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2. RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA ATUALIZADOS

3.1. ISMAEL: o índio sertanejo estrangeiro

O retorno faz Adonias perceber que o seu lugar de origem (campo) não é mais o mesmo e que as experiências de vida que levou na cidade para a qual migrou também o transformou. Sem um ponto de referência que o identifique, o personagem transita entre os ambientes sem se reconhecer em nenhum lugar, o que o conduz a uma visão de mundo conflituosa e paradoxal, refletindo uma identidade fragmentada. Portanto, ―aqui ou lá me sinto estrangeiro‖, como uma espécie de ave de arribação num eterno voo migratório, sem pouso certo, uma ―ave cigana‖.

3.1. ISMAEL: o índio sertanejo estrangeiro

E ele será homem feroz, e a sua mão será contra todos, e a mão de todos contra ele; e habitará diante da face de todos os seus irmãos (Gênesis 16:12)

Ismael, meio-irmão de Davi e de Elias e primo de Adonias, é um filho ilegítimo. A obra anuncia que Ismael, filho de um Rego Castro, Natan, com uma índia Kanela, Maria Rodrigues, é um bastardo rejeitado pelo pai biológico: ―Natan não o reconheceu como filho.‖ (BRITO, 2008, p. 44). Mas, apesar de rejeitado pelo pai Natan, Ismael é acolhido na fazenda Galileia pelo avô, Raimundo Caetano, ―Ele mesmo escolhera o nome, e o registrara como seu filho legítimo e de Maria Rodrigues.‖ (BRITO, 2008, p. 95). Ismael é mais um neto batizado pelo avô Rego Castro, como relembra Adonias:

O avô trouxe você do Maranhão. Tio Natan remoía-se de ódio porque ele o registrou como filho. E eu não compreendia como você se tornaria irmão do próprio pai. O avô tentava me explicar. Você

passava fome com seu povo Kanela. Não estudava, não sabia ler ainda. Natan não o reconheceu como filho. Para ele, filhos eram Elias e Davi, do casamento com Marina. Você era um estorvo, fruto das brincadeiras com uma índia. Só isso. (BRITO, 2008, p.43-44)

O nome Ismael: palavra de origem hebraica que significa: Deus ouve ou Deus

ouvirá, nome Bíblico dado a um dos filhos de Abrãao, o proscrito. Deus prometeu

para Abraão que ele teria um filho, mas sua esposa Sara era estéril. Para cumprir a promessa de Deus ela decidiu entregar a sua serva Agar para o seu marido, assim ela seria sua segunda esposa e poderia gerar o seu herdeiro. De acordo com os costumes dessa época, isso era aceitável, para garantir sua descendência. Abraão tinha 86 anos quando Ismael nasceu e pensava que ele seria seu herdeiro. Mas Deus disse que o herdeiro seria o filho de Sara. Treze anos depois Sara engravidou e deu à luz Isaque, então ela pediu a Abraão que mandasse Ismael e sua mãe embora, porque ele não seria herdeiro, pois a aliança para ser o povo de Deus seria estabelecida com os descendentes de Isaque. Apesar de manda-los embora, Abraão orou em favor de Ismael e ―Deus ouviu‖ garantindo-lhe que Ismael também seria abençoado.

Apesar de ter sido adotado pelo avô e, legitimar pela segunda vez seu direito de pertencer ao seio familiar do pai, não é permitido a Ismael o vínculo que o ligue à família sertaneja, exceto a própria vontade de querer fazer parte desse mundo, e, assim, também é o desejo de se filiar aos Rego Castro. Ismael torna-se, assim, irmão do próprio pai e, mais ainda, um estorvo para os outros membros da família Rego Castro. O confronto entre o Ismael bíblico e outras personagens é profetizado; o embate entre Ismael e os membros da família Rego Castro também soa como um prenúncio que se consolida na medida em que os acontecimentos se sucedem na narrativa: ―a sua mão será contra todos, e a mão de todos, contra ele; e habitará fronteiro a todos os seus irmãos‖ (GÊNESES 16:12). Essa mesma é a convivência de Ismael com os meios-irmãos.

