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RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA NA TRAMA COSMOPOLITA DE GALILEIA. Maria Helissa de Medeiros NATAL/RN NOVEMBRO/2020

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Academic year: 2021

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PROGRAMA DO PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA NA TRAMA

COSMOPOLITA DE GALILEIA

Maria Helissa de Medeiros

NATAL/RN

NOVEMBRO/2020

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Tese de doutorado submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, da

Universidade Federal do Rio Grande do Norte,

como requisito parcial à obtenção do título de

Doutora em Letras. Área de concentração:

Literatura Comparada.

Orientador: Prof. Dr. Derivaldo dos Santos

NATAL/RN

2020

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Medeiros, Maria Helissa de.

Rastros e resíduos da tradição regionalista na trama

cosmopolita de Galileia / Maria Helissa de Medeiros. - 2020. 137f.: il.

Tese (doutorado) - Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2021. Orientador: Prof. Dr. Derivaldo dos Santos.

1. Rastro - Tese. 2. Resíduo - Tese. 3. Tradição - Tese. 4. (Neo)regionalismo - Tese. 5. Universalismo - Tese. 6. Brito, Ronaldo Correia de, 1951. Galileia - Tese. I. Santos, Derivaldo dos. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 82.091

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RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA NA TRAMA

COSMOPOLITA DE GALILEIA

Tese aprovada como requisito parcial à obtenção do título de Doutora

em Letras no curso de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem

Área de concentração: Literatura Comparada, do Departamento de

Letras, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Arte, da Universidade

Federal do Rio Grande do Norte.

Aprovada em ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

Profº. Dr. Derivaldo dos Santos – UFRN (Orientador)

Profª. Drª. Kalina Alessandra de Rodrigues de Paiva – IFRN (Examinadora externa)

Profª. Drª. Maria Aparecida da Costa – UERN (Examinadora externa)

__________________________________________________________

Profº. Dr. José Luiz Ferreira - UFRN

(Examinador interno)

__________________________________________________________

Profª. Drª. Valdenides Cabral de Araújo Dias – UFRN

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A Deus,

Por todas as graças alcançadas, pelas missões a mim confiadas e pela convicção da fé de que – visto à luz dEle – nada me acontece por acaso.

À família,

Pelo companheirismo, compreensão, apoio e amor incondicional.

Ao Mestre Derivaldo dos Santos,

Por compartilhar sua sabedoria, por sua infinita paciência, por acreditar em mim, embora me visse ―arribar‖. Obrigada por me orientar no voo de volta para o nosso lugar de origem: o ―sertão‖ literário.

Aos amigos,

Por abraçar a mim e a meu filho como família, por abraçar os meus sonhos, renovando em mim sempre a esperança de realizá-los. Obrigada pelo acolhimento e carinho.

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Brito, prolonga o passado no presente à base do resíduo cultural e do rastro acoplado ao de memória. Lembrar o passado se caracteriza por aquilo que resta, que remanesce de um tempo em outro, podendo significar a presença de uma sociedade que vive o passado à luz de vestígios culturais. Interessa-nos, pois, analisar o duplo movimento que constitui tal romance: um voltado para a busca de uma vida moderna com a ideia de que a modernidade está impregnada de acasos e acúmulo de experiências renovadas; outro vinculado a modos de vida baseados na experiência tradicional, representada na imagem de uma família patriarcal decadente, em que a experiência vem sob a forma de rastro no texto literário. No tocante à fundamentação teórica, o percurso analítico apoia-se no conceito de dialogismo sistematizado por Bakhtin (1997), por entender que a literatura se constitui como uma rede de relações dialógicas entre vozes advindas do passado e do presente. Nessa direção, a análise prevê que o romance se encaixa no que Antonio Candido (2000) intitula ―dialética do localismo e do cosmopolitismo‖, uma vez que o discurso da tradição regional se mantém à base do vestígio, ao mesmo tempo em que a criação literária do autor o transforma em discurso da modernidade, elevando o local à condição do universal. Por isso, tomaremos a noção de resíduo cultural empreendida por Raymond Williams (1979), e de rastro, defendida por Walter Benjamin (2006) para subsidiar nossa análise, a fim de pensarmos sobre o modo como componentes da tradição regionalista são incorporados ao romance, ao mesmo tempo em que são atualizados. Tais categorias analíticas, salvaguardando as singularidades que lhes são próprias, trazem como base comum do pensamento crítico a relação da vida presente com o passado histórico. Durante a análise, foi possível perceber que o romancista investiu, literariamente, numa imagem de sertão atual, livre de estereótipos, uma vez que reaparecem, em Galileia (2008), cenas entrelaçadas a discursos outros que possibilitam a ressignificação da região, compreendida não mais como espaço meramente inscrito na natureza, mas a partir de seu caráter histórico e político e delineado pelas representações culturais.

