou “de contestação” que assumiu as mais variadas formas como, por exemplo, a “desobediência civil”, o movimento feminista, os movimentos negros pelos direitos civis e o movimento hippie, para não entrarmos no imprescindível e difícil tema das “artes”, que no século XX assumem uma importância inédita no cotidiano das pessoas. Sobre as Artes no século XX, temos os dois excelentes capítulos do sempre oportuno Eric J. Hobsbawm em Era dos Extremos: As artes: 1914-45 (cap. 6) e Morre a vanguarda:

as artes após 1950 (cap. 17). Devemos a reflexão sobre a importância da tradição libertária na sociedade

americana a nosso mestre Thiago M. Borges. A reflexão sobre a importância dos capítulos sobre as artes nas obras de Eric J. Hobsbawm, a nosso estimado amigo Lucas Corazza, que os identifica – a nosso ver com razão – que os capítulos sobre as “artes” costumam funcionar como momentos de “síntese” em diversas obras do “historiador das eras”.

Voltaremos a esse assunto posteriormente. Ao nosso juízo, até aqui já podemos indicar o ponto central de Harvey, ao qual voltaremos: para ele existiu uma sociedade capitalista menos desregulada e mais “progressista” – o que nos parece um fetiche, ainda que bastante difundido. Chegaremos a essa discussão. Mas por hora precisamos reter que, segundo o argumento de Harvey,

foi, contudo, naturalmente, o 11 de setembro que forneceu o ímpeto para romper os hábitos dissolutos dos anos 1990. Ele proporcionou a abertura política não só para afirmar um propósito nacional e para proclamar uma solidariedade nacional como também para impor a ordem e a estabilidade à sociedade civil em casa. Foi o combate ao terrorismo, imediatamente seguido pela perspectiva da guerra com o Iraque, que permitiu ao Estado acumular mais poder. O envolvimento com o Iraque foi bem mais do que uma mera manobra diversionista das dificuldades domésticas – foi uma grande oportunidade de impor um novo sentido de ordem social em casa e de submeter a comunidade. O inimigo externo malévolo tornou-se a força primordial por meio da qual exorcizar ou domar os demônios que espreitavam no interior. 248

O que, portanto, teria justificado “socialmente”, entre outras coisas, o encrudescimento das políticas de migração, a construção de muros e outras formas de isolacionismo na fronteira com o México, bem como a instauração dos assim chamados

Atos Patrióticos, os marcos regulatórios para a Internet e diversas outras formas de

castração das liberdades civis em nome da Segurança249.

248 P. 23 e 24.

249Não conhecemos nenhum trabalho que sistematize essa importante temática. O professor Mariutti nos indicou como referência do debate Richard HOFSTADTER, com The paranoid style of american foreign

police, o qual não tivemos a ocasião de estudar. Por hora, nos basta enunciar que o que se entende por Segurança – no original, Security – vai se tornando algo a cada dia mais elástico, como o provam termos

como Segurança Alimentar – no original, Food Security, controlado pelo Departamento de Agricultura USDA (conforme disponível em http://www.ers.usda.gov/data-products/food-security-in-the-united- states.aspx) – e a extensa lista de preocupações do Departamento de Segurança Doméstica – US

Department of Homeland Security – que inclui em sua lista de ocupações, por exemplo, Cibersegurança, Segurança Econômica, Segurança Biológica e Segurança Química, por exemplo, na mesma pasta que Prevenção ao Terrorismo”, Combate à Violência Extremista, Tráfico Humano, Segurança Nuclear e Desastres,

bem como Direitos Civis e Liberdades Civis (http://www.dhs.gov/topics). Como se pode facilmente presumir, absolutamente tudo pode ser entendido em termos de “segurança”. E como ninguém pode articular um discurso orientado contra a segurança, o potencial totalitário dessa vaga idéia – bem como o potencial de lucro das empresas desse setor – é praticamente inelástico – como, aliás, já prenuncia há muito tempo o que no Brasil chamam de Teorias das Relações Internacionais (TRIs). Como mais uma ilustração das possibilidades infinitas de desdobrar para além de quaisquer limites o argumento da “segurança”, sugerimos a leitura do documento Estratégia Nacional para a Segurança da Cadeia de Suprimentos Global (National Strategy for Global Supply Chain Security), assinada por Obama no dia 23 de janeiro de 2012, disponível em https://www.hsdl.org/?view&did=698202.

Em suma, como bem observa Harvey – retomando as teses sobre o “bumerangue” de Hannah Arendt250 – “para suster o ímpeto e realizar as suas ambições, o governo teve de pôr em operação o estilo paranóide da política norte-americana251”, fomentando o

250As teses dessa autora são manifestamente cruciais para a argumentação de Harvey, mas aparecerão aqui de modo apenas superficial. Em nosso juízo, As origens do totalitarismo é uma obra preciosa, que merece mais atenção do que recebe, ao que, diante dessa atenção, pensamos que há muito a ser aprendido ali para além dos incontáveis ataques que ela costuma receber por parte dos marxistas. Cf: http://marxismo21.org/hannah-arendt/.