Raimundo, assemelhando-se a Abraão, aumenta ainda mais a prole após a adoção do neto. Porém, essa atitude do patriarca parece ser uma tentativa de amenizar o peso da consciência de ter também rejeitado dois filhos bastardos. O patriarca tenta corrigir um erro do passado em que traiu a esposa, Maria Raquel, com a empregada, Tereza Araújo. Semelhantemente à serva Agar, a traição gera frutos, dois filhos, que são dados para a adoção. A adoção dos filhos ilegítimos de

Raimundo Caetano teve o apoio da família, mas a de Ismael foi completamente rechaçada. Ainda que todos os familiares ―esqueçam que são mestiços de índios jucás‖ (BRITO, 2008, p.9), por parte de Maria Raquel, assumem um discurso excludente e inferiorizante relacionado à pureza racial de Ismael:

Maria Raquel bateu o pé e ameaçou sair de casa se trouxessem o bastardinho Kanela para viver debaixo do mesmo teto em que ela vivia. Raimundo Caetano esperou dois anos, mas um dia ausentou-se por três ausentou-semanas, retornando com um menino magricela e malvestido. Era Ismael. Ele mesmo escolhera o nome, e o registrara como seu filho legítimo e de Maria Rodrigues. A partir daquele dia Ismael tornou-se filho do avô, irmão do pai, e nosso tio por direito. Natan, que não suportava ver-se repetido de maneira tão fiel, passou a odiar o filho e a persegui-lo todos os dias em que habitou a Galileia. (BRITO, 2008, p.95)

O pai ao ―ver-se repetido de maneira tão fiel‖ no filho, rejeita-o. O ódio de Natan, que segue Ismael por toda a vida consiste num reconhecimento não consciente transformado em rejeição. O que Natan estranha no filho ―bastardinho‖ é a estranheza para consigo mesmo. Já Maria Raquel, marcada pela traição do marido com Tereza Araújo, de cujos os filhos ele se livrou (reencenação do conflito entre Agar e Sarai), reconhece em Ismael o motivo do casamento dilacerado, a mágoa e a história que tanto se esforçava para silenciar: ―marcada pela história dos filhos de Tereza Araújo, cujo o nome do pai ela sabia e não tinha coragem de pronunciar‖ (BRITO, 2008, p.95).

Assim como o Ismael bíblico, o do sertão do Inhamuns não encontra espaço entre os irmãos. Convivendo com a hostilidade dos seus familiares, Ismael prefere ―arribar‖. O contato com outros mundos não se dá de maneira acolhedora também, empurrando Ismael sempre para a condição de rejeitado, o que acentua o perfil de errância do personagem, diferente do personagem religioso. Vai de um extremo a outro, do sertão cearense ao frio intenso da Noruega, da resiliência à violência, numa constante busca por um lugar de direito:

Vivi como imigrante, porque não tinha futuro pra mim em nenhum outro lugar. Você sabe o que é ser imigrante, um brasileiro com cara de índio, as orelhas furadas e a pele do rosto marcada? Sabe não, porque você não viveu assim e nunca conheceu o desprezo das pessoas, nunca viu certos olhares, nem passou por humilhações degradantes. Você era um doutor, morava numa casinha confortável, ao lado da esposa, falava bem o inglês. Eu só falava português, um

idioma que ninguém conhece. Aprendi outra língua na marra. (BRITO, 2008. p.136)

Ao expor sua situação migratória de um estrangeiro vindo de um país inferior marcado externamente por uma origem étnica tida também como inferior em um país de primeiro mundo, Ismael confronta Adonias por não conhecer as dificuldades do estrangeiro uma vez que ele apresenta elementos da classe dominante: é ―doutor‖, possui ―casinha confortável‖ e ―fala bem o inglês‖. Assim, a complexa atividade nômade de Ismael se dá pelas marcas de sua origem que se tornam veículo de sua exclusão. As tensões do personagem é o que constrói ou fragmenta sua personalidade, apresentando um Ismael ambíguo, sempre em condição de exílio, estranheza e arribação.

-Quando parti da Galileia, fiquei algum tempo em Barra do Corda. Você não imagina o que é voltar para o meio de uma gente que não é mais sua, que não o reconhece, e você não sente nada por ela, a não ser desprezo. Foi um estágio para aprender a fumar maconha e beber cachaça. Em menos de um ano eu já estava na fronteira do Brasil com a Colômbia, num garimpo clandestino. Apanhei malária e voltei pros kanela. Um casal de catequistas noruegueses, de passagem pelo Maranhão, levou-me para morar com eles. Demorei a me acostumar com aquele mundo diferente do nosso. Em certas épocas do ano, o sol aparece às dez horas e às quatro da tarde já está novamente escuro. Eu mantinha as luzes da casa sempre acesas, pra suportar a falta de claridade. Morria de saudades do avô, da Galileia, do sol dos Inhamuns. O povo da Noruega sobreviveu porque se acostumou ao frio. Eu não me acostumei, aguentei na marra só porque não me queriam aqui. Ainda não me querem. Também nem penso em ficar na Galileia. Sou orgulhoso. Viveria de que jeito, costurando redes? A Galileia acabou e os tios fingem que continua próspera. A Noruega, sim, é um país rico e desenvolvido. Imaginei que a conversa findara. Mas Ismael voltou a falar, com a voz embargada, beirando om pranto.

