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2. RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA ATUALIZADOS

2.3. A EVOCAÇÃO DO PASSADO EM GALILEIA: reconstituindo rastros,

As histórias, em Galileia, são costuradas pelo fio de memória que os primos Davi, Ismael e Adonias conduzem, quando fazem o caminho de volta ao passado, marcados pelas influências do presente. A memória, no romance, estabelece uma relação de tensão, ao confrontar e atualizar os valores estabelecidos pela tradição regionalista em contato com a modernidade, ou seja, tem a função de reinterpretar as lembranças fragmentadas dos personagens, reconstituindo rastros e ressignificando resíduos das experiências pretéritas dos Rego Castro a partir das vivências atuais. Os conflitos familiares, bem como seus mistérios e segredos são ressuscitados, assim, pelas lembranças dos personagens, herdeiros dos fantasmas e das ruínas da Galileia.

Os rastros, restos, vestígios, resíduos que reconstitui o painel regional, no romance Galileia, evidenciam-se a partir de uma movimentação dinâmica que consiste em aparecer, desaparecer e reaparecer. Os conflitos se constroem a partir da visão subjetiva de quem transita numa via de mão dupla entre experienciar e narrar, e através da ―dialética de presença, ausência e distância‖ (RICOEUR, 2008, p. 435). Essa dialética explica-se através da recordação, que compreende o esforço de transformar a lembrança em ―lembrança-imagem‖, resultando na recolocação do passado no presente, ao mesmo tempo. Para que uma imagem ressurja, ela precisa significar, ou ressignificar-se, no contexto novo. Mantem-se sua carga semântica mais contundente e adapta-se o que sobrou àquilo que se deseja, preenchendo as lacunas de sentido possíveis. Como expõe Paul Ricoeur, em A memória, a história e

o esquecimento (2008, p. 441):

Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. Reencontrá-la é presumi-la principalmente disponível, se não acessível. Disponível como à espera de recordação, mas não ao alcance da mão [...] Cabe assim à experiência do reconhecimento remeter a um estado de

latência da lembrança da impressão primeira cuja imagem teve de se construir ao mesmo tempo em que a afecção originária.

Nesse sentido, o rastro ou resíduo cultural funcionam como uma espécie de elementos-chave, sem os quais não se teria ―acesso‖ às lembranças ―disponíveis‖ na memória humana, sugerindo a dialética da ―ausência na presença‖, conforme a caracterização que Benjamin (2006) institui sobre o rastro . O retorno a Galileia, faz com que Adonias ―reencontre‖ rastros e resíduos de valores tradicionais adquiridos no passado que não faziam sentido no seu novo estilo de vida e que, mesmo assim, permaneceram impregnados nas paredes de sua memória:

Meu pai exigia que eu memorizasse as plantas da caatinga, por mais insignificantes que me parecessem. Eu recitava os nomes, mas era incapaz de reconhecer as árvores. [...] Recitei os nomes com orgulho da memória, e depois recaí na tristeza. O meu conhecimento me parecia inútil. Nunca o usei em nada. Atravesso os sertões vislumbrando sombras negras, os restos vegetais dessa memória. Carreguei esses nomes como se fossem fantasmas, sentindo-me culpado se os esquecia. Eles eram para mim como mourões dos currais arruinados, sem uso desde que se esvaziaram de vacas e touros; troncos solitários, teimando em ficar de pé no planalto sem pastagens, sem rebanhos, sem gente.‖ ( BRITO, 2008, p.12)

Por mais que o personagem não visse utilidade no conhecimento das ―plantas da caatinga‖, elas fincaram raízes em sua mente na condição de rastro de suas próprias raízes. Como vegetação típica do sertão, que resiste à secura da terra, essa lembrança ―teima em ficar de pé‖, ainda que o narrador não a regue, por considera-la ―insignificante‖, mas, ela permanecia ali para lembrar suas origens. Durante a viagem, Adonias lembra-se também dos nomes dos pássaros: ―– Estava me distraindo com os nomes dos pássaros daqui. Lembro de muitos, mas sou incapaz de reconhecer uma plumagem, um canto, um ninho. É outra memória inútil, guardada não sei para quê.‖ (BRITO, 2009, p. 15-16); e dos nomes dos ventos do sertão: ―Lembro os nomes dos ventos: Terral, Aracati, Nordeste, Graviúna.‖ (BRITO, 2009, p. 18). Enfim, por mais que Adonias se infiltrasse no contexto de vida moderna das grandes cidades, onde essas memórias não faziam sentido, ―sentia-se culpado se as esquecesse‖, porque significava esquecer suas referências. Logo, esta mesma memória é composta por duas faces inseparáveis: lembrança e esquecimento. Essa situação caótica se dá em espaços em simbiose com outros espaços, que incorporam valores e relações sociais díspares, advindos de tempos diferentes,