Palavras-chave: rastro, resíduo, tradição, (neo)regionalismo, universalismo, Galileia.

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Brito, prolongs the past in the present based on cultural residue and the trail coupled with memory. Remembering the past is characterized by what remains, which remains from one time to another, which may mean the presence of a society that lives the past in the light of cultural traces. We are interested, therefore, in analyzing the double movement that constitutes such a novel: one aimed at the search for a modern life with the idea that modernity is impregnated with chance and accumulation of renewed experiences; another linked to ways of life based on traditional experience, represented in the image of a decadent patriarchal family, in which the experience comes in the form of a trail in the literary text. Regarding the theoretical foundation, the analytical path is based on the concept of dialogism systematized by Bakhtin (1997), as he understands that literature is a network of dialogical relations between voices from the past and the present. In this direction, the analysis predicts that the novel fits what Antonio Candido (2000) calls ―dialectic of localism and cosmopolitanism‖, since the discourse of the regional tradition remains based on the vestige, at the same time as the creation literary work transforms it into a discourse of modernity, elevating the place to the condition of the universal. Therefore, we will take the notion of cultural residue undertaken by Raymond Williams (1979), and of trail, defended by Walter Benjamin (1994) to support our analysis, in order to think about how components of the regionalist tradition are incorporated into the novel, at the same time they are updated. Such analytical categories, safeguarding their singularities, bring the relationship of present life to the historical past as a common basis for critical thinking. During the analysis, it was possible to perceive that the novelist invested, literarily, in an image of the current hinterland, free of stereotypes, once reappear, in Galileia (2008), scenes intertwined with other speeches that make possible the resignification of the region, no longer understood as a space merely inscribed in nature, but from its historical and political character and outlined by cultural representations.

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prolonga el pasado en el presente a partir del residuo cultural y el rastro acoplado a la memoria. Recordar el pasado se caracteriza por lo que queda, que permanece de un tiempo para otro, lo que puede significar la presencia de una sociedad que vive el pasado a la luz de las huellas culturales. Nos interesa, por tanto, analizar el doble movimiento que constituye tal novela: el que apunta a la búsqueda de una vida moderna con la idea de que la modernidad está impregnada de azar y acumulación de experiencias renovadas; otra ligada a formas de vida basadas en la experiencia tradicional, representada a imagen de una familia patriarcal decadente, en la que la experiencia adquiere la forma de una estela en el texto literario. En cuanto al fundamento teórico, el camino analítico se sustenta en el concepto de dialogismo sistematizado por Bakhtin (1997), pues entiende que la literatura es una red de relaciones dialógicas entre voces del pasado y del presente. En esta dirección, el análisis predice que la novela se ajusta a lo que Antonio Candido (2000) llama ―dialéctica del localismo y el cosmopolitismo‖, ya que el discurso de la tradición regional permanece basado en el vestigio, al mismo tiempo que la creación literaria del autor la transforma en discurso de la modernidad, elevando el lugar a la condición de universal.Por tanto, tomaremos la noción de residuo cultural, asumida por Raymond Williams (1979), y de rastro, defendida por Walter Benjamin (1994) para sustentar nuestro análisis, con el fin de pensar en cómo se incorporan a la novela componentes de la tradición regionalista, al mismo tiempo que se actualizan. Tales categorías analíticas, salvaguardando sus singularidades, traen la relación de la vida presente con el pasado histórico como base común para el pensamiento crítico. Durante el análisis se pudo percibir que el novelista invirtió, literariamente, en una imagen del hinterland actual, libre de estereotipos, ya que en Galilea (2008) reaparecen escenas entrelazadas con otros discursos que posibilitan la (re)significación de la región, ya no comprendida como un espacio meramente inscrito en la naturaleza, pero desde su carácter histórico y político y perfilado por representaciones culturales.