-Eu gosto mesmo é daqui. Se fosse possível ficar, eu ficava. Botava o orgulho entre as pernas e começava uma vida nova. (BRITO, 2008, p.132)

Ismael não se identifica com o seu povo de origem, os kanela, não se reconhece no meio indígena e o despreza, pois considera os índios inferiores e, consequentemente, a si mesmo. Seu desejo é o reconhecimento da origem Rego Castro, porém só encontra rejeição. Repudia o povo que o acolhe, os kanela, para valorizar a família que o rejeita. Reconhece a Noruega como país de primeiro mundo, ao contrário dos Inhamuns, na tentativa de se convencer que manter-se

longe do sertão é a melhor opção. O que se tem é um duplo movimento, o que sugere a Noruega como representação, no romance, da universalidade, por um lado, e, por outro, que consiste no dado regional, na representação do localismo sugerido pelo sertão da Galileia. Apesar de todo desenvolvimento, ―falta claridade‖ na civilização norueguesa, na verdade, para Ismael o que ilumina mesmo é o ―sol do Inhamuns‖. Logo, a distância de sua origem faz de Ismael um ser de identidade fragmentada e controversa: ―nem penso em ficar na Galileia‖, mas ―eu gosto mesmo é daqui. Se fosse possível ficar, eu ficava.‖

Arrancado, ainda criança dos kanela, rejeitado desde sua chegada na família Rego Castro, Ismael transita por lugares no mundo sempre na condição de subclasse. Primeiro mora na Espanha com uma alemã, mas a relação dura pouco, pois Ismael é expulso do país acusado de agredir a companheira. Depois casa-se com Nora Kiler, com quem passou a viver em uma fazenda na Noruega e com quem teve uma filha, Susanne. O casal vive se desentendendo e se agredindo mutuamente por discordarem no modo de criar a filha: ―tentava ensinar alguns costumes daqui, não queria que ela fosse uma norueguesazinha padrão.‖ (BRITO, 2008, p.134). Além da desavença conjugal, Ismael também entra em conflito com um vizinho, conquistando o desafeto de toda a comunidade que passa a rejeitá-lo. É preso duas vezes por agressão e por fumar haxixe: ―num dia em que bebi e fumei acima da conta, dei uns cascudos em Nora. Ela também bateu em mim, mordeu meu ombro.‖ (BRITO, 2008. p.134) Agora, além das marcas de sua origem, o seu comportamento também o exila, mas considera o seu julgamento puramente racista:

Bater em mulheres na Noruega dá cadeia, mas o meu advogado jurou que eu estava sendo vítima de um complô racista. Ele nunca tinha visto um norueguês permanecer tanto tempo preso sem julgamento. Por que faziam isso com um índio? Fiquei meses numa cela pequena , em Kristiansand, um lugar que mais parece uma geleira. Quando saí, me proibiram de visitar minha filha. Um dia, depois de um porre fui à procura dela e de Nora, armado com um punhal. Me prenderam, novamente. Desesperado, tentei me matar com uma faca de cozinha, roubada do refeitório da cadeia. Fui julgado, deportado para o Brasil e proibido de voltar à Noruega. Permitiram que eu trouxesse o dinheiro que juntei, mas o que eu quero é rever minha filha. Senão, não me interessa mais viver. (BRITO, 2008, p.134)

A condição marginal de Ismael não muda, ainda que estabeleça laços familiares (casamento, filha) no país de primeiro mundo. Quando desafia a ordem

vigente no local onde está, mesmo nele residindo, é rechaçado e julgado como estrangeiro, levando em conta a noção de raça e a divisão hierárquica que com ela advém. ―Proibiram de visitar minha filha‖, essa foi sua maior punição, tanto que o obrigou a viver um eterno ciclo. Ismael não foi criado pelo pai e sua filha, Susanne, também não terá a companhia do pai, expulso da Noruega. Ismael parece materializar a formulação nietzschiana acerca do eterno retorno:

Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem. [...] A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira! (NIETZSCHE, 2001, p.230)

Lidar com a possibilidade de viver tudo repetidamente, deveria suscitar em Ismael inquietações que o fizessem adotar outra postura diante de sua existência. Mas suas atitudes como ―armado com um punhal‖ ou ―tentei me matar‖ não alteram o ciclo de vida a que está condenado. As consequências da exclusão de Ismael se apresentam em sua tentativa de suicídio, uma vez que não tem para onde voltar. Sua terra de origem, Galileia, também o coloca na condição de exilado. Perdido, o índio sertanejo proscrito assume a permanente condição de estrangeiro que, nas palavras de Kristeva (1994, p.190) ―não é nem uma raça nem uma nação. [...] Inquietante, o estranho está em nós: somos nós próprios estrangeiros – somos divididos‖.

A divisão identitária de Ismael se dá pela trajetória que lhe foi imposta: rejeitado pelo pai, adotado pelo próprio avô, tratado como bastardo pela família e inferiorizado socialmente pela origem indígena. Diferente dos demais primos, não escolheu abandonar a fazenda, ela o expulsou através dos conflitos ali estabelecidos, incluindo a desconfiança de estupro contra seu próprio irmão, Davi. Perdido em seu voo migratório involuntário, carrega consigo o sentimento constante de não pertencimento, ave de arribação sem pouso e sem definição de espécie: índio ou sertanejo? Ainda que tenha feito paragem na Noruega, suas experiências no exterior são sempre descritas com referências de sua terra natal, como faz no seguinte diálogo com Adonias:

Quando os Inhamuns eram uma terra rica, cheia de pasto, não parava de chegar gente. Hoje só fazem ir embora.

─ É verdade.

─ A Noruega é um sertão a menos de trinta graus. As pessoas de lá também são silenciosas, hospitaleiras e falam manso. Habituaram-se aos desertos de gelo como nós à caatinga. A comparação parece sem sentido, mas eles também olham as extensões geladas, como olhamos as pedras. A nossa pele é marcada pelo sol extremo, a deles pelo frio. Acho que as pessoas são as mesmas, em qualquer latitude.

─ Mudam as culturas, as crenças, o grau de civilização. ─ Eu falo da essência (BRITO, 2008, p. 73).

A Noruega e o sertão do Inhamuns representam duas extremidades climáticas, naturais, culturais e sociais, porém, na visão de Ismael, as pessoas estão sujeitas aos mesmos ―desertos‖. Aqui, representados pela vegetação seca da ―caatinga‖. Lá, representados pela imagem, igualmente seca, do ―gelo‖. Tanto os desertos da caatinga como os de gelo nos remetem a ausência que se carrega, independente do lugar em se encontra. Em relação a Ismael, refere-se a sua ―essência‖, fragmentada, estranha, de acordo com Kristeva (2001), condiz com o estrangeiro que o habita.

─ Não sei ainda pra onde vou. Na verdade, eu continuo sem lugar. Não tenho o que fazer no Maranhão, no meio dos kanela. Saí de lá pequeno, e só voltei porque me expulsaram daqui. Afora os vínculos de sangue e as marcas no corpo, nada me liga a eles (BRITO, 2008, p. 132).

A construção da identidade de Ismael pautada no transito entre duas origens, uma que ele não se identifica, ―kanela‖, e outra que o rejeita, Rego Castro, reflete sua falta de norte: ―não sei ainda para onde vou‖. Nessa lógica a identidade nasce de forma conflituosa, pois ―as marcas do corpo‖ que denuncia sua ligação indígena, ao mesmo tempo denunciam sua condição de bastardia na Galileia, impedindo sua ligação familiar tão desejada.

A pele morena de Ismael sobressai no fim de tarde, a cicatriz do rosto, as marcas que revelam sua origem de índio kanela. [...] Ismael fica calado. As referências a sua origem jucá o irritam, embora seja impossível escondê-la. Não se envergonha do povo de Barra do Corda, por mais degradado que esteja, porém não suporta desprezo da família cearense (BRITO, 2008, p. 9)

Não se trata de vergonha da sua aparência, mas das portas que ela fecha. Ismael ―continua sem lugar‖, não tem onde pousar. Não tem casa de onde veio, nem para onde ir. Logo cedo abandonou os kanela, onde não tinha pai. Logo foi morar com os Rego Castro, onde o pai de sangue fez questão de o negar. Fisicamente é índio, psicologicamente é sertanejo e socialmente é o exilado estrangeiro.