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2. RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA ATUALIZADOS

2.2. OS RASTROS DA GALILEIA

Habitar significa deixar rastros. (Walter Benjamin)

Assim como a noção de resíduo diz respeito a pensar a presença do passado no presente, a noção de rastro, sistematizada por Walter Benjamin (2006) também nos ajuda a compreender a relação entre o ontem e o hoje recorrentes na obra do autor de Galileia. Jeanne Marie Gagnebin (2012) chama atenção para o caráter paradoxal, que envolve tanto a questão da manutenção quanto do apagamento do passado. Ao mesmo tempo em que os rastros representam o desejo de permanência da burguesia como classe dominante, eles também simbolizam a resistência da tradição diante dos avanços do capitalismo que condiciona o indivíduo ao padrão de vida urbano.

Benjamin (2006) também associa o conceito de rastro ao de memória, na medida em que as lembranças são acionadas por traços remanescentes daquele ou daquilo que não mais está presente em sua inteireza. A memória, quando ativada pelo rastro, reconstitui o passado, atualizando-o e incorporando-o no presente. No caso da narrativa, é papel do narrador, por meio da linguagem, estabelecer essa conexão entre passado e presente, através da interpretação ressignificada dos rastros. No romance Galileia, isso pode ser notado na maneira como se constrói a imagem de Raimundo Caetano, em um vaivém entre presente e passado, porque é ―Impossível esquecer quem é Raimundo Caetano.‖ (BRITO, 2008. p. 69)Ele é uma representação da velhice, por isso mesmo da tradição do passado. A memória seria o agente de reação ou de impedimento de se apagar o passado, ou seja, o passado é redimido pelo presente:

A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido. "A verdade nunca nos escapará" — essa frase de Gottfried Keller caracteriza o ponto exato em que o historicismo se separa do materialismo histórico. Pois irrecuperável é cada imagem do passado que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. (BENJAMIN, 1994, p.224)

O passado é reconhecido como imagem pelas lentes do presente. A ação de um historiador consiste em reinterpretar o que passou na perspectiva do agora. Uma imagem só pode ser tomada como pertencente ao passado, na medida em que o presente a captura e articula sua redenção. ―A verdade não nos escapará‖ corresponde a missão do hoje salvar o ontem, não permitindo que este escape à memória e desapareça no esquecimento. Desse modo, a memória remete a uma luta contra o apagamento do passado ou diz respeito a uma reação à política do esquecimento.

As fotografias penduradas nas paredes da fazenda dos Rego Castro também cumprem o papel de reagir a possibilidade do esquecimento. Ao comporem ambientes visíveis como as paredes da sala e dos corredores, onde o fluxo de pessoas é maior, elas correspondem à tentativa de preservar a memória da família no tempo e no espaço, em especial, do patriarca Raimundo Caetano assim descrito:

―Lá está ele sustentando um cavalo pelas rédeas, ou de pernas cruzadas numa cadeira de couro, os cabelos pretos, um bigode fino, um revólver pendendo da cintura. Ou ainda ao lado de um amigo, segurando um rifle na mão, e sob os pés uma onça morta.‖ (BRITO, 2008, p.106).

O adverbio ―lá‖ situa a distancia temporal e espacial que a fotografia denuncia. A típica imagem do homem patriarcal, detentor das ―rédeas‖ não só do seu cavalo, mas de toda a família Rego Castro, não condiz com a do avô ―aqui‖, ou seja, no presente, incapaz de guiar seus próprios passos. O retrato do homem sertanejo forte e corajoso que andava armado e caçava ―onça‖, agora, definha moribundo. O que está ―lá‖, hoje, não passa de rastros da existência de Raimundo Caetano. Desse modo:

A fotografia seria um caso extremo de concretização do rastro. O objeto carregado de historicidade, que nela está presente, está ausente diante de nós. O tempo cronológico que localiza a data de sua produção se cruza com um tempo dissociativo, em que aparecem expectativas de mudança. Por seu caráter instantâneo, único, a fotografia tem um papel de ruptura: a partir de sua produção, a imagem do passado se altera; sua percepção condiciona as expectativas quanto às hipóteses de futuro. (GINZBURG, 2012, p.115)

Em Galileia, evidencia-se um Raimundo Caetano ―presente‖ na fotografia, mas ―ausente‖ no momento de sua contemplação. A fotografia faz lembrar o tipo de homem (sertanejo), o estilo de vida (tradicional) e as relações de poder (patriarcal) que Raimundo Caetano representava, sendo, portanto, um ―objeto carregado de historicidade‖. Enquanto a narrativa descreve gradativamente o atual estado de decadência física e moral do patriarca, a fotografia assume o papel de rastro, que capta a imagem do passado ausente no presente.

