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O mito africano da criação e o culto dos orixás

CAPÍTULO 1 – OS DEUSES E HERÓIS MITOLÓGICOS

1.4. O mito africano da criação e o culto dos orixás

A despeito da teoria da secularização que prenunciava a diminuição ou o fim da religião devido à quebra do monopólio religioso, a situação pluralista atual, o avanço tecnológico e todas as demais transformações sociais da era moderna, as religiões continuaram resistindo e cada vez mais ressurgindo novas formas de religião e religiosidade; consequentemente, ressurgiram velhos mitos ou surgirão ainda mitos novos. As canções, os símbolos, as imagens e as cores trazem de novo o mundo encantado dos deuses e heróis mitológicos.

A Umbanda apresenta numa versão nova das antigas tradições religiosas; está ligada à ressurgência do mundo encantado dos deuses e dos heróis mitológicos. É uma religião de matriz africana, naturalmente sincrética, que mistura tradições afro-brasileiras, ameríndias, espiritas, exotéricas e luso-católicas. Antes de investigarmos suas origens vamos conhecer um pouco mais dos mitos e crenças africanas que influenciaram com outras religiões o culto umbandista.

De uma perspectiva culturalista e estruturalista os mitos são representações sociais e simbolizam as instituições e as estruturas organizadas destas sociedades; são provenientes do inconsciente coletivo das sociedades. O mito dos deuses e heróis pertencentes a antigas tradições, de povos supostamente sem escrita, como já vimos, foi transmitido pela tradição oral, e, hoje, pode, principalmente, ser analisado nas obras que descrevem os mitos da antiguidade, fruto do trabalho realizado pelos arqueólogos, etnógrafos, antropólogos e historiadores.

O mito africano aqui descrito não apresenta a criação do nada, mas como um ato divino de criar transformando algo existente, pondo em ordem o caos do mundo e tornando o mundo habitável.

As semelhanças entre as narrativas, contendo uma Era de Ouro no começo e/ou no fim da história do mito, um Conflito Primordial, os elementos míticos tais como o caos ou o pântano, o barro primordial, o ato criativo reproduzindo na terra a semelhança da vida no céu onde os deuses vivem em paz e segurança são representações sociais do desejo de se constituir a ordem social e construir um mundo habitável e propicio à vida segura e a paz.

Não devemos descartar também a possibilidade de memórias comuns herdadas do sincretismo religioso brasileiro, no qual ainda nos aprofundaremos. Além daquelas variações recorrentes em todas as religiões. Antes de ler as histórias do mito da criação, no resumo da trilogia da criação de Franchini é importante destacar sua apresentação na orelha do livro:

Uma das manifestações mais antigas do pensamento humano, a mitologia dos povos negros surgiu em tempos imemoriais no grande continente africano e persiste viva, ainda hoje, nas lendas relativas aos seus deuses e heróis. Tão marcantes, na verdade, são essas divindades – compondo um panteão curioso e diversificado como o da mitologia grega –, que continuam a ser cultuadas pelos devotos das mais diversas religiões africanistas.

Segundo Larry A. Nichols, que escreve com George A. Mather: Dicionário de Religiões, Crenças e Ocultismo, “Olorum, também chamado de Olodumaré” (NICHOLS,

2000, p. 343) é nome do Deus supremo na tradição Iorubá. Os homens sabem pouco e

divergem muito a seu respeito. Franchini conta que foi Oxalá24 quem recebeu de Olorum25 a maravilhosa incumbência de criar a terra:

Oxalá – também conhecido como Obatalá, é o orixá da procriação, o mais respeitado de todos os orixás, por ser considerado, segundo alguns Ita Ifá, o pai de todos os outros orixás e de todos os humanos (o mais comum). Ele é apresentado sob duas formas: jovem, como o nome de Oxaguiã, e idoso, com o nome de Oxalufã. Na primeira forma seu símbolo é uma espada

