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Sobre a “traição das elites” e as (im)possibilidades de um “novo 'New Deal'” Essa visão industrialista do capitalismo é particularmente mais nociva quando

Parte I – Alguns comentários iniciais sobre a ordem do Imperialismo Capitalista

Capítulo 4. Considerações sobre as bases que sustentam a hipótese do “sumiço” e “retorno”

4.4 Sobre a “traição das elites” e as (im)possibilidades de um “novo 'New Deal'” Essa visão industrialista do capitalismo é particularmente mais nociva quando

colada na questão nacional, quando aquele suposto amor à produção pela produção se liga ao suposto amor à pátria. São esses alguns dos ingredientes principais, no centro ou na periferia, da ideologia que não consegue deixar de ver progressismo no modo de produção capitalista, ou, dito de outra forma, enxerga como se todas as melhorias ocorridas nesse período pudessem ser creditadas não às lutas das classes trabalhadoras, mas ao avanço do capital enquanto relação social predominante.

As narrativas sobre o século XX costumam destacar o fato de que, num primeiro momento, houve um engrandecimento monstruoso da potência imperial (fiquemos com o caso estadunidense, deixando por hora em suspenso a URSS) pautada no vigor de sua economia industrial que alterou radicalmente a paisagem do mundo entulhando o planeta de mercadorias Made in USA. Isso foi percebido como a superação da hegemonia britânica e a implementação da hegemonia estadunidense. Fazia parte dessa hegemonia

– bom lembrar: que nascia na (da) fábrica331 – a crença de que a sociedade civil estadunidense estaria passando por melhorias porque o modo de produção capitalista configurado em sua forma industrial assim proporcionava.

De acordo com esta narrativa, a seguir, teríamos vivenciado um momento igualmente – talvez mais – transformador, em que as plantas industriais teriam “migrado” para a “periferia”. É um modo de tentar explicar como o mundo foi entulhado com uma quantidade ainda maior de produtos industrializados – mas agora Made in

China. Mas o que é de extrema importância: essa “migração” das plantas industriais, na

prática, quando analisada para além do discurso da administração dos ativos econômicos, demonstra o que de fato importa anotar, da perspectiva da totalidade do modo de produção capitalista (para muito além de quem comanda o processo de expansão): neste momento, uma quantidade imensa de pessoas teve sua força de trabalho, suas terras, suas moradias e incontáveis outras coisas pertinentes à sua vida – pela primeira vez na história – transformadas em mercadoria. Que isso tenha se transformado em uma fonte incomparável de lucro, é uma consequência lógica da própria expansão do modo de produção capitalista. E que isso esteja ocorrendo agora na periferia ilustra perfeitamente o que se costuma entender pelo “desenvolvimento do capitalismo”: a constante sucessão de “exploração e abandono” por parte do capital em diferentes áreas (“geográficas” ou não). [Para ficarmos na geografia] O processo de expansão do capital ao longo de sua história [extremamente potencializado no momento do Imperialismo] se caracteriza pela transformação radical da maneira como as sociedades organizavam suas respectivas formas de viver. Mantida sempre alguma coloração particular, uma pluralidade imensa dessas formas foi destruída, ou passou a

331 Antonio Gramsci, Americanismo e Fordismo. Ainda sobre esse ponto, mas já no registro das dificuldades de se acreditar nesse logro, sugerimos o excelente episódio “O escritório do meu pai”, da referida série Anos Incríveis, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=WtowYDNDcRk.

ser organizada de modo capitalista. Isso implica necessariamente em transformar em mercadorias, coisas que nunca o foram332.

Visto por esse ângulo, o que se costuma glorificar como Anos Dourados é um momento em que as pessoas progressivamente aprofundam de maneira brutal sua dependência do circuito de mercadorias do capital, a cada dia mais central em suas vidas. Quando comparamos a vida de um cidadão estadunidense no começo do século XX com o seu final – e, portanto, podemos verificar a transformação dos tais Anos Dourados – dessa perspectiva, podemos observar claramente que o tal “progresso” representou a