A fotografia é um mundo constituído por imagens que ganha sentidos através do olhar particular de cada espectador. No caso de Galileia, os espectadores correspondem aos membros da família Rego Castro que assistem, em tempo real, à decomposição de Raimundo Caetano, divergindo da imagem imponente do sertanejo fixada nas paredes da fazenda:

Contemplando Raimundo Caetano em agonia, não conseguem recuperar a imagem fotografada. Nem suportam vê-lo defecando e urinando, expondo mijo e merda aos olhares. O homem de barriga cheia de gases, que solta peidos e arrotos sem se desculpar, é um estranho. Deve partir com urgência, liberando os filhos e parentes da angústia de presenciar sua morte. (BRITO, 2008, p. 106)

As filhas de Raimundo Caetano veem um pai no retrato e outro na cadeira de rodas. Assim, a imagem do Raimundo Caetano do passado vem à memória ativada pelas fotografias que assumem o papel do rastro. Ainda que o patriarca do presente esteja definhando, o do passado não se apaga. A fotografia, como objeto fora do sujeito que a contempla, se torna eficaz para a preservação do passado como rastro.

A arca de Raimundo Caetano é outro elemento que reconstrói, na memória de Adonias, a figura do avô como exemplar raro do homem sertanejo. Nela estão os ―apetrechos‖ que o avô conhecia além do seu valor utilitário, pois também dominava a materialidade desses objetos na condição de artesão:

[...] presenciei o avô retirando dela os apetrechos com que trabalhava o couro: sovelas, agulhas, facas, cordões, tábuas, réguas e pedras de amolar. Raimundo Caetano era um exímio artesão. Ninguém bordava gibões e peitorais de vaqueiros mais bonitos que os dele. Trançava cordas, punha solado nas botas, remendava cabeçadas. Filigranas nasciam de suas mãos grossas de homem. (BRITO, 2008, p. 211-212).

―Presenciar‖ é índice de memória, remete à ideia de testemunhar o fato passado a partir de lembranças, recortes da realidade. Lembrar o que presenciou é um processo que requer uma seleção consciente ou inconsciente daquilo que foi testemunhado. É uma ação capaz de restituir fragmentos, unir restos, identificar rastros, esclarecer, organizar e reconstruir parte da consciência social. Nesse caso, os ―apetrechos‖ de Raimundo Caetano constituem rastros de sua identidade social: sujeito tipicamente sertanejo com ―mãos grossas de homem‖ que denunciam a marca do trabalho árduo no campo. No entanto, suas habilidades de artesão reveladas no testemunho de Adonias desperta uma reflexão entre o que é possível dizer e o que se diz de fato. Em outras palavras, é analisar o que está ausente como lacuna na memória, portanto indizível, mas presente nos rastros do que é possível dizer. Apesar das ―mãos grossas‖, Raimundo Caetano demonstrava afinidade camuflada com o universo feminino: ―ninguém bordava gibões e peitorais de vaqueiros mais bonitos que os dele‖. O homem bruto do campo, representante da ordem patriarcal, destacava-se na arte de bordar ―filigranas‖. A delicadeza de uma arte feminina ―nascia das mãos grossas de homem‖ de Raimundo Caetano.