tradicionais e modernos. Assim, o personagem transita entre a ―presença‖ e a ―ausência‖ de referenciais culturais que se misturam e se confrontam ao mesmo tempo, tentando (re)encontrar sentido no ambiente da Galileia. Porém, o conflito de Adonias consiste nos ―fantasmas‖ que a lembrança desse cenário desperta. ―As sombras negras, restos vegetais dessa memória‖ não são capazes de preencher as lacunas dos eventos traumáticos que o narrador não viveu, mas ouviu falar. É como se Adonias não conseguisse ir além da vegetação que encobriu a violência contra Davi, por exemplo, e os silêncios e esquecimentos em torno dos segredos da família Rego Castro:

Observo as carnaúbas, esguias como o corpo do primo Davi, e revejo a tarde dolorosa, ele fugindo nu, coberto apenas por uma camisa branca, o sexo à mostra, o sangue escorrendo pelas pernas. Sinto a náusea de sempre, o pavor de não compreender nada, mesmo depois de anos de psicanálise. Desejo voltar, acelero o carro, recuo na poltrona. Retorno mais uma vez ao passado, à tarde em que tudo aconteceu. Os olhos congelados nas imagens de uma câmera fixa, um trailer de quinze ou vinte minutos.

Vou sair no meio do filme. Não quero prosseguir. (BRITO, 2008, p.7-8)

Nessa situação, a lembrança de Adonias em relação a flora sertaneja, transforma as ―carnaúbas‖ em rastro, ou seja, uma pista para a memória acionar um conflito familiar que merece revisão no presente. A lembrança dessa cena aparece diversas vezes durante a narrativa, como uma espécie de resgate e resistência ao esquecimento. A partir dos elementos regionais (vegetação, pássaros, vento) que Adonias armazenou na memória, é possível que ele imagine, lembre e interprete o que passou através dos mesmos estímulos. O passado presentifica-se nos rastros da memória que reconstitui um fato diante de um resíduo, vestígio que evoca um tempo anterior. Portanto, a lembrança é a sobrevivência do passado, um elo entre o ontem e o hoje estabelecido por um resíduo ou rastro. Segundo Ecléa Bosi:

A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, interfere no processo atual das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ―desloca‖ estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (1994, p. 9)

Adonias percebe que a sua memória passa pelas ―percepções imediatas‖ dos seus sentidos, despertando a ―náusea de sempre‖. Suas lembranças, quando acionadas, fazem disparar emoções negativas, por isso prefere esquecer. A memória emerge não como um filme completo, mas como um trailer, repleto de lacunas, esquecimentos e interpretações parciais, apenas, pois a memória é, a um só tempo, ―oculta e invasora‖. A capacidade de conservar os fatos na memória e acessá-los não é um exercício prazeroso para ele. Considera uma habilidade que carrega o peso de todo o drama familiar que desloca o personagem e o transporta para um passado que o aprisiona, sem permitir que ele ocupe um lugar definido nem no espaço que recorda, nem no espaço que habita. Adonias, narrador em Galileia, também é membro da família Rego Castro, personagem da história e também testemunha dela, entretanto, não tem acesso às lembranças e às emoções dos demais componentes desta família sertaneja e conhece superficialmente os fatos passados que narra, pois alguns deles o antecedem na família, ou pertencem aos segredos familiares abafados por gerações e guardados em ―baús que não arejam nunca, por mais que debandemos em busca de outros mundos civilizados‖ (BRITO, 2008, p.9). Significa que Adonias narra a partir de suas impressões, deduções e interpretações dos acontecimentos, demonstrando uma compreensão limitada dos conflitos familiares. Escapa a esse narrador o poder da onisciência, restringindo-se, por conseguinte, às suas percepções.