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INTRODUÇÃO ... 11

1. GALILEIA: uma trama dialógica com a tradição regionalista ... 18

1.1. TRADIÇÃO: uma herança cultural ... 21

1.2. GALILEIA: da tradição regionalista à prosa cosmopolita ... 31

1.3. GALILEIA: uma interação dialógica entre o tradicional e o moderno ... 56

2. RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA ATUALIZADOS PELA GALILEIA ... 64

2.1. A GALILEIA À BASE DO RESÍDUO CULTURAL ... 64

2.2. OS RASTROS DA GALILEIA ... 73

2.3. A EVOCAÇÃO DO PASSADO EM GALILEIA: reconstituindo rastros, ressignificando resíduos ... 84

3. “AVES DE ARRIBAÇÃO”: Ismael, Davi e Adonias de volta à Galileia ... 101

3.1. ISMAEL: o índio sertanejo estrangeiro ... 106

3.2. OS SEGREDOS DE DAVI ... 113

3.3. O LABIRINTO DE ADONIAS ... 120

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 129

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INTRODUÇÃO

O verdadeiro método de tornar as coisas presentes é representá-las em nosso espaço e não nos representar no espaço delas. Assim procede o colecionador e também a anedota. As coisas, assim representadas, não admitem uma construção mediadora a partir de grandes contextos. Também a contemplação de grandes coisas do passado consiste, na verdade, em acolhê-las em nosso espaço. Não somos nós que nos transportamos para dentro delas, elas é que adentram a nossa vida.

(Walter Benjamin, Passagens, 2006)

A vertente regionalista da literatura brasileira, definidora do movimento pendular entre local e universal, que fundamenta o processo de formação de nossa literatura, desde o século XVIII, ocupou uma espécie de posição suspensa nas letras nacionais, considerando o que se produziu entre fins da década de 60 e meados da década de 70 do século XX. Na cena literária brasileira contemporânea, Francisco J. C. Dantas, por exemplo, reacende o fogo, aparentemente extinto dessa literatura, com o romance Coivara da memória, de 1991, seguido por Os desvalidos, de 1993, e Cartilha do silêncio, de 1997. Nesse mesmo cenário, ainda podemos citar Rosa verde amarelou (2014), de Bartolomeu Correia de Melo, além de Humberto Hermenegildo de Araújo com a obra Rastejo (2017). Se a surpresa causada por uma prosa de temática regional trouxe, novamente à tona, a palavra regionalismo, a recusa da designação não deixou de fomentar um debate crítico em torno da natureza dessa produção em relação aos moldes de representação estética que inserem obras literárias a partir de denominadores temáticos comuns, dentre as quais as de Graciliano Ramos, as de José Lins do Rego e as de Guimarães Rosa, considerando ainda as singularidades que lhes são próprias.

No contexto da literatura contemporânea1

brasileira situa-se a obra Galileia, de Ronaldo Correia Brito, objeto de investigação de nossa tese. O escritor nasceu

1

Ciente da dificuldade de definir o que é literatura contemporânea, pois toda definição é problemática, gerando exclusões e falhas, é necessário entender o que está envolvido no termo neste contexto. Para AGAMBEM (2009, p.69) ―a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo‖. Em outras palavras, o arcaico, tido como a origem para o filósofo italiano, participa do contemporâneo, pois, como um embrião, desenvolve-se, cresce, atualiza-se, mas mantendo a mesma essência embrionária. Levando em consideração tal reflexão essa confluência entre passado e presente é o que melhor encaixa o termo ―contemporâneo‖ neste texto. A reatualização, a menção ao passado, permite ao homem buscar respostas para lidar melhor com seu tempo presente.

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em 1951 na cidade de Saboeiro, no sertão dos Inhamuns, no Ceará. Quando tinha cinco anos, sua família mudou-se para o Crato, na região dos Cariris. Aos 17, foi estudar Medicina em Recife, com especialidade em clínica médica e psicanálise. Sempre dividiu seu tempo entre o trabalho como médico e as atividades artísticas. Em 1974, produz para o cinema Cavaleiro Reisado, um curta metragem ficcional voltado para o resgate e estudo da cultura popular nordestina. Em 1975, através da parceria com Assis Lima, Horácio Carelli e Antônio Madureira, dirigiu um longa metragem chamado Lua Cambará. Inserido ainda no mesmo grupo de parceiros, lançou também a Trilogia das Festas Brasileiras - O Baile do Menino Deus, Bandeira de São João e Arlequim -, que reúne livros, discos e espetáculos teatrais. Em 1983, dirige a peça Maracatus Misteriosos, de sua própria autoria. Em 2003, recebe o convite para o cargo de escritor residente da Universidade de Berkeley na California – EUA. Em 2004, chegou a ser um dos finalistas do prêmio Telecom pelo lançamento do livro Faca (2003), através da editora Cosac. Em 2007, torna-se vencedor do prêmio Zilka Salaberry de teatro infantil ao lado de Assis Lima com quem escreveu a peça Pavão Misterioso (2004) e Livro dos homens (2005). Galileia (2008) corresponde ao primeiro romance escrito por Ronaldo Correia de Brito, traduzido para o francês e o espanhol e vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura em 2009. Em 2010, lançou a coletânea de contos Retratos imorais. Seu segundo romance, Estive lá fora (2012), apresenta fortes traços biográficos a partir das próprias memórias do autor ao se estabelecer em Recife em meio à ditadura militar. Em 2015, sob a influência da morte de seus pais, reúne 12 contos em um livro intitulado O amor das sombras. Sua produção mais recente, Dora sem véu (2018), consiste num romance com traços dostoievskianos sobre amor e culpa e com referências bíblicas que reflete o princípio do pecado original.