332“Nenhuma sociedade poderia sobreviver durante qualquer período de tempo, naturalmente, a menos que possuísse uma economia de alguma espécie. Acontece, porém, que, anteriormente à nossa época, nenhuma economia existiu, mesmo em princípio, que fosse controlada por mercados. Apesar das fórmulas cabalísticas acadêmicas, tão persistentes no século dezenove, o ganho e o lucro feito nas trocas jamais desempenharam um papel importante na economia humana. Embora a instituição do mercado fosse bastante comum desde a Idade da Pedra, seu papel era apenas incidental na vida econômica.” (P. 59) “(...) o padrão de mercado, relacionando-se a um motivo peculiar próprio, o motivo da barganha ou da permuta, é capaz de criar uma instituição específica, a saber, o mercado. Em última instância, é por isso que o controle do sistema econômico pelo mercado é de consequência fundamental para toda a organização da sociedade: significa, nada menos, dirigir a sociedade como se fosse um assessório do mercado. Ao invés da economia estar embutida nas relações sociais, são as relações sociais que estão embutidas no sistema econômico.” (P. 72) “A auto regulação significa que toda a produção é para a venda no mercado, e que todos os rendimentos derivam de tais vendas. Por conseguinte, há mercados para todos os componentes da indústria, não apenas para os bens (sempre incluindo serviços), mas também para o trabalho, a terra e o dinheiro, sendo seus preços chamados, respectivamente, preços de mercadorias, salários, aluguel e juros.” (P. 82) “Acontece, porém, que o trabalho e a terra nada mais são do que os próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o ambiente no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado.” (P. 84) “O ponto crucial é o seguinte: trabalho, terra e dinheiro são elementos essenciais da indústria. Eles também têm que ser organizados em mercados e, de fato, esses mercados formam uma parte absolutamente vital do sistema econômico. Todavia, o trabalho, a terra e o dinheiro obviamente não são mercadorias. O postulado de que tudo o que é comprado e vendido tem que ser produzido para a venda é enfaticamente irreal no que diz respeito a eles. Em outras palavras, de acordo com a definição empírica de mercadoria, eles não são mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para a atividade humana que acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para a venda, mas por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é produzido, mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças estatais. Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia. Não obstante, é com a ajuda dessa ficção que são organizados os mercados reais do trabalho, da terra e do dinheiro. (...) A ficção da mercadoria, portanto, oferece um princípio de organização vital em relação à sociedade como um todo, afetando praticamente todas as suas instituições, nas formas mais variadas.” (P. 84-5) “Os mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para uma economia de mercado. Entretanto, nenhuma sociedade suportaria os efeitos de um tal sistema de grosseiras ficções, mesmo por um período de tempo muito curto, a menos que a substância humana e natural, assim como a sua organização de negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho satânico.” (p. 85-6) Que Karl Polanyi, autor do raciocínio exposto, conclua que caiba ao Estado o papel de proteger a sociedade “contra os assaltos desse moinho satânico” – ou, mais precisamente, que a sociedade possa organizar-se de tal modo que o Estado possa frear os ritmos da mudança dos processos sociais – o torna facilmente apropriável pela visão de mundo que passaremos a refutar. A necessária exposição sistemática de seu raciocínio e a fortuna crítica de seus sucessores nos desviaria demasiado de nossos objetivos deste nada retilíneo percurso no qual nos lançamos. O deixaremos para outra ocasião, ainda que pretendamos voltar a este autor na sequência do nosso texto.

implementação intensiva de uma sociedade de consumo de massas de uma grandeza impensável no começo desse processo. Mas, ainda mais importante de entender, é que, ao mesmo tempo – essa é a especificidade do modo de produção capitalista – a expansão da quantidade de mercadorias é acompanhada pelo profundo agigantamento da importância do capital e da mercadoria como relações sociais predominantes – e, nunca é demais lembrar, uma caminhada acelerada para o consumo irreversível dos recursos naturais333. Desse ponto de vista, como seria possível argumentar que o período do pós- Guerra foi, como gostam de dizer os pseudo-críticos do modo de produção capitalista, um momento de “controle de capitais”, em que supostamente o período do parasitismo imperialista teria sido domesticado pelas voluntariosas políticas “keynesianas”? Isso é ideologia burguesa pura e simples! 334

O que vimos tentando sugerir até aqui, é que é preciso que enquadremos o debate sobre o “neoliberalismo” e a “globalização” não apenas com relação à tradição das assim chamadas teorias do Imperialismo – o que faremos posteriormente – mas também com relação aos seus debates contemporâneos com os quais dialogam, não raramente sem fazer-lhes as referências. Mesmo que esses debates contemporâneos não constituam interlocutores diretos, compõem a paisagem das décadas do fim do século XX e início do XXI, e as pessoas que pensaram esses problemas, formaram seu quadro de referências muitas vezes por meio de uma organização diferente dos mesmos elementos.

