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A estruturação do tempo nas narrativas mitológicas

CAPÍTULO 1 – OS DEUSES E HERÓIS MITOLÓGICOS

1.3. A estruturação do tempo nas narrativas mitológicas

A estruturação do tempo na história do mito significa que, o tempo na narrativa mitológica se apresenta organizado em períodos ou eras míticas. A periodização se apresenta organizada com estruturas claramente verificáveis. Cláudio Vicentino afirma: Medir o tempo e dividi-lo em períodos (ou seja, periodizá-lo) é igualmente um ato arbitrário, pois a escolha do ponto inicial da contagem e dos eventos mais importantes é feita por algumas pessoas, segundo sua compreensão do mundo e da existência humana, e seguida por

outros, sem que necessariamente exista uma concordância de todos. (VICENTINO, 2008, p. 11).

Segundo Vicentino: Quem constrói uma narrativa segue a sua própria “compreensão do mundo e da existência humana” (2008, p. 11). O sociólogo Ricardo Bitun em seu artigo para a obra comemorativa do centenário de As Formas Elementares da Vida Religiosa, intitulada: Estudos sobre Durkheim e a Religião 100 anos de “As Forma elementares da vida religiosa” explica:

Quando Lévi-Strauss afirma da Gesta de Asdival que “as especulações místicas (...) buscam, em última análise, não descrever o real, mas justifica-lo” ele está sublinhando uma relação homomórfica entre pensamento místico e mundo real. Essa adequação do mito à realidade, tributária da função primordial do mito que seria reunir as pessoas em torno de uma ideia primordial de ordem do mundo e das coisas, supõe o real como separado das imagens mentais. (BITTUN, 2014, p. 116, 117).

Na ciência histórica existe certa liberdade para periodização; assim como os fatos mitológicos recebem uma adequação à realidade; a periodização conforma-se à cosmovisão.

Fomos surpreendidos pela coincidência de eventos fundacionais, divindades criadoras, heróis e ancestrais civilizadores de diversas narrativas, semelhantemente estruturadas, pertencentes às diferentes civilizações. No entanto, as suas estruturas são comparáveis pela aplicação da analise estruturalista, de Lévi Strauss, mas tais análises, não nos permite traçar uma origem comum para essas diferentes civilizações. Servindo-se do “estudo das estruturas” (BASTIDE, 1971, p. 18), arriscamo-nos a uma “explicação sobre o concreto em perpétua transformação” (1971, p. 22) e buscamos entender os “tipos sociais inteiramente novos” (Ibid., p. 23). Mencionamos informações de fatos históricos e conceitos e interpretações da ciência ou da filosofia histórica, uma vez que, discorrer sobre os mitos não significa, absolutamente, descrever um relato puramente histórico.

Infelizmente, não temos como provar o que de fato ocorreu numa era mítica ou muito remota; aceitando a tese defendida por Bastide, da “interpenetração de civilizações” e construindo a mesma compreensão de mundo e da existência humana, determinante da estruturação dos períodos nas narrativas semelhantes das diferentes tradições religiosas. Mas podemos verificar as coincidências, semelhanças e diferenças com precisão. O fato observado no presente ou no passado recente não serve senão

relativamente à hipótese para os eventos do passado. O que for realmente um mistério ainda permanecerá intocado.

Outro fato que aproximou as tradições religiosas foi uma adaptação das concepções de tempo diferentes ao mundo capitalista globalizado. David Harvey observa: “a modificação da experiência do tempo e do espaço está, ao menos de modo parcial, na base da impulsiva reviravolta na direção de práticas culturais e de discursos filosóficos pós-modernistas.” (HARVEY, 2014, p. 184). Uma aproximação ou conformação aos mesmos modos de produção e de vida social no mundo globalizado pode ter facilitado uma aproximação das novas formas religiosas construídas nas últimas décadas.

Existe uma relação entre as crenças e a divisão do tempo; a criação dos calendários, a datação das festas religiosas e dias santos, etc.:

A objetividade do tempo e do espaço advém, em ambos os casos, de práticas materiais de reprodução social; e, na medida em que estas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo social e o espaço social são construídos diferencialmente. Em suma, cada modo distinto de produção ou formação social incorpora um agregado particular de práticas e conceitos do tempo e do espaço. (HARVEY, 2014, p. 189).

Seguindo o raciocínio materialista de David Harvey podemos afirmar que as concepções do tempo e do espaço são criadas através de práticas e processos materiais que servem à reprodução da vida social. Assim, também, diferenciam-se as concepções de tempo e espaço. Os meios de comunicação e transporte diminuíram o tempo de locomoção e de comunicação entre as cidades, fazendo-nos perceber o tempo e o espaço de maneira diferente do passado.