24 “OXALÁ: Divindade do Céu e da procriação, nome brasileiro de Obtala”. (BASTIDE, 1971, p. 564). 25 “OLORUM: O deus supremo dos ioruba.” (1971, p. 564).

e um escudo; na segunda, um cajado de alumínio com enfeites. É descrito como pai austero, equilibrado, sábio e tolerante. Seus sacrifícios: cabra, caracol, galinha, pato e pomba. É sincretizado com Jesus Cristo, por ser o filho do Deus supremo, Olorum. (2000, p. 349)

No mito da criação na tradição africanista Oxalá recebeu a missão de criar o mundo, no entanto, foi Odudua, “divindade feminina da criação de toda matéria, origem da vida. Senhora do universo” que criou a terra no lugar de Oxalá. Porque, segundo Franchini, “Oxalá se embebedou com o vinho de uma palmeira” e Odudua reclamou para si cumprir essa missão: “Agora podemos ver o novo encarregado de criar a terra rumando feliz para o seu objetivo.” (FRANCHINI, 2008, p. 117).

No mito africano o ato de criar o mundo foi realizado em um ritual mágico, a partir de elementos pré-existentes. Segundo Paula Montero descreve um aspecto da magia: “Colocar elementos diferentes numa mesma classe e estabelecer algum princípio de congruência, é introduzir um princípio de ordem no universo”. (MONTERO, 1986, p. 51). Afirma que Frazer considera a magia mais perto da ciência do que a religião, apesar de considerá-la “irmã bastarda da ciência” (1986, p. 52), a explicação da criação mítica pela magia assume contornos de uma resposta científica para a origem do mundo.

Na mitologia africana Olorum é inacessível; somente os deuses se relacionam com ele. Segundo Nichols, “na teogonia dos Bantos e dos Iorubas” existe um deus supremo inacessível e outros deuses menores que são mais próximos dos homens, como nas mitologias de outros povos da antiguidade, como os gregos e romanos:

O Ser Supremo é inacessível aos seres humanos (veja Olorum e Zambi). Por isso, existem os Orixás (Vodus, entre os Jejês), que seriam seres que lidariam diretamente com os homens, causando lhes mal ou bem, dependendo do relacionamento com os mesmos; quem obedece recebe o bem, quem desobedece é castigado. Os Orixás estão subordinados diretamente ao Deus Supremo, e dele recebem sua energia e comissionamento. São os habitantes (ara) do mundo de Orum (o plano espiritual), que detêm o Axé. De acordo com alguns Itã Ifá iorubanos, os orixás já teriam vivido aqui na terra, no plano material (aié); foram homens e mulheres que, devido a sua vida exemplar na terra, foram elevados à categoria de orixás, quando deveriam tornar-se verdade, Eguns (antepassados humanos falecidos). Haviam sido grandes reis, rainhas, guerreiros, etc.; em outras palavras, tratar-se-iam de heróis

divinizados. Paralelamente a isso, os orixás também são associados às forças da natureza, bem como a todas as atividades essenciais à subsistência do gênero humano. Mantendo-se as duas posições, teremos um culto prestado ao mesmo tempo às forças da natureza e aos ancestrais divinizados (não confundir com eguns, que seriam ancestrais particulares de cada família, antepassados humanos, sem status de divindade). Não se pode precisar o número de orixás cultuados pelas diversas tradições africanas que vieram para o Brasil. Os números fornecidos são discrepantes, variando de 500 a 600. Sabe-se, contudo, que a grande maioria é desconhecida no Brasil. O número não passa de 25 nos terreiros mais fiéis às tradições africanas. Normalmente, o Candomblé cultua em torno de 12; a Umbanda popular, 10 e a exotérica, 7. Há sérias duvidas também no que diz respeito às suas características. Cada nação apresenta sua versão. (NICHOLS, 2000, p. 345-346).