O que também nos interessa, ainda que de modo indireto, é que nesse período se deu uma importante e inconclusiva (porque depende de desdobramentos no futuro) discussão sobre a perda ou não da hegemonia estadunidense. No que toca especificamente a produção industrial dos Estados Unidos, duas coisas chamam a atenção: 1) os capitalistas ali residentes lucraram como nunca, e de modo crescente, em

333https://www.facebook.com/malvadoshq/photos/a.181209315329627.38166.181129068670985/734 727886644431/?type=1&fref=nf&pnref=story

334 Karl Polanyi, muito mais sofisticado, falaria sobre o “controle sobre o ritmo da mudança”. É uma crença um tanto quanto distinta, mas de um voluntarismo semelhante.

ambos os subperíodos (de crescimento e decrescimento industrial) 335; 2) os trabalhadores estadunidenses, outrora ocupados em empregos industriais – em organização usualmente conhecida por “fordista” – precisaram encontrar ocupação no setor de serviços – aos que não conseguiram, “azar” deles. O saldo final desse processo tem sido – porque ainda se aprofunda – a formação de cidades-fantasmas nos Estados Unidos336 – com imensas áreas produtivas simplesmente “abandonadas” e a formação de áreas de intensa urbanização na periferia [que somente de um ponto de vista profundamente fetichista pode ser chamado de desenvolvimento. Não é outra coisa senão a intensificação da exploração do trabalho e outras fontes de riqueza, agora sobre as tais formas “especificamente capitalistas”, ao que voltaremos]337.

Levando isso em consideração, não causa espanto que naquele país tenha ganhado vulto um intenso (sub)debate sobre a responsabilização da “elite” decisória pela “traição à pátria”. O que os “traídos” não parecem levar em consideração são as constatações óbvias de que 1) do ponto de vista da economia concorrencial capitalista, de fato, não existem opções senão aumentar a lucratividade a qualquer custo [essa gente que se diz traída raramente está disposta a lutar contra essa economia concorrencial capitalista, que eles também chamam de american way of life]; 2) essa trajetória, do ponto de vista sistêmico, repete a trajetória da outra potência imperial capitalista, a Grã- Bretanha, que no final do século XIX também parecia ter “aberto mão” das condições de pujança que a elevaram ao patamar do “Império onde o sol nunca se põe” [e talvez,

335Se o decrescimento é absoluto, relativo, ou qualquer outra nuance porventura necessária é secundário. É também importante que ressaltemos que os capitalistas residentes noutros países também lucraram muito – em ambos os períodos – pois a distribuição transnacional ainda que hierarquizada dos “bônus” sempre fizeram parte do exercício do poder hegemônico. Uma das prováveis características do Imperialismo Capitalista é que essa distribuição se torna progressiva e incessantemente transnacionalizada, sofisticando a hierarquia em vários níveis capazes de contemplar uma gama muito variada de interesses de poder sem contudo modificar suas estruturas fundamentais. Como contraparte necessária – porque o capitalista é um sistema de exploração – essa hierarquia também (re) produz uma hierarquia que define quem pode legitimamente ser violentado, conforme conversamos no início de nosso percurso.

336 O caso mais famoso é o de Detroit, cujas ruínas podem ser vistas em

http://www.theguardian.com/artanddesign/gallery/2011/jan/02/photography-detroit. Sobre os efeitos desse processo nas megalópoles, sugerimos a leitura de Planeta Favela, de Mike Davis. Para uma comparação entre a bolha imobiliária nos Estados Unidos e no Brasil, sugerimos a leitura da tese de doutorado da Professora Mariana Fix, Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no

Brasil (Unicamp, 2011).