O esquecimento é uma condição para que o exercício da memória se estabeleça. É o mecanismo pelo qual percebemos o poder de ―perseverança da lembrança‖, enquanto o esquecimento tenta subtrair ―à vigilância da consciência‖ (RICOEUR, 2008). Ele é aquilo que escapa à tentativa da memória humana de reter todas as coisas, constituindo um processo de eliminação natural de informações dos eventos passados que ganharam maior relevância quando recuperados pela memória. Nesse entendimento, o esquecimento ganha potência positiva, é onde se busca a lembrança. Para Adonias, não esquecer torna-se enlouquecedor, como mostra o seguinte diálogo com Ismael:

– Que memória a sua, eu nem lembrava mais. – Eu não esqueço nada. Esse é meu castigo. – Eu queria ter sua memória, recordar tudo.

– Não queira. Ela cobra um preço alto. Esquecer é melhor. Eu pareço esquecer, mas tudo se guarda lá dentro e surge nos impulsos

descontrolados. Sou capaz de matar quando sinto raiva. (BRITO, 2008, p. 44)

Para armazenar novas informações, guardar novas experiências, a mente humana elimina arquivos antigos ou sem urgência significativa para que a memória não sobrecarregue nosso sistema emocional. Enquanto Ismael lamenta seus esquecimentos, Adonias sofre pelo excesso de memória. É um ―castigo‖ que resulta no desequilíbrio do personagem, culminando em ―impulsos descontrolados‖. Ao mesmo tempo que o narrador percebe a influência negativa de sua obsessão pelas lembranças do passado, esquecer, seria para ele, deixar escapar a necessidade que o personagem tem de encontrar o tempo e o espaço que melhor o identifica, pois encontra-se perdido entre o mundo que recorda do passado e o que vivencia no presente. Parece, portanto, que o personagem busca reviver esse processo para que encontre uma saída para a angústia que sente.

Parte desse sentimento é incitada pela incerteza sobre a morte do avô, motivo da viagem à Galileia. Raimundo Caetano está prestes a completar 85 anos, mas, Adonias, não sabe se, ao chegar à fazenda, encontrará uma celebração ou um velório. O conflito do personagem consiste na dúvida sobre o que ele irá festejar, caso o avô sobreviva e o que ele lamentará com a suposta morte dele, já que o patriarca representa suas ―origens‖. Dessa forma, o aniversário simbolizaria a resistência das raízes sertanejas, enquanto que, o falecimento seria a expressão do esquecimento dos ―laços tradicionais‖. Adonias, no entanto, reconhece que essa ruptura é impossível, a memória permanece, revisita o passado e o traz para atualidade, permeado pelas transformações que marcam o curso da história, diferentemente do que pensa Raimundo Caetano: ―– Morro, sou posto de lado e não atrapalho o avanço do tempo. / – Mas o tempo avançou, mesmo com o senhor vivo. Eu, Ismael, Elias e Davi somos a prova disso‖ (BRITO, 2008, p. 220).

O patriarca seria o elo entre a memória da tradição regionalista e o mundo moderno em que sua família está inserida. Sua sobrevivência impede o esquecimento, o apagamento dos rastros da cultura sertaneja que ele personifica e, que é, a um só tempo, revitalizada e atualizada em Galileia, bem como o que o livra da representação de um passado regional anacrônico. A narrativa imprime dois movimentos indissociáveis: o passado rememorado e o passado revitalizado pela ação do presente (modernização, tensões, pensamentos, reflexões de Adonias).

Porém, a ideia de que a morte de Raimundo Caetano abarcaria a morte dos valores que ele simboliza é desconstruída ao final do romance, uma vez que o avô, como afirma Adonias, não deseja morrer: ―O mundo reluz após vinte e um dias de chuva, tempo em que me encolhi indeciso, esperando que o avô morresse, mas ele não quis morrer. Preferiu continuar vivo, empestando o mundo com seu cheiro podre‖ (BRITO, 2008, p. 225).