Segundo Ecléa Bosi (1994), existem objetos que nos acompanham e envelhecem conosco porque sua utilidade é incorporada à vida cotidiana. São chamados ―objetos biográficos‖ e possuem valor expressivo na medida em que estão associados a um modo de vida no qual exerciam alguma função. Como um autêntico homem do campo, Raimundo Caetano destacou-se não só no trabalho árduo com a terra e o gado, mas na produção de artigos que compunham seu próprio universo sertanejo. Suas habilidades como artesão demonstrava ainda mais familiaridade com o espaço e o tempo que vivia. Assim, revelam os objetos e as fotografias do avô, cumprindo o papel do rastro como elemento mediador:

Observar um rastro no chão, um bilhete de uma viagem feita no passado, uma fotografia, assim como contemplar um espaço em

ruína, pode envolver o esforço de pensar na existência à luz das perdas: são situações em que um fragmento, um resto do que existiu pode ajudar a entender o passado de modo amplo e, mais do que isso, entender o tempo como processo, em que o resto é também imagem ambígua do que será o futuro. A politização da interpretação do conceito de rastro sugere seu entendimento como um termo de mediação. (GINZBURG, 2012, p.109)

Tanto as fotografias quanto os ―objetos biográficos‖ do passado de Raimundo Caetano contrastavam com a imagem debilitada dele no presente. Enquanto gozava de um bom estado de saúde, mantinha a autoridade familiar e o prazer de tomar decisões que satisfizessem seus desejos e revelassem sua autonomia e independência patriarcal. Agora, a doença o obriga a depender dos outros, especialmente membros da família, que ao testemunhar seu corpo paralisado e condição física degradante já não o tomam como chefe de família. Raimundo Caetano assiste sua própria decadência, uma vez que a mente, diferente do corpo, permanece em pleno vigor, tendo que suportar a consciência da fragilidade do seu poder.

Desde que adoecera, Raimundo Caetano fora colocado numa cama. Esaú e Jacó não conseguiam acomodar numa rede seu corpo gordo e cheio de escaras. Foi como se o condenassem à insônia perpétua, ao inferno de ver as noites passarem, olhando os caibros e ripas do telhado. As pernas paralíticas não embalavam o corpo, o corpo não adormecia a mente, a mente trabalhava sem trégua, tecia rolos de fio de pensamentos, como os teares em que se fabricavam as redes. Enredado nas lembranças, sem ter mais ninguém a quem abrir o coração, porque era o último da sua espécie, Raimundo Caetano sentiu-se condenado à morte sem direito à apelação. (BRITO, 2008, p. 58-59)

Com uma metade viva, a mente, e outra metade morta, o corpo, Raimundo Caetano sobrevive das lembranças produzidas pelos rastros deixados em tempos de outrora: fotografias, objetos. A matéria apodrece lentamente abandonada sobre uma cama. O corpo estático se encarrega de anunciar que a vida se desfaz e que Raimundo Caetano espera a morte chegar. O rememorar e os rastros do passado, sem tempo de conserto, reparação, ou renovação, atuam como ―termo de mediação‖ entre o que não se deve esquecer da figura do patriarca e o que deve morrer com ele.

A noção de rastro implica articular uma relação, imediatamente, sinonímica com vestígio e restos, pressupondo na teoria de Walter Benjamin um procedimento

interpretativo do passado, numa espécie de conjugação de tempos idos com o tempo de agora. Para Sabrina Sedlmayer e Jaime Ginzburg (2012, p. 8), em comentário à obra de Walter Benjamin:

O termo (...) aponta para uma presença e uma ausência. Aquilo que resta de um passado, de uma trajetória, pode constituir uma base para tentar compreender o que ocorreu a um indivíduo ou a uma sociedade.

Lidar com um rastro exige contemplar o que restou, dentro de um horizonte em que houve perdas. (...) O final de uma vida não oferece sua unidade e seu sentido completo; pelo contrário, nesse ponto pode estar o início de uma interrogação sobre uma delimitação difícil: o que, ao longo dela, foi importante?

O rastro como categoria relacionada ao tempo passado e ao presente implica na narração do acontecido em tempos de outrora. Nesse sentido, articulando a memória à narrativa estar-se buscando dar sentido aos restos ou vestígios deixados pelos homens, nos seus mais variados contextos culturais. ―Se a vida de um homem e a história de um país, de uma sociedade, de uma cultura deixam restos, é imperativo articular a memória à narrativa‖ (paráfrase dos organizadores à fala de Ginzburg, 2012 p.10)

Por exemplo, são evidentes as marcas da ruína na Galileia, que remontam a decadência de todo um sistema tradicional, marcado pelo patriarcalismo. Porém, assim como o patriarca da família, Raimundo Caetano, que se mantem vivo, a tradição regionalista teima em relembrar sua existência:

Arruinou-se o quarto de fabrico de queijo, e as prensas lembram esqueletos de dinossauros, memória da fartura de leite. Parece que um meteoro caiu sobre a Galileia, queimou os pastos, matou os rebanhos, pôs os currais abaixo. Até o aboio dos vaqueiros são ouvidos apenas nos programas de rádio. Nos fogões de lenha não se torra café, nem manteiga, nem se produz o sabão da gordura de porcos e bois. Panelas de barro e cobre, cuias, jarras, potes e alguidares perderam a função. Minguaram, substituídos por plásticos e acrílicos. Os moradores se confinam em poucos cômodos, e o restante da casa sem uso mantém-se de pé por teimosia (BRITO, 2008, p. 70)

Os aspectos tradicionais, apesar de inutilizados pela nova conjuntura moderna, aparecem como uma espécie de ―mortos-vivos‖, que mesmo apresentando uma estrutura de ―esqueletos de dinossauros‖ estão ali para lembrar a

―fartura do leite‖ ou a produção de sabão e a torra do café em ―fogões de lenha‖. De acordo com Benjamin (2012, p.8) esse procedimento aponta para uma presença e uma ausência do que resta do tempo de outrora, capaz de (re)construir um indivíduo ou uma sociedade. Isso nos lembra, ainda, a noção de resíduo. Segundo Raymond Williams, ―o residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está ativo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento efetivo do presente‖ (WILLIAMS, 1979,p. 125). Portanto, podemos pensar que determinadas experiências, conceitos, valores e significados foram originados no passado, mas ainda são vividos e praticados à base do resíduo ou

rastro, sofrendo transformações e se cristalizando de diferentes maneiras.

Segundo Benjamin (2012, p.27) o rastro existe em virtude de sua fragilidade, ou seja, é um rastro porque corre o risco de ser apagado. O caráter excludente com que se propaga a modernidade ameaça a preservação do rastro, da lembrança de hábitos ou elementos do passado que caíram em desuso ou não se encaixam na paisagem contemporânea. Porém, antigos hábitos e concepções seguem o fluxo das mudanças e desaguam em experiências modernas. É perceptível como alguns desses valores e costumes se mantém vivos, permanecem ativos no modo de vida contemporâneo, desempenhando outros papeis, exercendo outras funções, ainda que arraigados às experiências do passado, contrariando, assim, a ideia de estagnação ou até mesmo de morte da tradição.

Essa sobrevivência do rastro aponta para uma literatura entendida como resistente em função de seus traços regionalistas, cujo sentido não se esgotou, pois ainda há no sertão a ―iniquidade‖ e a ―precariedade‖. Trata-se de uma região que não foi totalmente modificada pela globalização e que é caracterizada por uma cultura, economia, política que lhes são particulares. O perfil de Raimundo Caetano descrito por Adonias evidencia parte de uma cultura singular:

Durante toda vida praticou um catolicismo pagão, misturando o louvor aos santos com crendices e superstições. Sempre rezou um terço ao acordar, mas também oferecia fumo à Caipora, quando caçava. Protegia a casa dos maus-olhados atirando sal grosso nos seus quatro cantos. Os umbigos dos nove filhos legítimos foram enterrados na porteira do curral, para que não abandonassem a terra, e todos se tornassem fazendeiros criadores de gado. O feitiço pegou em apenas três deles, Natan, Salomão e Josafá que fixaram moradia na fazenda. (BRITO, 2008, p.23)

O vastíssimo folclore regional presente nos hábitos de Raimundo Caetano é uma forma de expressão popular que retrata a alma e a cultura nordestina através das ―superstições‖ e lendas como a ―Caipora‖. É o resultado de uma interação contínua entre as pessoas pertencentes a determinadas regiões. Seu conteúdo é específico de uma dada localidade e representa os rastros da cultura de um povo. Seja na concepção do resíduo, seja na do rastro, muito do que permanece no romance, e é ressignificado, é o passado regional. Porém, o que a obra apresenta de regional não se atém ao mundo rural nem se restringe a ênfase no exotismo e no pitoresco do espaço sertanejo. É o que Ligia Chiappini define como noção de regionalidade na obra literária regionalista:

espaço regional criado literariamente aponta, como portador de símbolos (que é), para um mundo histórico-social e uma região geográfica existente. Na obra regionalista, a região existe como regionalidade e esta é o resultado da determinação de um espaço como região ou província ao mesmo tempo vivido e subjetivo. (1995, p.15)

