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Religiosidade, identidade étnica e acesso à imprensa

CAPÍTULO 2 – A RELIGIOSIDADE HÍBRIDA DO BRASIL

2.2. Religiosidade, identidade étnica e acesso à imprensa

Hoje, os afrodescendentes (população que se declara mulata ou preta) são uma maioria demográfica de 54% dos habitantes do Brasil, segundo o senso de 2014 do IBGE. Mas ainda continua uma minoria política e nos meios de comunicação de massa. A questão é que esse número advém da autodeclaração. Mas, como distinguir os dois grupos? O dos brancos e o dos pretos? As distinções por traços da raça estão superadas pela autodeclaração de identidade, com a negritude ou branquitude assumida pelo indivíduo.

Foi publicada no dia 10 de abril de 2018 pela Secretaria de Gestão de Pessoas do Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão (MPDG) a Portaria Normativa nº 4 que regulamenta procedimento complementar para confirmar essa declaração, no caso de candidatos negros, para fins de preenchimento de vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei nº 12.990 de 9 de junho de 2014. Parece-nos que o branco e o negro para fins de fato e de direito, ainda serão submetidos ao juízo dos outros. No entanto, Borges Pereira exprime melhor essa miscigenação que,

parece justificar distinguirem-se seletivamente, os indivíduos dentro de um padrão menos étnico racial e mais especificamente sociocultural:

Como se sabe, historicamente, e até com relativa frequência, a fronteira entre estes dois mundos étnicos tem sido cruzada através de prolongado processo de miscigenação, cujo depoimento mais concreto são as tonalidades dos grupos de cor, que comportam desde o negro retinto até o quase branco, com indisfarçáveis traços de ancestralidade negra. (BORGES PEREIRA, 2001, P. 106).

A expressão da religiosidade e a difusão da memória e identidade étnica, as quais reportam à escravidão na situação colonial, à discriminação do homem de cor nos dias atuais, não se define pela cor da pele, mas se identifica pelos mesmos sentimentos. O preconceito contra a gente de cor passa ao pobre, mas, também, une os povos na diversidade pelos elos da identificação em termos de ancestralidade, na construção de um mundo de unidade e de paz. O negro mais escuro e o quase branco que se reconhece mais negro e índio do que nunca, o que não se pode ver na cor da sua pele e que nem se pode imaginar expressa sua negritude pela música e pela religiosidade. O brasileiro que se identifica com a África em termos de ancestralidade busca os deuses e heróis do passado, de uma era de ouro mítica, para inspirar as lutas do presente contra a opressão e discriminação racial.

Maspoli afirma em Trauma Transgeracional e Resiliência na Diáspora Africana quantos aos índios, brancos e negros:

– essas três raças encontram-se na matriz arquetípica da cellula mater que formou, no útero da história, o povo brasileiro. Essas três raças, contudo, são retratadas nos estudos sociológicos pelo viés romântico da democracia racial de Gilberto Freyre (1963); pelo viés fraterno do homem cordial, apontado por Kidder e Fletcher, em 1844 (1941), conceito esse ampliado e difundido por Sérgio Buarque de Holanda (1987; 2010). As imagens de uma democracia racial da nacionalidade brasileira acima citadas, contrastam com a situação vivenciada por negros e índios nos dias atuais.

Não se pode negar, todavia, que índios, brancos e negros formam o caudal que originou o conceito de cultura brasileira de Fernando de Azevedo (1963; ALENCASTRO, 1997) e gerou a tipologia do caráter nacional brasileiro de Dante Moreira Leite (2002; MOTA, 1994).

Sob o dossel da democracia racial, sob o manto do homem cordial e escondida atrás da cortina do caráter nacional brasileiro, escamoteia-se, no mais das vezes, a teia que urde a dura realidade da dominação, escravidão e do abandono de negros pelas populações brancas, durante mais de cinco séculos; e dissimulam-se, às vezes inconscientemente, as

consequências cruéis do abandono e da escravidão de negros e seus descendentes. Sabe-se que a cortina de fumaça da democracia racial e do homem cordial esconde o preconceito racial e o massacre sistemático de milhões de pessoas, negros e índios oriundos dessas populações. (MASPOLI, 2018, pp. 23-24).