De acordo com Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: lembrança de velhos (1994), enquanto a sociedade jovem se ocupa com o trabalho de produção exigido pelo acelerado ritmo de vida industrial moderno, o trabalho com a memória fica a cargo dos velhos. Embora haja uma desvalorização da velhice, por considerarem uma etapa de inutilidade diante da vida moderna, os velhos assumem uma outra função social muito importante: lembrar a memória da família, do grupo ou da sociedade da qual fizeram parte no passado e, constitui, hoje, as origens e raízes dos jovens do presente:

Há um momento em que o homem maduro deixa de ser um membro ativo na sociedade, deixa de ser um propulsor da vida presente em seu grupo: neste momento de velhice social, resta-lhe, no entanto, uma função própria: a de lembrar. A de ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade. (BOSI, 1994, p.63)

A função social de lembrar dada ao velho deve ser reconhecida como papel fundamental para a manutenção do elo entre o ontem e o hoje. Como o jovem encontra-se completamente absorvido pela intensidade do trabalho e pelos conflitos da vida moderna, cabe à experiência e à maturidade do velho o trabalho de reconstituir os rastros e ressignificar os resíduos do passado na atualidade, através da lembrança. Na interpretação de Medeiros (2013, p. 73), os idosos apresentam maior habilidade em lidar com a memória, ―pois atravessaram vários momentos históricos e vivenciaram o avanço das décadas, acompanhando a evolução do tempo e do pensamento. Para os idosos, o ato de rememorar, antes de uma atividade mental, é um exercício de viver‖. Em Galileia, Raimundo Caetano, como integrante das três gerações da família Rego Castro traz uma reserva de memória que dispõe da totalidade da experiência adquirida por esse grupo familiar, desempenhando, conforme Ecléa Bosi (1994) o papel de guardião da memória social da qual fez parte. Portanto, o patriarca é o testemunho vivo das ruínas

familiares e sociais do seu grupo, porém, o sertanejo se vale da memória pessoal atrelada ao testemunho de outros.

Durante toda a vida, Raimundo Caetano, representou a imagem de um exímio sertanejo e de um típico patriarca que concentrava o poder e o controle familiar em suas mãos. Agora, na iminência dos seus oitenta e cinco anos, uma outra imagem se constrói, contradizendo a primeira. Os papeis dos familiares nessa ordem patriarcal se invertem: é o chefe de família que passa a depender dos demais membros familiares. A debilidade física do sertanejo reflete a fragilidade do seu domínio, pois, ainda que ele mantenha a sua faculdade mental, a tomada de decisões não é mais incumbência sua. Os familiares adquirem liberdade, não só para controlar tudo na Galileia, como para revelar sentimentos de desprezo e ojeriza por Raimundo Caetano, já que ele não se encontra mais na condição de opressor. A figura de poder antes conhecida parece se apagar enquanto se produz uma outra lembrança do patriarca na memória dos Rego Castro. Esse apagamento pode ser percebido na forma como Adonias resume a história de vida do avô numa sequência de fragmentos como flashes, uma espécie de seleção de cenas mais afetivas, mas com lacunas significativas. A forma fragmentada como o neto rememora a vida do avô traz à superfície narrativa uma espécie de previsão de como a imagem de Raimundo Caetano logo se apagará da memória social, sem deixar vestígio:

Oitenta e cinco anos, Raimundo Caetano... Casou com dezenove... Maria Raquel com treze... Uma bela festa de aniversário... Dançaram três dias seguidos, no casamento... Maria Raquel bonita no vestido de noiva, o cabelo preto de índia... Esconderam o retrato depois que brigaram... Os filhos querem a festa... De braços dados os dois, olhando para a frente, um ramo de bogaris na mão direita... Sinto o cheiro das flores e lembro a avó bonita... Por que o amor se transforma em rancor?... Três anos na cadeira de rodas, dependendo dos outros... Jacó e Esaú limpam as escaras podres... Cheiro adocicado de flor... Jasmin, bogari... Festa ou enterro?... Enterro... as pernas não dançam mais... Melhor morrer... O avô dançou na festa de oitenta anos, parecia eterno... Joana sabe que ele morreu... Não quis me dizer, mas sabe... (BRITO, 2009, p. 79).