Existem concepções diferentes de tempo. Por exemplo, o tempo linear, o tempo cíclico, etc.; propomos que as semelhanças facilitadas pelas novas tecnologias atraem mais que as diferenças. As semelhanças entre as concepções antiguíssimas, especialmente, fortalece a hipótese da existência de alguma relação entre os mitos sagrados das diversas culturas. Por exemplo: No que tange às estruturas das narrativas da origem do mundo, da humanidade e das civilizações relacionadas à periodização histórica; vai da perturbação da ordem primordial e conflitos primordiais na antiguidade mítica até os cataclismos apocalípticos.

Ferretti afirma quanto ao estudo das religiões afro-brasileiras: “generalizações nesse campo são sempre limitadas e devem ser aceitas com cautela” (FERRETTI, 2013, p. 36). No entanto, Le Goff afirma que: “O estudo das idades míticas constitui uma abordagem peculiar, mas privilegiada, das concepções do tempo, da história e das sociedades ideais”. (LE GOFF, 2014, p. 263). Descartamos, porque não pode ser negada ou afirmada uma possibilidade inverificável de uma origem comum para essas civilizações, então, ficamos com a análise das estruturas das narrativas. Observemos:

A maior parte das religiões concebe uma idade mítica feliz, senão perfeita, no início do universo. A época primitiva – quer o mundo tenha sido criado ou formado de qualquer outro modo – é imaginada como uma idade de ouro. Por vezes, as religiões perspectivam outra idade feliz, no fim dos tempos, quer como o tempo da eternidade, quer como a última época antes do fim dos tempos. (Ibid., 2014, p. 263).

Quanto às concepções míticas, o historiador observa “a mesma polarização da memória coletiva dos tempos das origens e do herói mítico” (2014, p. 392), e, nas narrativas das diversas tradições religiosas, a mesma estruturação. Embora essas narrativas das diversas tradições sejam diferenciáveis em cada detalhe, esses elementos estruturais estão presentes em muitos dos mitos das origens e dos finais da criação:

1.º – A Gênese: Origem do céu e da terra ou mitos da criação. Uma “Idade de Ouro” no início (paraíso inicial).

2.º – Os elementos materiais existentes no momento da criação do homem e do mundo – água e terra na composição do “Barro Primordial” – o caos e a origem do cosmos.

3.º – A Queda: A Ordem Primordial (“Idade de Ouro”) e sua quebra ou perturbação ou “Conflito Primordial”.

4.º – Escatologia: Os últimos cataclismos e a restauração da Ordem Primordial – Uma “Idade de Ouro” no final (Um “Conflito Final” e o retorno ao paraíso).

O relato da criação nas diversas religiões pode ser compreendido tomando como paradigma o relato bíblico de Gênesis: O Deus Supremo criou o mundo e os seres humanos numa “Era de Ouro” antes dos acontecimentos perturbadores da “Ordem Primordial”. “O processo da criação segue tipicamente um processo de anúncio, ordem, separação, informação, nomeação, avaliação e arcabouço cronológico”. (WALTKE,

2010, p. 64). O mundo e os seres humanos aguardam em um novo tempo a restauração da Ordem Primordial; a vida num Mundo Melhor.

Nos mitos dos povos sem escrita estudados encontram-se a criação da humanidade, a origens dos povos e dos deuses no fundamento da religião e das estruturas sociais, e os heróis ou ancestrais civilizadores; como na tradição judaico-cristã. Deve-se, portanto, tomar como paradigma que, o tempo da criação nas narrativas míticas é situado posteriormente à existência da matéria:

O ponto de partida da história pode ser algo surpreendente. Não há palavra de Deus criando o planeta ou trevas ou o caos aquático. O narrador começa a história com o planeta já presente, embora indistinto e informe. No momento criativo de Deus, ele transformará as trevas num universo ordenado. (WALTKE, 2010, p. 68).

Os mitos da criação são estruturalmente idênticos, ainda que os relatos apresentem elementos distintivos em cada detalhe. Por exemplo, na hipótese que deliberamos denominar de “mito” evolucionista a vida se inicia emergindo das águas lamacentas alcançadas pela luz do sol. Os mitos da criação da África e do Oriente Próximo se distinguem do relado do Gênesis, principalmente, na sua dependência de um único Deus:

Enquanto as forças da natureza às vezes são deidades nos mitos da criação no antigo Oriente Próximo, aqui tudo se deriva de Deus e está sujeito à palavra de Deus (ver também “luz” e “dois luminares”, abaixo). Ainda que a criação não seja parte do ser de Deus, toda a criação é inteiramente dependente de Deus para sua subsistência e sustento (cf. Ne 9.6; At 17.25,28). (2010, p. 70).