A obra Galileia apresenta o contexto de uma família patriarcal em decadência representada pela debilidade do patriarca Raimundo Caetano, casado com uma descendente de índios jucás, Maria Raquel, com a qual teve nove filhos: Salomão, Josafá, Natan, Tobias, Benjamin e Ester, único nome dentre as quatro filhas que é citado no romance. Além, dos filhos legítimos, o patriarca manteve como amante a própria afilhada, Tereza Araújo, concebendo dois filhos que lhe foram retirados pelo padrinho. Porém, a narrativa concentra-se no retorno de três primos – Ismael, Davi e Adonias - que atravessam o sertão cearense de Inhamuns para visitar o avô, Raimundo Caetano, que se encontra à beira da morte ao mesmo tempo em que

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comemora oitenta e cinco anos. O contato com a Galileia obriga os personagens a revisitar um passado traumático através de memórias que nos permite reinterpretar os rastros e resíduos que mantêm a família Rego Castro em conflito com a modernidade.

Os primos incursionam de volta ao universo sertanejo com a ideia de um lugar ainda primitivo e atrasado. Além disso, o sertão os faz relembrar um passado sombrio, marcado por conflitos familiares indissolúveis. Essa imagem do sertão gravada na memória dos personagens, quando partiram, alimentou o desejo de não mais voltar. Porém, o caminho em direção à Galileia e, a própria fazenda em si, desvendou uma nova realidade social, econômica, cultural e familiar que contrastava com a memória dos personagens.

Davi, o primo mais jovem de ―pele alva e cabelos louros‖, é filho de Natan com Marina, descendente de italiano e socióloga paulista. Vítima de um estupro familiar ocorrido na fazenda Galileia, que é constantemente mencionado no romance, porém não é desvendado, Davi passa a morar em São Paulo com a mãe após separação com o pai. Influenciado por Marina, envereda pela Europa e pelos Estados Unidos, ostentando a imagem de músico, pianista bem sucedido para seus familiares, enquanto, na verdade, dedicava-se aos prazeres da carne. Homossexual, garoto de programa, destacado pelo narrador como um errante. Ismael, filho bastardo de Natan com Maria Rodrigues, uma índia kanela que o pai conheceu no Maranhão para onde viajava, comercializando peles de animais. Rejeitado por Natan, foi adotado pelo próprio avô, Raimundo Caetano, que o trouxera do Maranhão, ainda garoto para a fazenda contra a vontade da esposa e demais parentes. Visto como intruso na Galileia, morou na Noruega onde constituiu família, mas também não passava de um estrangeiro. Adonias é o personagem que apresenta traços biográficos do autor Ronaldo Correia de Brito. Formou-se médico com especialização em Londres. Estabeleceu-se profissionalmente em Recife onde casou-se com Joana e teve dois filhos. Associa o retorno a Galileia ao seu desejo de escrever sobre a biografia familiar dos Rego Castro, a fim de desvendar os segredos, mistérios e conflitos que o distancia do sertão.

Pretende-se analisar a obra aludida, procurando refletir sobre seu lugar no conjunto da literatura brasileira contemporânea, sem, contudo, estabelecer a ficção do autor em quadros tradicionalmente classificatórios. Nessa direção, o interesse é verificar as relações dialógicas que o romance Galileia estabelece com a herança

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cultural regionalista brasileira, e não defini-la como uma prosa puramente constituída nessa tradição.