337http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/03/150322_cidades_fantasmas_china_mj_cc;

http://gizmodo.uol.com.br/cidade-fantasma-ordos-china/; http://www.megacurioso.com.br/oriente- bizarro/70075-conheca-10-cidades-abandonadas-na-china-que-sao-loucas-e-bizarras.htm;

http://gizmodo.uol.com.br/china-cidades-fantasmas/. Sobre o mesmo assunto: https://www.facebook.com/malvadoshq/photos/a.181209315329627.38166.181129068670985/77667 2722449947/?type=1&pnref=story

portanto, isso não seja tão específico dessa dita “elite transnacional cosmopolita contemporânea”]; 3) para “recuperar” a posição produtiva anterior, as configurações trabalhistas nos Estados Unidos precisariam se dar de tal modo que o trabalho fosse

muito mais barato, ou seja, a sociedade estadunidense precisaria aceitar taxas

indonésias de exploração; 4) assim como não foi porque industrial que a sociedade estadunidense teve suas condições de vida melhoradas, a industrialização das periferias da periferia não melhora as condições de vida dessas populações, porque – é demais lembrar? – capitalismo e desenvolvimento são conceitos antagônicos; 5) o que se espera da “elite”, afinal?.

Na crítica impiedosa do professor Eduardo Mariutti,

o debate público nos EUA nas últimas décadas – o 'centro', portanto – mostra isso. Basta ver a chorumela sobre a 'brasilianização' dos EUA – em tons muito próximos da crítica à 'elite aculturada', aos bloqueios à difusão do progresso técnico, etc. – denunciada por Michael LIND em

The Next American Nation (…): 'Brasilianização [dos Estados Unidos] é

simbolizada pela crescente retração da classe dominante americana branca (...) para o mundo dos bairros privados, escolas privadas, polícia privada, sistema privado de saúde e até mesmo estradas privadas, isolando-se da onda de pobreza generalizada. Como a oligarquia latino

americana, os ricos e bem relacionados membros desta classe dominante podem ascender em uma América decadente, marcada por índices terceiro-mundistas de desigualdade e criminalidade.' (p. 14 – Grifo de

Mariutti). Ou então, na mesma linha, a banal denúncia de Christopher LASH, também escrevendo em meados dos anos 90, chega a uma conclusão que chocou os ingênuos: a principal ameaça à democracia americana vem das Elites – que, no caso, 'traíram a nação' ao criarem círculos fechados cada vez mais cosmopolitas, distanciando-se das classes médias e de uma democracia inclusiva. Espantoso seria se as 'elites' não se comportassem como 'elites', isto é, não defendessem seus privilégios de forma aguerrida, contra a maioria da sociedade, explorando as suas fontes internas e internacionais de poder (...)338 Compartilhamos integralmente a crítica – radical – do professor Mariutti a essa concepção sobre a “traição” e a possibilidade de pautar a luta pelos “pactos sociais”. A rigor,

esta arraigada crença no progressismo da burguesia é um traço tragicômico dos serviçais dessa classe: são diversas as referências às “traições” da burguesia, em todas as épocas e em praticamente todos os

338Mariutti, Texto para discussão 240, de junho de 2014, intitulado Violência, capitalismo e mercantilização

da vida, disponível em http://www.eco.unicamp.br/docprod/downarq.php?id=3354&tp=a, pág. 2, quando

também sugere que “Para uma crítica cuidadosa dessa tendência, ver Paulo ARANTES Zero à Esquerda São Paulo: Conrad, 2004 p.30-45; 57-9; 75-7.”

lugares. Mas, mesmo assim, o mito do burguês progressista e empreendedor sempre ressurge das cinzas339.

Antes de voltarmos um pouco atrás, fiquemos com a conclusão da crítica de Mariutti, que nos interessará à frente:

o problema básico desta discussão toda é que ela nunca conseguiu ultrapassar o fetichismo do capital: a crença infundada e fantasmagórica de que a abundância é fruto do movimento do capital entendido não como uma relação social de exploração, mas como uma coisa, isto é, uma massa de riqueza, meios de produção e conhecimento técnico, cuja eficácia pode ser aprimorada por políticas econômicas gestadas por elites tecnicamente competentes e imbuídas de 'espírito público'. Em suma: a quixotesca tarefa de salvar o capitalismo dos capitalistas340. Que se faça notar, para não mais voltarmos atrás: nenhuma dessas características tem qualquer coisa a ver com o “neoliberalismo”, e seria levada a cabo independentemente da orientação ideológica de seus gerentes momentâneos, simplesmente porque é motivada pelos constrangimentos concorrenciais que fazem do capitalismo capitalista – ou seja, um sistema de exploração de classes que corresponde a um modo de produção da vida pautado pela acumulação incessante de riqueza em forma