Abordamos neste subtítulo, especialmente, o sentimento de ambivalência, o mulatismo, o messianismo negro e o transe místico. No entanto, a experiência profissional do negro no mercado radiofônico brasileiro mereceu crescente atenção de antropólogos e sociólogos. Temos como ponto de partida a “situação nacional” do negro em Bastide, até as considerações de Borges Pereira quanto ao movimento histórico delimitado como tempo de prenuncio da decadência ou adaptação das emissoras de rádio ao avanço da tecnologia da comunicação, e, à “situação paulista”. Bastide, sobre a inserção do negro na imprensa registra que os negros e os mulatos ascenderam à imprensa e fizeram ouvir suas vozes, comunicaram sentimentos e ideias, bem como valores estéticos e morais, principalmente “nos jornais dos negros, em suas organizações políticas ou sociais, e em Umbanda” (BASTIDE, 1971, p. 467). Borges Pereira aprofunda este tema na sua obra e cita em nota os principais trabalhos sobre o negro brasileiro publicados depois do tempo e da atitude designada por Ramos de “conspiração do silêncio”54. Explica Borges Pereira:

Em anos recentes, os estudos de nossas populações de cor foram estimulados por resolução da Unesco55 que, interessada no conhecimento de nossas experiências Interétnicas, patrocinou programa de pesquisas no Brasil a cargo de especialistas nacionais. Como decorrência direta desse programa, ou nele se inspirando, novos trabalhos surgiram, pondo à mostra facetas inéditas do contato entre brancos e pretos em nossa terra56. (BORGES PEREIRA, 2001, p. 23).

54 “Cf. Arthur Ramos, A Aculturação Negra no Brasil, 1942, p. 326, reproduzindo entrevista concedida a periódico nacional, o autor chama de conspiração do silêncio a falta de estudos sobre o negro no Brasil.” (BORGES PEREIRA, 2001, p. 23).

55 “Programa adotado na Conferência da Organização das Nações Unidas para a Ciência, Educação e Cultura (UNESCO), realizada na cidade de Florença, em maio de 1950. Sobre as preocupações subjacentes a esse programa, cf. Egon Schaden, “A Unesco e o Problema Racial”, Revista de Antropologia. Vol. 1, n. 1, junho de 1953, p. 63.” (BORGES PEREIRA, 2001, p. 23).

56 “Principais trabalhos até agora publicados: L. A. Costa Pinto, O Negro no Rio de Janeiro, 1954; Thales de Azevedo, As Elites de Cor, 1955; Oracy Nogueira, “Relações Raciais no Município de Itapetininga”,

Anhembi, abril de 1954/abril de 1955. Roger Bastide e Florestan Fernandes, Brancos Negros em são Paulo, 1959; Fernando Henrique Cardoso e Octavio Ianni, Cor e Mobilidade Social em Florianópolis, 1960;

Pensando a integração do negro na sociedade brasileira, Bastide foi buscar o conhecimento na imprensa negra, onde as reivindicações dos negros brasileiros estão demonstradas de modo puro. O estudioso informa que o negro faz distinção entre o mundo da política e da religião, onde o conceito de depuração se materializa:

Em política, há certo esquema de atividades, luta dos partidos pelo poder, liderança e grupos de interesses; em religião, o que conta é a comemoração do passado divino, são as igrejas já constituídas, as tradições vivas. Assim, pois, no primeiro domínio, uma mudança de valores e de atitudes se traduzirá pela formação de novos partidos ou de novas organizações, que correspondem à subversão das classes; as necessidades inéditas que nascem, criam suas próprias instituições. Na religião, ao contrário, o passado resiste à mudança, pois a tradição é sagrada em essência. (BASTIDE, 1971, pp. 467-468).

Bastide encontrou, com efeito, os mesmos sentimentos: “de uma classe social que queria ser solidária na luta e que, entretanto não logra se desembaraçar dos preconceitos herdados da escravidão.” (1971, p. 467). A ascensão do negro à imprensa marca sua participação na política e uma nova forma de abandono e traição da África:

Está ela em jogo na imprensa negra quanto esta luta contra o folclore, contra os costumes antigos, quando prega o puritanismo dos costumes: trata-se de fazer um novo tipo de homem, distinto do africano “selvagem” e do escravo degradado. Mas, em religião, não se pode fazer um novo tipo de fé; já não se trata de renegar: trata-se, tão-somente, de purificar. (1971, p. 468)

A inserção do negro no contexto radiofônico em termos culturais, mais do que, especificamente, sociais e políticos, no qual o novo deve se inserir no velho sem destruí-lo, “trata-se de uma adaptação do mundo moderno, de uma renovação, de preferência a