Para analisar o romance nessa perspectiva, tomamos como fundamentação o pensamento teórico de Raymond Williams (1979), em particular a reflexão do autor sobre resíduo cultural, presente em seu livro Marxismo e Literatura, e a noção de rastro, segundo pensamento de Walter Benjamin (2006). O trabalho também traz como base de orientação as reflexões teóricas e críticas de Antonio Candido (2000) sobre a dialética do localismo e do cosmopolitismo e as teses de Ligia Chiappini (1995) sobre a estética regionalista brasileira.

A tese procura investigar três questões fundamentais para uma melhor compreensão da obra Galileia, de Ronaldo Correia Brito. A primeira diz respeito à consolidação do capitalismo moderno que relacionou o conceito de desenvolvimento à vida urbana e aos benefícios da civilização empreendidos por ela enquanto que o campo aparece constantemente associado ao atraso. As concepções de campo e vida rural permaneceram arraigadas às ideias e imagens tradicionais que deveriam se extinguir com o advento da urbanização, sendo, pois, o contraste o cerne das representações entre esses espaços.

A segunda mostra que, por um lado, alguns temas, em Galileia, lembram aspectos discutidos pela tradição regionalista de 302, como a decadência do

patriarcalismo, a fragmentação do sujeito que não se reconhece no seu local de origem, semelhante, por exemplo, ao modo como José Lins do Rego construiu sua obra literária. Por outro lado, Brito constrói a ideia de um sertão abrangente, atualizado, livre de estereótipos, uma vez que reaparecem em Galileia (2008) cenas entrelaçadas a discursos outros que possibilitam a ressignificação da região, compreendida não mais como espaço meramente inscrito na natureza, mas a partir de seu caráter histórico e político e delineado pelas representações culturais.

2

O trabalho não pretende desenvolver a ideia de um possível anacronismo da literatura contemporânea no trato dado à matéria regional em relação à literatura regionalista de 30, mas empreender um estudo sobre aspectos do regionalismo no romance contemporâneo Galileia, considerando ―(...) a tradição como a sobrevivência do passado. Mas essa versão da tradição é frágil no ponto mesmo em que o sentido incorporador da tradição é forte: quando vista, de fato, como uma força ativamente modeladora. (...) O que temos de ver não é apenas ―uma tradição‖, mas uma

tradição seletiva: uma versão intencionalmente seletiva de um passado modelador e de um presente

pré-modelado, que se torna poderosamente operativa no processo de definição e identificação social e cultural‖ (WILLIAMS, 1979, p. 118). Portanto, trata-se de observar, no presente, uma versão disponível e modificada do passado.

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A terceira é que o romance em estudo parece evidenciar o conceito de resíduo cultural e rastro acoplado ao de memória. Lembrar o passado se caracteriza por aquilo que resta, que remanesce de um tempo em outro, podendo significar a presença de uma sociedade que vive o passado à base do resíduo cultural.

Ao fazermos uma consulta à fortuna crítica do autor em causa, encontramos vários estudos sobre sua produção literária na perspectiva do regionalismo, porém pretendemos contribuir com um trabalho acerca de sua obra à luz da noção de resíduo cultural da tradição regionalista e do rastro como elementos de articulação entre o passado e o presente. Nessa direção, tais categorias analíticas somadas à técnica de rememorização do passado da narrativa trazem aspectos elucidadores acerca da permanência (resíduos, rastros) do regionalismo enquanto um dos traços definidores da literatura brasileira contemporânea. Assim, é possível analisar questões voltadas para o campo crítico-social que permeiam a vida e a história da sociedade sertaneja e perpassam a narrativa de Ronaldo Correia Brito, forma esta, tanto de chamar a atenção para a preservação da tradição sertaneja, como também para suscitar protesto social do presente moderno insatisfatório, observando seu caráter ambivalente.

Para procedermos à investigação do romance, esta tese traz como hipótese básica a de que o romance Galileia, de Ronaldo Correia Brito, é permeado pela tradição regionalista, mas que essa tradição não significa um anacronismo do regionalismo literário de 30, vendo, na obra do autor, que o regionalismo vem à base do resíduo cultural e como tal sob a forma de rastro no texto literário, que permite enxergar, no presente, traços de um passado rememorado.

O conjunto da obra de Ronaldo Correia Brito vem despertando o interesse de estudiosos de literatura e conquistando leitores críticos que se manifestam positivamente em relação a sua produção. Isso nos estimula ainda mais no foco desta tese.