Nichols cita ainda os orixás mais conhecidos: Ogum26, orixá dos ferreiros e das guerras; Oxóssi, orixá dos caçadores; Oxumaré27, orixá da chuva e o próprio arco-íris; Omulu28, também chamado de Obaluaiê29, orixá da varíola e das doenças contagiosas; Nana Buruku30 ou Nanã, é mãe de Omulu, a orixá idosa, a mais antiga dos orixás das águas; também é associada à Omulu, à doença e à morte, bem como à fertilidade; Iemanjá31, orixá das águas salgadas, a mais conhecida e cultuada, considerada a mãe de todos os orixás; Xangô32, orixá do trovão, das tempestades e raios; Iansã, também

26 “OGUM: Divindade ioruba do ferro, dos ferreiros, dos guerreiros, dos agricultores e, em geral, de todos quantos utilizam o ferro.” (BASTIDE, 1971, p. 564).

27 “OXUMARÊ: Divindade de origem daomeana, aceita pelos iorubas, do Arco-íris, simbolizado pela serpente.” (1971, p. 564).

28 “OMULU OU OMULON: Divindade da varíola e das doenças em geral.” (1971, p. 564).

29 “OBALUAIÊ OU OBALUAIÊ: Nome do deus ioruba da varíola (sob sua forma de jovem).” (1971, p. 555).

30 “NANABURUCU ou NANÁ: Deus conhecido e adorado na Nigéria, Daomei, Togo, Costa de Ouro, NoTogo, Deus supremo. Em certas partes da Nigéria, a mãe de Omulu, todavia conservando o seu caráter de criadora. No Brasil, é com frequência chamada abreviadamente de Nanã.” (BASTIDE, 1971, p. 563). 31 Yemanjá ou Iemanjá ou Emanjá: Deusa ioruba do Mar.

32 O deus Shangô, o deus do trovão ieruba, também é apresentado na forma Aganju (1971, p. 555). Outros sentidos da palavra “xangô” ou “Shangô” (1960, pp. 566: O lugar e o conjunto das cerimônias religiosas

conhecida como Oiá, orixá dos ventos e das tempestades, dividindo a tarefa com Xangô, o seu marido; Oxum33, orixá das águas doces, do ouro, do amor e da fertilidade; Oxalá, já citado, com as características descritas por Nichols, e, Ossaim34 (ou Ossãe) é o orixá da flora medicinal, conhecido como amigo de Oxossi35, que também vive na floresta. (NICHOLS, 2000, p. 348-349)

O culto dos orixás é celebrado nos terreiros de Umbanda e de Candomblé; sendo principalmente na Umbanda, encontrados os terreiros cruzados, onde o culto tem duas fases: o bem e mal. Denominados “cruzados” ou “traçados”, na Umbanda são os terreiros que tem mais conteúdo africano que conteúdo do espiritismo europeu. A ideia de um terreiro “cruzado” é que, ritual passa de Umbanda à Quimbanda, o que será melhor apresentado no capitulo 2, à meia noite. A melhor forma de se identificar um terreiro cruzado ainda é perguntando ao pai de santo, porque as “giras”, eventos dos terreiros, não apresentam sempre publicamente a linha adotada.

O culto dos orixás começa com a oferenda a Exu36, o mensageiro dos orixás, depois se tocam atabaques, sons, cantos e danças de invocação de cada um dos orixás. No auge do cerimonial litúrgico eles se apossam de seus cavalos. “Isso lhes proporcionam o recebimento do axé37”. No Candomblé o ritual termina com uma refeição comunitária. (Ibid., 2000, p. 349). Apesar do movimento contra o sincretismo religioso liderando pelo grupo do Candomblé, a Umbanda é o maior grupo que preserva os Cultos Afro-brasileiros.

africanas em Pernambuco e Alagoas. Xangô-Reisado-Baixo:palavra a palavra, “Xangô rogado em voz baixa”, designa as cerimônias africanas não acompanhadas de instrumentos de música e celebradas durante as perseguições policiais. (1971, p. 567).