abstrata. Se isso se deve a constrangimentos “econômicos” [concorrência empresarial]

ou “políticos” [geopolítica do poder; luta de classes] é questão a ser debatida com muito cuidado. Insistimos: o erro que não podemos incorrer é colocar na conta do neoliberalismo [uma ideologia de gestão do capital] o que deve ser colocado na conta do capitalismo [um sistema de exploração/modo de produção]. Do contrário, corremos o risco de cair nas armadilhas da crítica não-radical e de propostas do tipo “defender um novo 'New Deal' esperando que se crie condições para que as forças progressistas um dia cresçam” ou, muito pior, “esperar e torcer para que a luta dos Estados Unidos penda para o nosso lado”. Que essas sejam as “soluções” defendidas por David Harvey em O

Novo Imperialismo só ilustra o que vimos tentando defender: mesmo um autor

consciente da necessidade da crítica ao modo de produção capitalista, e que nos ajuda a

339Mariutti, p. 3. Conforme discutimos na introdução, a lenda sobre o “bom burguês” procura – com sucesso – deitar raízes no mito de Odisseu, supostamente o astuto antepassado remoto do burguês típico. Que essa farsa tenha sido constituída quando do Romantismo alemão para ser completamente desmentida pelas investigações contemporâneas sobre a Odisséia é um fato muito interessante. Reforcemos: se Odisseu pode ser considerado o protótipo do indivíduo burguês é muito mais pelo seu epíteto “o saqueador de cidades” – que a visão romântica convenientemente abandona – do que por qualquer qualidade de trabalhador compromissado com o “desenvolvimento econômico” que porventura nosso herói também possua.

avançar a compreensão das relações sociais contemporâneas em muitas questões importantes não consegue superar o horizonte dos “Anos Dourados”.

Vivemos uma situação catastrófica. Querer colocar a “pasta de dentes de volta ao tubo” só não é pior do que esperar sem fazer nada. O mundo em que vivemos – incluindo cada um dos lugares que podem, em qualquer sentido, serem chamados de “centro” – caminha progressivamente para o aumento da opressão e do controle e para as catástrofes ambientais, em todos os lugares. Internacionalmente, ocupações, pressões, embargos, (re) conquistas espaciais. No plano interno,

os aparelhos de vigilância sobre os cidadãos, associados a diversos mecanismos de repressão aos “distúrbios civis” não param de se multiplicar, criando o que Paulo Arantes denominou como uma “sociedade securitária de risco”, capaz de suspender a qualquer momento os direitos de cidadania e as garantias constitucionais341. Em resumo, podemos observar em todos os lugares os efeitos da “reorientação” dos Estados Unidos, porque “o colapso da URSS paradoxalmente acirrou o militarismo estadunidense, ao enfatizar ainda mais a sua orientação para mudar regimes, fortalecendo o mecanismo de retroalimentação da violência construído logo no início da Guerra Fria”342. Esta seria a forma mais contemporânea de um antigo mecanismo que, [conforme aquele citado esquema de Hannah Arendt] “mescla sistematicamente a ameaça 'interna' à 'externa', criando uma sensação de insegurança perene, que fortalece e legitima os dispositivos de controle social343”. O efeito disso é que esse “mecanismo de retroalimentação da violência”, “simultaneamente, tenta eliminar do horizonte todas as perspectivas genuinamente emancipatórias344”. E aí reside a importância de que se dê espaço para aquelas “soluções bem mais radicais que espreitam nos cantos”345, e não, mais uma vez, como faz Harvey, clamar pelo estabelecimento de um “novo ‘New Deal’ liderado pelos Estados Unidos e pela Europa, tanto doméstica como internacionalmente”. Para ele, esta é, “diante das magníficas forças de classe e interesses especiais alinhadas contra ela”

uma meta suficientemente ampla pela qual lutar na atual conjuntura. E a idéia de que isso poderia, mediante a busca adequada de alguma ordenação [fix] espaço-temporal de longo prazo, mitigar de fato os problemas de sobreacumulação ao menos pelos próximos anos e reduzir

341Mariutti, 2014. pág. 1 e 2. 342Mesma obra, p. 2. 343Mesmo lugar.

344Mariutti, mesmo lugar.