A partir dessas considerações, o presente trabalho encontra-se dividido em três capítulos. O primeiro, intitulado GALILEIA: uma trama dialógica com a tradição regionalista, investiga a rede dialógica que a obra estabelece com a tradição regionalista, partindo do conceito de tradição estabelecido por Antonio Candido (2014) que concebe a literatura como sistema articulado pela seguinte tríade: autor, obra e público. A consolidação deste triângulo, possibilita a transmissão das obras produzidas tanto no espaço quanto no tempo, configurando uma tradição que

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permitiria reconhecer a produção literária local como uma literatura nacional. Herdeiro de uma tradição regionalista, o autor Ronaldo Correia Brito estabelece no romance Galileia o que Antônio Candido (2000) chama de ―dialética do localismo e do cosmopolitismo‖. Em outras palavras, o regionalismo não se configura como um estereótipo pejorativo que o reduz a uma vertente simplória e superficial, sem fundamento histórico, social e estético. A tendência regionalista que se estabeleceu na ficção literária da geração de 1930, reaparece na modernidade completamente transformada, passando por um processo de atualização que garante a continuidade da tradição regionalista sem que sua representação pareça estática. Os aspectos regionais ganham dimensão humana dentro de um local que compõe não apenas um cenário, mas, uma relação dialética do homem com o meio, pois ―por menor que seja a região, por mais provinciana que seja a vida nela, haverá grandeza, o espaço se alargará no mundo e o tempo finito na eternidade, porque o beco se transfigurará no belo e o belo se exprimirá no beco.‖ (CHIAPPINI, 1995, p.161).

Nessa direção, o percurso analítico apoia-se também no referencial teórico sistematizado por Bakhtin acerca do caráter dialógico do texto literário, uma vez que todo texto é constituído por uma pluralidade de discursos entre vozes advindas de múltiplas entradas (tradição e modernidade).

O segundo capítulo – RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA ATUALIZADOS PELA GALILEIA - busca analisar a obra à luz da noção de resíduo cultural da tradição, segundo a perspectiva teórica de Raymond Williams (1979) e de rastro, conforme a sistematização crítica de Walter Benjamin (2006). Por mais diferentes que sejam as civilizações, determinadas mentalidades não se perdem e passam de uma época para a outra, sofrendo mutações, adicionando ou abstraindo conceitos, modificando o cotidiano social, porém sem permitir que aquela determinada mentalidade se dissolva por completo. Nesse momento, surge o resíduo a remanescer e traz o rastro através de um procedimento interpretativo do passado, numa espécie de conjugação de tempos idos com o tempo de agora. Como esses aspectos surgem através das lembranças dos personagens, em especial do narrador-personagem Adonias, o capítulo também se volta para a memória, pois conforme Paul Ricoer (2008) são os rastros que viabilizarão o desvelamento das lembranças (individuais e/ou coletivas) e, consequentemente, à cristalização da memória. Assim, a memória inscrita no romance se estabelece como tradição, na medida em que presentifica valores e

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costumes do passado, que a modernidade tenta negar, já que valoriza o tempo futuro, progressivo. É através da memória que a tradição satisfaz seu desejo de permanência e resistência, ressignificando o tempo de outrora para além das esferas modernas. Para isso, o pensamento de Benjamin (1994) conduz o leitor a duas direções do tempo: uma destinada à leitura do presente, do tempo retilíneo da modernidade; outra destinada ao tempo de reação a essa modernidade, o passado.

O terceiro capítulo – ―AVES DE ARRIBAÇÃO‖: Ismael, Davi e Adonias de volta à Galileia - consiste em analisar os três personagens principais: Davi, Ismael e Adonias. Personagens sertanejos que se tornaram cosmopolitas em constantes conflitos com suas raízes. O retorno à Galileia faz com que os primos se deparem com tradições, lembranças, segredos e tragédias familiares que, segundo Stuart Hall (2006) desloca, fragmenta e constrói crises identitárias e sociais. Revela como a identidade dos personagens transita entre os aspectos que herdam do seu lugar de origem, o sertão, pautados numa tradição patriarcal e os elementos que absorvem em contado com o mundo moderno. O deslocamento campo/cidade, Galileia/exterior e vice-versa dos personagens faz lembrar os movimentos migratórios das aves de arribação, assumindo a constante condição de estrangeiros, uma vez que não pertencem a um lugar nenhum. São estrangeiros na terra alheia e na própria terra. O retorno os faz perceber que o seu lugar de origem (campo) não é mais o mesmo e que as experiências de vida que levaram na cidade para a qual migraram também os transformaram, despertando um comportamento dúbio e fragmentado.