33 “OXUM: Deusa ioruba do rio Oxum. Segunda mulher de Shangô. Assume diversas formas, tais como Oxum-Panda, Oxum-Doco, etc.” (1971, p. 564).

34 “OSAINA OU OSSAIM OU OSSANHE: Divindade ioruba das ervas e das folhas.” (1971, p. 564). 35 “OXOCÊ: Deus ioruba dos caçadores.” (1971, p. 564).

36 “EXU: Mensageiro divino e espirito protetor”. (1971, p. 560).

37 “AXÉ: As forças místicas que podem se individualizar em certos objetos, razão por que o termo também serve para designar as preparações místicas colocadas nos fundamentos da casa do candomblé, bem como as plantas possuidoras de virtudes terapêuticas, etc.” (BASTIDE, 1971, p. 556).

Nichols afirma que a Umbanda é o que chamam de “produto nacional”, mas o Candomblé também é sincrético e nacional, e ambos os grupos preservam tradições que nos transmitem os mitos africanos. A Umbanda, sua história e ensinos, também são apresentados aqui resumidamente: “Nasceu no Estado do Rio de Janeiro, como mistura do Candomblé, Catolicismo Romano, religiosidade indígena, pajelança, culto afro-islâmico e espiritismo, além de doses de ocultismo e esoterismo, sobretudo da Cabala

judaica”. (NICHOLS, 2000, p. 471-472). Logo, a Umbanda é um complexo sincretismo

que, reúne todas as tradições dos antigos egípcios e dos babilônios mescladas com a Bíblia interpretada pela Cabala judaica, por escritos ocultistas o pelo espiritismo de Allan Kardec. Segundo Nichols, na Umbanda é imprescindível um período de aconselhamento como também acontece no cerimonial litúrgico do Candomblé com menor ênfase (2000, p. 349). A Umbanda é tão sincrética quanto diversificada: “Há dois tipos de Umbanda: a popular e a esotérica. Outros apontam a Quimbanda como um terceiro tipo” [...] “Tudo isso formaria a Grande Religião Universal: a Umbanda, que os seguidores da linha esotérica chamam de Aumbandã.” (2000, p. 471).

Investigando os mistérios da Umbanda em busca do Mito Africano da Criação encontramos em seu ensino “um Ser Supremo, Zambi, potência geradora de todo o universo, que pode ser cultuado com outros nomes, dado o caráter sincrético da Umbanda” (Ibid., 2000, p. 471). Corresponde ao Olorum, do Candomblé, pois, também, os Umbandistas não podem se relacionar com o Deus Supremo diretamente. Necessitam das entidades, Orixás e Guias Espirituais, Devas e os Elementais dispostos hierarquicamente em planos e sub-planos. Nos quais, os orixás comandam as Sete Linhas na qual o mundo espiritual está dividido; estas linhas por sua vez se subdividem em Falanges. A ligação dos homens com o mundo espiritual acontece pela prática da Mediunidade.

Na Umbanda o homem é considerado a síntese do universo. Mas, também se advoga a existência de seres extraterrestres que habitam outros mundos em diferentes graus de evolução. A salvação na Umbanda também reflete os conceitos kadercistas de vida após a morte, reencarnação e evolução espiritual. A Umbanda se afirma como religião natural, seus rituais e ensinos exaltam a natureza, da qual se extrai a cura, tanto física quanto espiritual, através da manipulação mágica dos quatro elementos primordiais (o ar, a água, a terra e o fogo).

Zambi é o Deus Supremo criador, mas a Umbanda não busca um relato de consenso do mito da criação. Como na antiguidade grega, Gaia: a Terra é a mãe natureza que mantém uma continua rearmonização produzindo o resultado de melhora da vida terrena e “uma religação com o Criador, Zambi”. (Ibid., p. 471-472).