Octavio Ianni, As Metamorfoses do Escravo, 1962; Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul, 1962. A pesquisa de Thales de Azevedo desenvolveu-se na Bahia, enquanto os dois últimos livros citados (Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso) relatam resultados parciais de pesquisas realizadas respectivamente em Curitiba e Porto Alegre. Por fim, a esta lista resta acrescentar o estudo de Florestan Fernandes, Integração do Negro à Sociedade de Classes, Boletim n. 301, Sociologia I, n. 12. Será oportuno ressalvar que, infelizmente para nós, esse trabalho só veio a lume no fim de 1964, quando esta redação estava praticamente concluída.” E, ainda: “Sobre inventário de pesquisas e publicações sobres negros, até 1954: Oracy Nogueira, “Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem”, em Symposium Etno-sociológico sobre Comunidades Humanas no Brasil, Separata dos Anais do XXXI Congresso Internacional de Americanistas, 1955, pp. 409-417.” (BORGES PEREIRA, 2001, p. 24).

uma inovação.” (Idem). Bastide já pensava sobre a tendência pós-moderna que se define pela demasiada contradição com a sociedade moderna, a qual, “ao contrário da palavra do Evangelho, é sempre em velhos odres que se entorna o vinho novo.” (Idem). Bastide observa que a inovação assume o conceito moderno de “depuração” que consiste em eliminar a “tradição ancestral”, ainda que esta seja considerada como uma “recordação demasiadamente brutal da barbárie” (Idem). Se antes, na modernidade, a desconstrução e oposição do moderno ao antigo imperavam, na pós-modernidade se opõem ao moderno pelo registro e preservação das antigas tradições. Uma vez que o negro já não pode renegar a sua religião, trata de purifica-la. Segundo Bastide: “essa purificação assumirá necessariamente a forma de um regresso, para além das formas decadentes, à verdadeira tradição original, à fonte primeira.” (Idem). Aqui se corrige quaisquer equívocos quanto à pós-modernidade, uma vez que a oposição ao moderno no movimento pós-modernista não elimina, mas une a tradição ancestral à inovação, e supera o desejo modernista de destruição e reconstrução; preserva, depura e inova, porém segue a lógica da religião que reforma: destrói e reconstrói.

Borges Pereira nos informa que as novas obras de pesquisadores nacionais, direta ou indiretamente, ligadas ao plano original de pesquisa da UNESCO, investigaram as áreas da realidade brasileira as quais ainda não haviam sido cobertas pela investigação cientifica como os fenômenos socioculturais tidos como “nacionais”; cabendo aos pesquisadores nacionais “a preocupação de precisar as nuanças “regionais”” (BORGES PEREIRA, 2001, p. 25). Bastide investiga os processos de interação social entre pretos e brancos macroscopicamente, enquanto Borges Pereira investiga microscopicamente; “tendo como núcleo as empresas radiofônicas de São Paulo” a qual “é vista como subexpressão da estrutura ocupacional bandeirante” [...] “vinculada simultaneamente a vários complexos socioculturais: lúdico-artísticos, econômico-publicitários, político, informativo etc.” (2001, p. 26). Bastide parece não prever com precisão no século passado as mudanças futuras na religião, típicas do século vindouro ou atual. Mesmo porque, segundo Borges Pereira os elementos sociais que dão conteúdo às religiões são expressões geográficas e históricas e estão sujeitas às mudanças ao perpassarem as fronteiras do tempo e do espaço. Enquanto Bastide se ocupa dos fenômenos tidos como nacionais, Borges Pereira observa mais as nuanças regionais; Borges distingue melhor a ambas.

No contexto da impressa pioneira, Bastide constata que o negro ou mulato se chocou, a um dado momento, com o preconceito, ou mesmo se sentiu intimidado em sua

relação com o branco, e assumiu certo puritanismo que fosse convincente para provar a sua bondade. A religião passa mais depressa por mudanças, tanto pelo avanço tecnológico quanto porque está se misturando com as questões sociais e políticas. Bastide observa que o negro ascende à imprensa e luta contra a própria tradição em nome da depuração dos costumes e da valorização da religião primitiva, propondo o regresso às origens mais remotas e considerando a Umbanda como a expressão dessa depuração e valorização. Bastide afirma que a “Umbanda procura suas raízes na Índia ou no Egito”; mas considera uma ilusão tal racionalização. Afirma que, “a depuração não é uma descoberta do passado, mas uma adaptação do presente.” Logo, ela consiste em uma dupla seleção: primeiramente, uma seleção: “na religião primitiva daquilo que possa recordar como a ciência e a moral de hoje (daí a rejeição dos sacrifícios sangrentos, das longas iniciações, da tatuagem e da feitiçaria)”. E, igualmente seleção: “na moral e na ciência contemporânea, daquilo que possa entrar em contato, assim mesmo, com os fundamentos da religião primitiva” (BASTIDE, 1971, p. 468). O que se pressupõe ciência na Umbanda, não é outra coisa senão o ocultismo; não trata senão do empirismo positivista da doutrina espirita; da comunicação com os espíritos e da ética, enfim, o mito do “bom negro”.