251p. 157. Para uma visão mais aprofundada sobre o estilo paranóide da política do poder estadunidense, recomendamos um pequeno trecho do documentário Tiros em Columbine, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=RJe-rTCzoZU; a versão integral, por sua vez, pode ser visualizada em: https://www.youtube.com/watch?v=cr8ZstJHNz8

racismo252, porque “o imperialismo no exterior [é] comprado ao preço da tirania no plano doméstico”253.

A esse misto de tirania com imperialismo Harvey denomina “projeto imperial neoconservador”254, que seria o reflexo do fato de que “o neoconservadorismo substituiu o neoliberalismo do tipo defendido por Clinton”.

252p. 159. Neste momento, dentro do complexo e profundamente hierarquizado mecanismo do racismo, predomina nos EUA a islamofobia, seguida pela fobia aos “asiáticos” e “latinos”. Sobre a islamofobia, dentre muitas outras “fontes”, recomentamos o documentário Road for Guantánamo, disponível em inglês: https://www.youtube.com/watch?v=SXCth19kwRw; e em espanhol: https://www.youtube.com/watch?v=5fimeH0tZkI).

253Harvey, p. 169. Num – como de praxe – instigante artigo sobre o etnocídio, Pierre Clastres observa que para ser etnocida no exterior, cumpre que a civilização ocidental – aos curiosos e/ou puristas: o autor problematiza cada um desses termos em seu texto – seja etnocida em primeiro lugar no interior dela

mesma. (p. 82) Noutros termos, que em muitos sentidos podem ser entendidos como antecipação da

síntese da tese que gostaríamos de defender, “Aceita-se que o etnocídio é a supressão das diferenças culturais julgadas inferiores e más; é a aplicação de um princípio de identificação, de um projeto de redução do outro ao mesmo (o índio amazônico suprimido como outro e reduzido ao mesmo como cidadão brasileiro). Em outras palavras, o etnocídio resulta da dissolução do múltiplo no Um. O que significa agora o Estado? Ele é, por essência, o emprego de uma força centrípeta que tende, quando as circunstâncias o exigem, a esmagar as forças centrífugas inversas. O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. Nesse nível formal em que nos situamos atualmente, constata-se que a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um. (…) Essa vista de olhos sobre a história de nosso país [a incontestável França] é suficiente para mostrar que o etnocídio, como supressão mais ou menos autoritária das diferenças socioculturais, está inscrito de antemão na natureza e no funcionamento da máquina estatal, a qual procede por uniformização da relação que mantém com os indivíduos: o Estado conhece apenas cidadãos iguais perante a Lei. Afirmar (…) que o etnocídio pertence à essência unificadora do Estado conduz logicamente a dizer que toda formação estatal é etnocida. (…) A violência etnocida, como negação da diferença, pertence claramente à essência do Estado, tanto nos impérios bárbaros quanto nas sociedades civilizadas do Ocidente: toda organização estatal é etnocida, o etnocídio é o modo normal da existência do Estado. Há portanto uma certa universalidade do etnocídio, no sentido de ser característico não apenas de um vago 'mundo branco' indeterminado, mas de todo um conjunto de sociedades que são as sociedades com Estado. (…) [Mas somente nos Estados da sociedade ocidental] a capacidade etnocida se mostra sem limites, ela é desenfreada. É exatamente por isso que ela pode conduzir ao genocídio e que se pode falar do mundo ocidental, de fato, como absolutamente etnocida. Mas de onde provém isso? O que a civilização ocidental contém que a torna infinitamente mais etnocida que qualquer outra forma de sociedade? É seu regime de produção econômica, espaço justamente do ilimitado, espaço sem lugares por ser recuo constante do limite, espaço infinito da fuga permanente para diante. O que diferencia o Ocidente é o capitalismo, enquanto impossibilidade de permanecer no aquém de uma fronteira, enquanto passagem para além de toda fronteira; é o capitalismo como sistema de produção par ao qual nada é impossível, exceto não ser para si mesmo seu próprio fim: seja ele, aliás, liberal, privado, como na Europa ocidental, ou planificado, de Estado, como na Europa oriental. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo; tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade. Eis porque nenhum descanso podia ser dado às sociedades que abandonavam o mundo à sua tranquila improdutividade originária; eis por que era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício representado pela não exploração econômica de imensos recursos. A escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o etnocídio, ou o genocídio.” Pierre Clastres, Do Etnocídio, em

Arqueologia da Violência.

Temos aqui mais uma passagem fundamental para o nosso argumento principal acerca da periodização do Imperialismo. Como vemos, ainda que noutras passagens – sem dúvida importantes, como os capítulos sobre A acumulação por despossessão255 (cap. 4) e A coerção consentida (cap. 5) – o argumento seja mais complexo a formação de um bloco único ligando os interesses neoconservadores e neoliberais dê a tônica do argumento, não podemos deixar de refutar o argumento de Harvey segundo o qual os anos que se seguiram aos espetáculos de setembro seriam o resultado da “substituição” do “neoliberalismo” pelo “neoconservadorismo” como duas “modalidades” diferentes de imperialismo256.

Conforme procuramos defender em nossa dissertação de mestrado257, o decisivo,