Retornemos à mitologia africana do Candomblé e da Tradição Iorubá que nos fornece o mito africano da Criação. Franchini narra três contos que, segundo ele, podem ser chamados de “trilogia da criação”, “uma das tantas e divertidas tentativas da imaginação africana para tentar explicar a Criação” (FRANCHINI, 2008, p. 114). Os três serão apresentados juntos.

Contém a narrativa de um conflito primordial entre Oxalá, Exu e Odudua. O tempo em que a terra foi criada era descrito como “uma época em que só existiam o céu (Orum) e os deuses (orixás)”. Olorum mandou chamar Oxalá, o mais criativo dos deuses para criar outro plano além do celestial. Com uma concha cheia de terra que Oxalá recebeu de Olorum, o Deus Supremo que, também lhe deu “uma pomba” e “uma galinha” gigantesca para ciscar a terra que deveria ser espalhada sobre “o gigantesco pântano” que cobria a terra informe. (Ibid., 2008, p. 114-115).

Odudua, deus da terra, ficou amargurado de inveja da tarefa dada a Oxalá. A aparição de Exu, que é o deus mensageiro, guardião dos limites e das encruzilhadas, no relato do mito intercepta Oxalá, não lhe dando passagem, exigindo-lhe a galinha e a pomba gigantes como oferenda. Oxalá se recusou fazer a oferenda e lutou com Exu, sentindo sede se deparou com uma palmeira e dela tirou uma bebida, bebeu e dormiu embriagado. Vendo Odudua que Oxalá se embriagou tirou dele a concha de terra, foi até Olorum e acusou Oxalá de negligenciar a sua missão; dizendo: “Se a ordem que recebeu foi a de dormir embriagado ao pé de uma palmeira, asseguro-lhe, grande pai, que está cumprindo exemplarmente!” (2008, p. 116).

Vendo Olorum que a terra estava em posse de Odudua, passou a ele a missão que antes dera a Oxalá. Assim Oxalá perdeu a chance de criar a terra. Franchini escreve que, “Odudua saiu-se bem” em sua missão (Ibid., 2008, p. 117). Disse Odudua: “o deus supremo anda bem em tudo o que faz”. [...] “As aves haviam recebido ordens de não espalharem o terreno, a fim de não converterem a Terra num tédio geográfico” (Ibid., p. 118). Ainda não haviam sido criadas a flora e a fauna do lugar, então, Olorum, lembrou-se de Oxalá que, ainda dormia, e que não pretendia puni-lo eternamente. Dislembrou-se a Odudua

que daria a Oxalá o encargo de popular a Terra, o que reascendeu novamente a inveja do deus da terra (Ibid., p. 119).

Segundo a Mitologia Africana Oxalá fracassou em criar a terra e Odudua o substituiu com um feliz resultado. Como Olorum é um deus tolerante, honrou-o com a missão de criar os seres humanos. Oxalá disse: “Sendo a terra uma cópia do céu, farei de suas habitantes cópias quase perfeitas dos deuses!” (Ibid., p. 120). Oxalá, “graças ao auxilio de Nanã-Burucu – a deusa do lodo dos fundos dos rios e dos lagos –, conseguiu criar do barro o primeiro homem (epopéia criativa narrada em detalhes no conto “Nanã Burucu e o barro primordial”, que anda pelo começo do livro). Oxalá tinha nas mãos, enfim o primeiro protótipo humano.” Admirou-se diante da “criatura toda preta como os deuses”. Fez-lhe, também, uma parceira: “assim como há deuses e deusas” (Ibid., p. 121).