Adonias resume a vida do avô com recortes de cenas que sugerem a formação da família Rego Castro através do casamento com Maria Raquel, a manutenção do poder patriarcal enquanto Raimundo Caetano era capaz de ―dançar‖ e a decadência familiar durante os anos em que o patriarca passa ―na cadeira de rodas‖. As flores que enfeitaram a avó durante a festa de casamento no passado, agora, sinalizam a

fragilidade da vida e seu caráter temporário, ornamentando um cenário de ―enterro‖. Além disso, o ―cheiro adocicado de flor‖ amenizava o odor das ―escaras podres‖ do avô, que aos ―oitenta anos, parecia eterno‖, enquanto que, no presente, sobrevive como resíduo, deixando na memória rastros de uma família patriarcal em retalhos. Na concepção de LOTHAMMER (2019, p.94-95):

Partindo da idade atual de Raimundo Caetano, Adonias apresenta um alinhavo em que mistura eventos relevantes que promovem reuniões familiares: o casamento; as festas de aniversário; e o velório. Nesse alinhavo, são apresentados elementos significativos para os eventos passados sempre apreciados em comparação com a condição atual de Raimundo Caetano. A dança é um desses elementos. Por meio da dança, é perceptível a perda da mobilidade corporal de Raimundo Caetano que já foi capaz de movimentar o corpo com destreza, mas que agora perdera completamente essa capacidade. Um segundo elemento de relevância na lembrança de Adonias é o vestido de noiva de Maria Raquel. O vestido de noiva imprime a ideia do sonho do matrimônio para uma jovem, menina ainda, de treze anos de idade, sonho que se desfaz com o convívio matrimonial e que se percebe desfeito a partir das brigas conjugais. E as flores, como terceiro elemento. As flores, que são ornamentais, representam para o primeiro evento, o casamento, a beleza feminina. Mas elas veem marcar fortemente a síntese de Adonias que tem o sentido olfativo, sensorial, despertado. O perfume das flores na festa do casamento se transforma em cheiro, pontualizado no caráter adocicado que levam à carne que apodrece, anunciando o velório do avô. A lembrança de tais elementos suscita uma reflexão crítica desde a formação da família Rego Castro até a provável dissolução dela.

A imagem do patriarca que aos poucos desaparece da mente e da vida da personagem corrobora a certeza do desaparecimento futuro de Raimundo Caetano da vida da esposa, que já o rejeita, dos filhos e netos, que o abandonaram, por conseguinte, da sociedade; é uma demonstração da efemeridade da memória e da renovação dos quadros da rememoração. Raimundo Caetano, mais cedo do que tarde, desaparecerá da memória social como homem comum, pois os familiares em seguida pintarão outros quadros com fragmentos de outras memórias. Ecléa Bosi (1994) também reflete sobre esse tema:

Integrados em nossa geração, vivendo experiências que enriquecem a idade madura, dia virá em que as pessoas que pensam como nós irão se ausentando, até que poucas, bem poucas, ficarão para testemunhar nosso estilo de vida e pensamento. Os jovens nos olharão com estranheza, curiosidade; nossos valores mais caros lhes parecerão dissonantes e eles encontrarão em nós aquele olhar

desgarrado com que, às vezes, os velhos olham sem ver, buscando amparo em coisas distantes e ausentes (p.75).

Os idosos detêm, na memória, experiências profundas e amadurecidas do contexto histórico e cultural do qual estavam ―integrados‖. São o último reduto de preservação dos valores tradicionais e das referências sociais diante das transformações da sociedade moderna. São testemunhas de uma existência passada de uma geração anterior rica em conhecimentos e experiências que subsidiaram a formação da sociedade atual, evidenciando o elo entre o passado e o presente, o tradicional e o moderno. Porém, a memória dos velhos sofre uma ameaça ainda maior, de ordem biológica e caráter inevitável: a morte. Enquanto o estabelecimento de uma nova ordem social o desloca, tornando-o ―desgarrado‖ sem anular seu ―estilo de vida e pensamento‖, a morte, apaga-o juntamente com ―seus valores mais caros‖. No caso de Raimundo Caetano, sua sobrevivência associa-se à resistência da memória, lutando contra a passagem implacável do tempo. Configura-se como a testemunha das origens da família Rego Castro, do modo de vida tradicional marcado pelo patriarcalismo em constante processo de falência,