Bastide justifica assim o surgimento da religião de Umbanda: é fato inegável que “o homem de cor instruído não vê outra razão para o seu baixo nível de vida e sua situação inferior que não seja a existência do preconceito que o aniquila.” (1971, p. 423). De uma perspectiva marxista, “a religião é o suspiro da criatura acabrunhada pela desgraça”, e, pode produzir: “a expressão da miséria real” e “o protesto contra essa própria miséria” (Marx, Karl, Apud., Bastide, R. 1971, p. 9). Logo, o ressentimento que não pôde leva-lo a revolta contra si ou contra os outros, vai se traduzir nas realizações políticas e nas manifestações religiosas urbanas. Bastide registra:

É primeiro na imprensa e na organização de grupos de interesses raciais que vamos encontrar a manifestação das ideologias negras. Poder-se-ia distinguir aqui três períodos bem diferentes: no primeiro, os jornalistas negros escrevem nos jornais dos brancos, ou, se eles próprios são diretores de jornais, a exemplo de Patrocínio, franqueiam jornais seus jornais aos brancos; é o período de comunhão; a luta não segue a linha da cor, mas a linha dos partidos políticos. Os negros acabarão, entretanto, dando-se conta de que os políticos os enganam após terem se servido de seus sufrágios para chegar ao poder; vai haver um novo período, o do enquistamento ou da formação de grupos de defesa dos homens de cor. (BASTIDE, 1971, p. 423).

Depois de 1920 a guerra divulgando as ideias de liberdade e fraternidade despertou as aspirações da classe de cor que já não aceita a sua condição inferior na escala social. Então se cria a Frente Negra, depois publicando um jornal polêmico, A Voz da Raça, mas a frente e seu jornal sucumbiam, juntamente com a supressão dos partidos políticos, à ditadura de Getúlio Vargas. (BASTIDE, 1971, pp. 423-424). Os primeiros jornais de negros foram mais literários do que políticos, e mais sociais do que de reivindicação, e vão se transformando pouco a pouco em órgãos de combate. Bastide viveu no Brasil estudando o negro e as religiões africanas o suficiente para afirmar que numa democracia racial o negro é um homem “esquartejado”: Esquartejado entre a revolta contra o branco que tende a rejeitar, e a revolta contra si mesmo que aumenta o sentimento de inferioridade. Esquartejado entre o protesto africano e a vontade de fundir-se pela miscigenação na grande massa branca. (1971, p. 224):

Esse esquartejamento se traduz por uma ideologia ambivalente, que agora trataremos de definir. É ela o reflexo das novas condições urbanas, que mistura contraditoriamente sua possibilidade de ascensão e o enquistamento do negro nos bairros mais miseráveis: é quando a democracia, a industrialização abrem possibilidades de liberação, que a correspondência do imigrante faz descer um pouco para baixo o homem de cor.

Borges Pereira observa que “o critério distribuidor do escravo foi juridicamente eliminado pela abolição, o mesmo não aconteceu com a mobilidade ecológica dos contingentes de cor.” (BORGES PEREIRA, 2001, p. 108). Agora sobre pressão de outros fatores peculiares de grupos de ex-escravos em situação de inferioridade social e cultural, a democracia racial “deixa franqueadas certas áreas, onde o peneiramento cabe, com prioridade, aos fatores extra-raciais.” (2001, p. 235). O que já assinalamos como “esquartejamento” (Bastide) ou “mutilação” (Borges Pereira) do negro. Borges Pereira (2001, p. 236) exemplifica:

Surgindo aqui e eclipsado ali, revigorada acolá e abrandada além, a linha de cor segmenta de maneira sui generis o campo sociocultural configurando uma realidade desordenada e desorientadora para aqueles que a vivem, o que levou um artista negro a confessar que “preto que sobe, vive como ‘barata tonta’, sem saber onde pisar; vive aos gomos, repartido em fatias”. Este quadro se torna ainda mais complexo e desafiador quando se detém no fator “racial” como condicionante do próprio acesso do indivíduo às posições sociais que lhe dêem os proventos econômicos necessários a ingressar no estilo de vida “superior” e nele permanecer.