Nessa perspectiva, a tese pretende analisar como o romance Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, se consolida no cânone literário brasileiro, contribuindo para a formação da continuidade literária do país ao tomar a ficção regionalista, em especial dos anos 30, como herança, sem se deixar reduzir ao localismo. O importante é observar como o autor traz à sua obra resíduos da tradição regionalista atualizados em uma Galileia universal e moderna. Em outras palavras, busca-se mostrar como o romance explora as possibilidades de atualizar sua herança cultural, reconstituindo rastros e ressignificando resíduos de uma tradição regionalista inesgotada de sentido por considerar a tensão histórica entre o local e o global.

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1. GALILEIA: uma trama dialógica com a tradição regionalista

Se tomarmos, por exemplo, o conceito de dialogismo sistematizado por Bakhtin (1997), podemos dizer que a literatura nasce da e na literatura, o que nos remete à ideia de relações dialógicas entre uma voz e outra expressa em um mesmo texto ou textos diferentes, advindas do passado ou do presente. Como diz Kristeva (2005, p.68), na esteira de Bakhtin, ―todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos‖. Por essa via, entende-se que o diálogo entre obras constitui a literatura, em que um escritor, apesar de não encontrar uma palavra que já não tenha sido usada por outro, é capaz de atribuir-lhe (a palavra) novo sentido, ligando múltiplos discursos entre várias vozes.

Em sua obra Problemas da poética de Dostoievski (1997), Bakhtin aponta para o caráter dialógico do texto, que não pode ser considerado isoladamente, nem tampouco restrito a voz individual de quem narra, pois ele é sempre produto de uma interação social entre indivíduos em determinado contexto sócio-ideológico. Por isso, é importante também, levar em consideração o tempo histórico e o espaço social de interação, pois as relações dialógicas são determinadas pela situação social presente e pelo meio cultural, sendo organizadas, no que diz respeito ao seu conteúdo e significação, fora do indivíduo. Por essa razão, o texto é um produto da interação social. Nessa perspectiva, ―viver significa participar de um diálogo‖ (BAKHTIN, 1997, p.348), ou seja, todo texto apresenta um princípio dialógico, na medida em que constitui um elo entre opiniões e visões de mundo que nascem da interação do ser humano com os outros, processo no qual um indivíduo toma consciência de si mesmo através do outro:

Nossa fala, isto é, nossos enunciados [...] estão repletos de palavras dos outros. (Elas) introduzem sua própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, reestruturamos, modificamos [...]. Em todo o enunciado, contanto que o examinemos com apuro, [...] descobriremos as palavras do outro ocultas ou semiocultas, e com graus diferentes de alteridade (BAKHTIN, 1997, p. 314-318).

Segundo Bakhtin, a alteridade é uma condição para as relações dialógicas, uma vez que o sujeito não se enquadra numa concepção cartesiana, una, mas na ideia de que sua fala se efetiva na relação com outro, ou melhor, na diferença com o outro. Assim, o princípio dialógico se manifesta no uso das palavras que

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―assimilamos‖, ―reestruturamos‖, ―modificamos‖, mas que carrega sempre o discurso dos outros também. No romance Galileia, este entrecruzamento de discursos pode ser notado na dinâmica dialógica, por exemplo, quando o próprio narrador diz: ―em nossas conversas repercutem as vozes da família, de pais, tios e avós. Misturam-se as falas, nunca sabemos se alguém sopra em nossos ouvidos o que vamos dizer‖ (BRITO, 2008, p. 115), de modo que o romance traz como representação sujeitos constituídos de experiências múltiplas e de subjetividades plurais, tamanha a complexidade de sua existência.

O sentido de um texto é produzido tanto pelas relações dialógicas internas apresentadas pelo contexto quanto pelos diálogos que o texto estabelece com o que lhe é exterior. Isto é, embora o texto literário não apresente outras vozes, ainda sim poder ser considerado dialógico, pois se afirma a partir de enunciados produzidos anteriormente, dialogando na tentativa de confirmá-los ou polemizá-los. No romance

Galileia, além das histórias familiares retomadas, há vozes literárias externas que

acabam entrecortando a fala dos personagens. São ressonâncias literárias no texto. É o caso da seguinte fala de Raimundo Caetano: ―não posso desfazer o que fiz. Gostaria, mas não posso. Meus erros continuarão depois de minha morte‖ (BRITO, 2009, p.220). O patriarca traz em seu discurso a voz de Marco Antônio no funeral de Júlio César: ―o mal que os homens fazem sobrevive depois deles. O bem é quase sempre enterrado com seus ossos‖ (SHAKESPEARE, 2008, p.74). Desse modo, as vozes presentes no romance expressam as diferentes posições sociais que contribuíram para sua formação cultural, indicando a divergência ou convergência de interesses e valores socioideológicos que os indivíduos possuem.