A concepção de regionalidade, segundo Chiappini, consiste numa região internalizada à ficção. Nesse caso, é um espaço ―vivido e subjetivo‖ onde os costumes, valores e tradições se internalizam nos personagens e na história narrada. Desse modo, o aspecto particular não se associa necessariamente com a região, mas com as singularidades dos personagens, como é o caso de Raimundo Caetano, que ―mistura louvor aos santos com crendices e superstições‖. Portanto, pode-se dizer que o aspecto regionalista no romance Galileia se consolida na medida em que o enredo e os personagens são construídos a partir das relações sociais, históricas, culturais que eles internalizam do local.

Articulando-se o conceito de rastro com a categoria da fantasmagoria surge em Galileia os personagens antepassados João Domísio e Donana. Em contato com a Casa-Grande do Umbuzeiro aberta pelo tio Salomão, Adonias desenterra uma tragédia familiar abafada há cinco gerações. O drama que culmina com o assassinato de Donana pelo marido João Domísio desperta no narrador fantasmas internos ainda mais profundos que o assombram como os rastros do passado daquela casa em forma de pesadelos:

A Casa-Grande do Umbuzeiro nos espionava, enchendo de pesadelos nossas noites. Escutávamos os gritos de tio Domísio, preso no quarto escuro. Amarrado a um casamento imposto pela família, Domísio sobrevivia tocando rebanhos de bois para o Recife. Numa das viagens, apaixonou-se por uma moça jovem e risonha, na cidade de muitas igrejas. Jurou que era solteiro e acertou casamento. Mas, no sertão distante, existiam os filhos e a esposa Donana. A única maneira de livrar-se dela seria mata-la. Procurou os dois cunhados e jurou que Donana o traía. Encontrara rastros de alpargatas e chinelos na areia do riacho onde ela costumava se banhar. Marcas pequenas, de pés femininos, e marcas grandes e profundas, denunciando pertencerem a homem. Os cunhados não acreditaram em Domísio, pediram que arranjasse outras provas. Se a irmã fosse culpada, fizesse a justiça de direito. Mas se tudo não passasse de mentira, eles se vingariam. (BRITO, 2008, p. 54).

Quando se viu verdadeiramente apaixonado pela moça da cidade, Domísio passou a sentir o peso da imposição do seu casamento com Donana. Preso aos valores tradicionais do matrimônio, que unia relações sociais e financeiras antes mesmo da existência de laços amorosos, Domísio sente-se sufocado e, sem uma saída que preservasse sua honra, ―matou Donana com um punhal de cabo de madrepérola. Enfiou-o nas costas da mulher. O sangue tingiu o riacho Trici, correu para as águas do rio Jaguaribe e depois para o mar.‖ (BRITO, 2008, p. 54). Para justificar seu delito e impedir uma possível vingança dos cunhados, Domísio alega infidelidade da esposa e busca refugio com seu irmão na Casa-Grande do Umbuzeiro, um padre ―que campeava bois durante o dia, à tardinha celebrava missa e de noite deitava com uma índia.‖ (BRITO, 2008, p. 54). Diante da falta de provas, os cunhados, munidos do mesmo punhal ensanguentado que marcara as costas da irmã, pretendiam, agora, honrar a sua memória com o sangue do assassino. Entretanto, foram impedidos pelo padre, Anacleto Justino: ―suplicou que respeitassem as leis da hospitalidade. Prometeu que mandaria o irmão embora. E, aí, fizessem o que era direito, em qualquer descampado, encosta ou serra, mas dentro da casa, não.‖ (BRITO, 2008, p. 54). Depois disso, Domísio Justino, que se escondeu, trancando-se em um quarto na casa do irmão, ―nunca mais foi visto, fora ou dentro da Casa-Grande do Umbuzeiro‖ (BRITO, 2008, p. 55).

Adonias, agindo por impulso numa discussão acalorada com Ismael, atira-lhe uma pedra na cabeça à margem do mesmo rio que serviu de cenário para o assassinato de Donana. Vendo o primo ensanguentado no chão, o narrador, acreditando ser também um assassino, refaz os mesmo passos de Domísio em