Segundo Bastide, aqui “o mulato escapa à casta de cor e se volta contra o negro”. No Brasil57 diferentemente dos Estados Unidos, onde “o mulato faz parte dos negros” (BASTIDE, 1971, p. 424). Afirma que o mulato, mais que ao branco, alimenta contra seus irmãos os mais acirrados, os piores preconceitos58. Consequentemente, com o negro que ascende à imprensa se encontrará a ambivalência, também assinalada por Borges Pereira; talvez da obra de Bastide (1971, pp. 424-425):

Essa ambivalência, que faz com que o negro queira a um só tempo separar-se e identificar-se com o branco, nós a encontramos nos jornais de negros que, na identificar-seção de anúncios, publicam reclames de produtos de beleza para alisar cabelos encarapinhados, e ao lado publicam artigos contra esses mesmos produtos, que significam uma vontade de traição para com a raça. Que rejeitam o folclore tradicional como bárbaro na organização de sociedades de tênis ou outros divertimentos aristocráticos, e, no entanto, reclamam nas festas de Natal ou do Ano Novo quando se oferecem às crianças, não bonecas louras de olhos azuis, mas bonequinhos negros. De um lado, protesta-se contra a política do embranquecimento da raça, pois ela faz mercê do abandono da gente de cor, se esse protesto se traduz então na mais violenta xenofobia; chega-se mesmo a pedir aos negros que só se casem entre si, assinale-se o perigo da “cortejação” do branco que só quer por à perder as moças de cor, não elevá-las até o seu nível. De outro lado, considera-se que o amalgama de três etnias – a índia, a africana e a europeia – constitui a originalidade do Brasil, donde se chega, sobretudo com o apoio de Gilberto Freyre, a defender o “mulatismo”. É, porém mister observar que esse “mulatismo”, por um sutil jogo do inconsciente, se volta por sua vez contra a arianização do país; não só se verdadeiramente brasileiro quando se tem sangue negro nas veias; e o patriotismo determina, ainda aqui, pelo ódio ao estrangeiro; e a ambivalência continua.

De um jornal a outro, e de um ano a outro, narram “os altos feitos e as glórias dos heróis e dos santos de cor”. (BASTIDE, 1971, p. 425). Como observa Bastide, os jornais ou associações de negros servem a múltiplos propósitos, além da reivindicação.

57 Dados mais recentes do IBGE (2016) demonstram mudanças nesse quadro (https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2018/04/27/interna-brasil,676652/qual-e-a-Porc entagem-de-negros-na-populacao-do-brasil.shtml): dos 54,9% dos afrodescendentes (pretos e mulatos) 17,8 milhões se declararam negros (https://g1.globo.com/economia/noticia/populacao-que-se-declara-preta-cresce-149-no-brasil-em-4-anos-aponta-ibge.ghtml). 8,2% dos brasileiros se declaram negros, tendo crescido 14,9 % a autodeclaração de negritude nos últimos quatro anos (2012-2016).

58 Dados recentes do IBGE demonstram mudanças nesse quadro: dos 54,9% dos afrodescendentes (negros e mulatos), 17,8 milhões de pessoas se autodeclaram negros. 8,2% do total dos brasileiros, tendo crescido 14,9% do Brasil em 4 anos.

Valoriza o negro, a fim de fazê-lo perder o complexo de inferioridade que lhe serve de obstáculo, o que acredito que seja obstáculo ainda maior do que o preconceito racial. As publicações dos jornais negros criam:

um tempo afro-brasileiro medido por uma serie de comemorações, um tempo histórico negro, que sem duvida se enquadra no tempo histórico brasileiro, mas que não deixa de ter sua própria temporalidade, como corrente que corre num rio mais vasto, sem que suas aguas se misturem. Tempo que não é apenas cronológico, mas afetivo, sentimental, com suas recordações de sofrimentos passados, suas paginas brilhantes de esperança, seus momentos de cólera ou de admiração; os feitos de uma raça. Razão por que essas biografias ou esses fragmentos de história pouco se incomodam com a verdade objetiva; são lendas ou mitos de formação, pois somente a lenda possui um valor dinâmico de ação. Trata-se, sempre, de dar confiança ao negro, lembrando-lhe um passado glorioso, pois a lição que dai se desprende é a de que o negro pode “evoluir” e igualar o branco. (BASTIDE, 1971, p. 425)