Bastide observou que os mitos orientam “uma variação de símbolos ou de valores” (BASTIDE, p. 29); distingue o mito da criação da religião judaica e da africana. Como vimos o Gênesis apresenta um único Deus supremo que é o legislador absoluto. Enquanto A. S. Franchini apresenta o mito da criação em As Melhores Histórias da Mitologia Africana, como: “uma das tantas lendas africanas que tentam explicar as razões dos deuses terem decidido criar, certo dia, na terra, uma cópia desastrada do céu e dos seus felizes habitantes.” (FRANCHINI, 2008, p. 123). Le Goff descreve os deuses africanos vivendo numa Idade de Ouro felizes e imortais (LE GOFF, 2014, p. 266). Além de não ser apresentado como relato que pretenda ser histórico nem se tornar profético, como no caso judaico, os deuses e heróis africanos são dotados de autonomia e liberdade com relação ao Deus Supremo. A mitologia africana parece uma tentativa de atender

melhor à aspiração de liberdade e felicidade do homem, mesmo que seja uma liberdade e felicidade distraída e desastrada. O mito africano com sua concepção das origens do tempo e da historia constrói na terra o mundo social dos deuses africanos no seu aiê23 (correspondente ioruba do céu) menos organizado e hierarquizado. A rejeição da denominação de “mito da criação” permanece um tabu no cristianismo. Enquanto as tradições afro-brasileiras não invocam autoridade e nem se importam com a demarcação do espaço e do tempo das eras míticas. No entanto, em todas as mitologias da criação permanece o caráter pedagógico e simbólico da “apresentação da criação” (WALTKE, 2010, p. 70). Le Goff define a Idade do Ouro primitiva na tradição judaico-cristã com os traços peculiares do Paraíso (LE GOFF, 2014, p. 281). Essa Idade de Ouro também é esperada para o futuro em diversas tradições religiosas.

Segundo Heinrich Krauss, quanto ao “pano de fundo antigo-oriental” que ajuda interpretar o livro do Gênesis, “quando se postula a existência de um único Deus transcendente, é mais importante evidenciar as diferenças em relação às mitologias dos povos vizinhos do que ressaltar as eventuais semelhanças” (KRAUSS, 2007, p. 15). A despeito do parecer de Krauss, para os leitores familiarizados com o livro de Gênesis entenderem os mitos africanos será necessário destacarmos tanto as semelhanças quanto as diferenças.

Na cultura judaica o “relato da criação” determina que o dia termine quando as trevas da tarde dissipam a luz da manhã; o princípio que regula o tempo na tradição judaica é a guarda do sábado; derivada literalmente do Gênesis. Logo, o relato pretende ser histórico profético e normativo. Waltke, ressalva: “Têm-se proposto diversas interpretações para os “dias” do relato da criação”. Não existe um consenso judaico cristão quanto a sua literalidade, inclusive para “períodos literais de vinte quatro horas”. Permanece sempre o seu valor moral, ainda que se admita “eras e épocas extensas” (WALTKE, 2010, p. 71). Então, mesmo questionada a literalidade do texto do Gênesis, a lei moral continua fundamentada no evento criativo e permanece inabalada pela força do princípio da ordem da criação; cuja autoridade reivindica a historicidade e normatividade do texto bíblico.

O estudioso apresenta no seu capítulo sobre escatologia as diversas formas de interpretação da espera de uma idade feliz ou milênio (Ibid., pp. 282; 299-338). Nas tradições de tempo linear não será possível um retorno à Idade de Ouro, senão pela ideia de reforma ou retorno à forma primitiva. Consideremos, além de uma contínua interpretação da história bíblica no contexto antigo, a importância das contribuições da pesquisa moderna para o estudo comparativo dos antigos mitos africanos e mesopotâmicos.

Não somente estruturalmente, mas em muitos outros detalhes, a mitologia africana coincide com a mitologia grega, cujos deuses não são mais venerados, mas são mais difundidos, portanto, mais conhecidos. Os termos aplicados às eras míticas da mitologia africana são emprestados da literatura que apresenta a mitologia grega: A idade primitiva de felicidade recebe o nome de Idade de Ouro do poema de Hesíodo que data de meados do século VII a.C.; na obra Os Trabalhos e os Dias Hesíodo misturou dois temas já existentes, um mito das quatro idades com nome de metais e a lenda de uma idade de heróis inserida entre a terceira e quarta idades:

De ouro foi a primeira raça de homens mortais,/ que os Imortais, habitantes do Olimpo, criaram/ Era o tempo de Cronos, que reinava no Céu. Viviam como deuses, o espírito livre e despreocupado,/ à margem de penas e misérias;/ a terrível velhice não lhes pesava, sempre de membros vigorosos, deleitavam-se nos festins, longe de todo mal./ Quando morriam, pareciam vencidos pelo sono. Todos os bens lhes pertenciam: o solo fértil oferecia-lhes por si/ abundantes e saborosos frutos; e eles, na glória e na paz, viviam da terra, rodeados de inúmeros bens (HESIODO, vv. 109-19; apud. LE GOFF, 2014, p. 271).