Oxalá continuava a criar porque ainda não havia feito eles se reproduzirem. Sentiu sede, mas resistia, lembrando o fatídico vinho do conflito com Exu. Temia decepcionar Olorum mais uma vez. Não resistindo voltou a palmeira e se embriagou novamente, mas voltou à sua ocupação antes que o sono pudesse vencê-lo. Fazendo alguns homens muito grandes e outros pequenos demais, algumas mulheres com seios pequenos e outras com seios grandes demais; e, “um grande exercito de deficientes físicos que só não povoou o planeta inteiro porque o deus, exausto, adormecera outra vez.” (Ibid., p. 122).

Ao acordar Oxalá ficou entristecido com o seu desastroso trabalho tomando na mão um dos gêmeos siameses que havia criado. Oxalá ainda estava preocupado em não ser flagrado pelo rival, Odudua. Tomando os mais perfeitos seres humanos foi mostrar para Olorum, sem querer assumir a autoria dos seres defeituosos. Quando Oxalá chegou à presença do deus supremo, e, lá estava Odudua apresentando os exemplares das suas “piores criaturas”. Perguntou Olorum: “São esses os seres que irão povoar o Aiê?” Apesar de Olorum não ter ficado satisfeito com os seres defeituosos, quando após Oxalá lhe mostrou os exemplares perfeitos “viu a ira de Olorum decrescer consideravelmente”. Olorum proibiu Oxalá de beber vinho e ordenou que ele se tornasse o protetor de todas as pessoas que nascessem com deformidades. Assim Franchini termina “a trilogia da criação”. (Ibid., p. 123).

Os seres humanos foram feitos do barro primordial e receberam o espírito ou sopro de Deus em suas narinas, assim como relata a Bíblia Sagrada. Enquanto no mito

grego a Terra ou Gaia é a mãe dos deuses que criaram os homens. Segundo a mitologia africana o homem é criado do barro primordial assim como no Genesis; e na mitologia grega a mãe da humanidade é a Gaia, a terra. Gaia, a deusa Terra; corresponde à Odudua38 na mitologia Iorubá: Candomblé39. (BASTIDE, p. 567). Na mitologia africana os deuses foram gerados de suas mães divinas, e, por sua vez, criaram os seres humanos do barro primordial.

Durkheim identificou nas religiões totêmicas as representações sociais, tomando o caso primitivo como simples para se compreender os complexos, com destaque à utilização da classificação binária (luz e trevas, bem e mal, Deus e demônio, saúde e doença) em seu livro As Formas Elementares de Vida Religiosa. Os relatos da criação do mundo nas diversas tradições são representação de uma reorganização do caos, coincidindo da formação dos seres humanos a partir do barro primordial e a correlação dos eventos primordiais com um conflito cósmico.

Durkheim afirma que, “o homem não está em relação apenas com o meio físico, mas também com o meio social infinitamente mais extenso, mais estável e mais ativo do que aquele de que os animais sofrem influência. Para viver, é necessário, portanto, que se adapte a ele” (DURKHEIM, 2008, pp. 99-100). As interpenetrações das civilizações contribuem para a construção e assimilação comum de sistemas de crenças estruturalmente muito semelhantes, assim como as sociedades têm semelhantes estruturas sociais as quais são representadas na religião. Aqui se conclui que o homem não está imune às transformações sofridas na natureza, sofre as consequências dos conflitos e as influências das ações dos seus superiores. A vida em comum do grupo social em função do meio material se prolonga em representações coletivas.

38 “ODUDUA: Deusa-terra ioruba, conselheiro de Obatalá.” (BASTIDE, 1971, p. 564) “OBATALÁ: Deus ioruba do céu, criador.” (1971, p. 563).

39 “CANDOMBLÉ: 1.º – Designa a um tempo a religião dos negros da Bahia, as grandes festas dadas pelos Orixás, e os santuários onde se celebram tais festas; 2.º – No sul do Brasil, no Uruguai e na Argentina, as danças profanas dos negros.” Já o “CANDOMBLÉ DE CABOCLO: Culto sincrético afro-ameríndio.” (1971, p. 558).