Le Goff afirma: “Da raça evocada por Hesíodo, os nostálgicos da era paradisíaca fizeram uma Idade de Ouro” (LE GOFF, 2014, p. 271). No caso da Idade de Ouro no mito grego a humanidade declina sucessivamente ao longo de três idades “e não acaba, nem numa catástrofe final, nem num retorno ao tempo primitivo”; “com a Idade da Prata e a Idade do Bronze, os homens tornaram-se guerreiros e carnívoros e a Justiça foi-se afastando deles progressivamente.” (2014, p. 273).

O tema se repete na obra Livro I das Metamorfoses de Ovídio. Le Goff menciona a análise das seguintes características da Idade de Ouro: 1) “um regime anárquico sem poder, sem leis, sem propriedade privada”; 2) “o reino da paz”; 3) “a ausência de comércio e de viagens”; 4) “o arcaísmo tecnológico”; 5) “o vegetarianismo”; 6) “uma moral de

inocência primitiva, numa espécie de País de Abundância” (variante do paraíso e da Idade de Ouro).

Ovídio não alude diretamente ao retorno à Idade de Ouro: “Um regresso à Idade do Ouro, em que os escravos, se não eram senhores, eram pelo menos iguais aos homens livres; as guerras estavam suspensas e os tribunais não funcionavam”. (2014, p. 275). Bastide interpreta a esperança de um retorno a Idade de Ouro como o efeito do “caos de civilizações do mesmo tipo, em que os elementos de diferenciação seriam mínimos, de maneira a melhor aplicar a regra durkheimiana das variações concomitantes.” (BASTIDE, 1971, p. 29). Os filósofos estoicos que difundiram a Teoria dos Ciclos (Zenão, Cleonte, Crisipo e Possidônio) entre outros posteriores. (LE GOFF, 2014, p. 276).

As idades míticas são épocas felizes, as quais antecederam acontecimentos que, interferiram no destino da humanidade. Assim com nas tradições africanas, entre os gregos a preocupação com os últimos dias tenha sido secundária, “a especulação sobre as origens, a crença numa Idade de Ouro primitiva e as esperanças de retorno a esse paraíso eram muito fortes.” (2014, p. 270). Algumas religiões africanas concebem o tempo cíclico. Mas mantém a “Idade de Ouro”; “mas, trata-se mais de uma Idade de Ouro virtuosa do que de uma Idade de Ouro de facilidades.” (Ibid., p. 280). Quanto às idades míticas investigadas na cultura de alguns povos africanos, Le Goff menciona a pesquisa de H. Baummann: “a Idade de Ouro em que os homens viviam com os deuses felizes e imortais” (Le Goff, 2014, Apud., Baummann, 1936, p. 266), mas, interroga, pelo menos em dois “casos, sobre a existência de influencias cristãs”. Assim, o retorno da “Idade de Ouro” que já vimos na tradição judaico-cristã e africana aparece em filósofos e escritores da antiguidade.

Segundo Le Goff, o mito da criação do livro de Gênesis está entre os relatos literariamente considerados sofisticados, mas os mitos da criação da humanidade e dos deuses nos mitos mesopotâmios e africanos com sua narrativa da origem histórica dos deuses, dos seres humanos e dos povos ancestrais apresentam a vantagem de uma concepção privilegiada do tempo: nesses mitos da criação são situados nas idades míticas (LE GOFF, 2014, pp. 264-285). Logo, não tentam apresentar conexões históricas precisas e uma concepção cientifica de tempo e espaço; são aceitos e celebrados sem a exigência de organização, erudição e sofisticação.

Podemos concluir que a Idade de Ouro está presente na mitologia africana, grega e das civilizações orientais (2014, 266-268). Obviamente, as idades míticas na antiguidade Greco-romana (Ibid., pp. 270-280) são transmitidas de forma diferente dos mitos africanos. Os mitos gregos e romanos “chegaram até nós através de textos literários, muitos dos quais de autoria dos maiores escritores gregos e latinos” (Ibid., p. 271). Os escritos foram muito importantes para a preservação e difusão do saber. Hoje, com muita cautela, quando se trata de uma religião iniciática na qual se trata o sagrado como segredo, a tradição oral passa à tradição escrita a fim de promover sua preservação e difusão.