Os enunciados ou textos que dialogam estabelecem uma relação de sentido que não se restringe a discutir o mesmo tema. As vozes presentes na comunicação verbal expressam as diferentes posições sociais que contribuíram para sua formação cultural, indicando a divergência de interesses e valores socioideológicos que os indivíduos possuem. É como se o sujeito perdesse o seu papel de voz principal do enunciado, ocorrendo a substituição por vozes sociais, o sujeito passa assim a ser histórico e ideológico, ao mesmo tempo fragmentado e multifacetado:

Salientamos mais uma vez que não nos interessa a influência de autores individuais, temas, imagens e ideias individuais, pois estamos interessados precisamente na influência da própria tradição do gênero, transmitida através dos escritores por nós arrolados.

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Neste sentido, a tradição em cada um deles renasce, renova-se a seu modo, isto é, de maneira singular. É nisto que consiste a vida da tradição (BAKHTIN, 1997, p.138)

Assim, para o pensador russo, o dialogismo não trata apenas de diálogos entre textos, pois compreende a natureza dialógica do pensamento humano, a natureza dialógica da ideia. A ideia não vive na consciência individual isolada de um homem, pois aí ela degenera e morre. A ideia começa a ter vida quando contrai relações dialógicas essenciais com as ideias dos outros:

O pensamento humano só se torna pensamento autêntico, isto é, ideia, sob as condições de um contato vivo com o pensamento dos outros, materializado na voz dos outros, ou seja, na consciência dos outros expressa na palavra. É no ponto destes contatos entre vozes consciências que nasce e vive a ideia. [...] a ideia é interindividual e intersubjetiva, a esfera da sua existência é a comunicação dialogada entre consciência. A ideia é um acontecimento vivo, que irrompe no ponto de contato dialogado entre duas ou várias consciências. Neste sentido, a ideia é semelhante ao discurso com o qual forma uma unidade dialética. Como o discurso, a ideia quer ser ouvida, estendida e ―respondida‖, por outras vozes e de outras posições. Como o discurso, a ideia é por natureza dialógica. (BAKHTIN, 1997, p.86-87).

Para Bakhtin, o que importa não é mais a palavra ou qualquer outra forma, mas a circulação discursiva, na qual a diferença de entoação é o que faz sentido. Diz ele: ―A vida da palavra está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra‖. (1997, p. 203). O encontro desses múltiplos discursos ou vozes díspares provoca, no espaço do texto literário, uma relação de tensão, de um movimento dinâmico entre os tempos e vozes do presente advindas de uma articulação, nem sempre simétrica, com o passado. Trata-se de um espaço heterogêneo que dá à modernidade o sentido de uma tradição polêmica, porque plural.

Partindo de tal perspectiva, pode-se dizer que Galileia assume uma postura dialógica entre tradição e modernidade, através do discurso do narrador, Adonias, que retoma as histórias do passado de sua família e refaz os mesmos caminhos percorridos por seus antepassados, ao retornar ao sertão para só assim, em contato com os outros, reconhecer a sua própria identidade. Isso, porque, na perspectiva do pensamento bakhtiniano, a identidade é um movimento em direção ao outro, um

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reconhecimento de si pelo outro, que tanto pode ser a sociedade como a cultura. Por isso, a identidade de Adonias se constituirá como fragmentada, uma vez que será produto de interações marcadas pela influência de contextos socioculturais diferentes: valores da experiência moderna capitalista versus valores da experiência regional tradicionalista. Assim, as relações dialógicas presentes na Galileia evidenciam o conflito entre o que restou da concepção regionalista e o que o sertão absorveu da modernidade, como se nele conjugassem as relações mais díspares, sintetizando mundos e discursos justapostos num ambiente, agora, cosmopolita.

O sertão em Galileia aparece reelaborado, reformulado, em uma perspectiva que o constitui como um recorte regional atualizado, ressignificado. Porém, é preciso entender que aquilo que a obra regionalista contemporânea apresenta de novo está, na verdade, impregnada de resíduos culturais anteriores. Isto é, segundo Raymond Williams (1979), na literatura tudo é residual, uma vez que há reminiscências da cultura tradicional no discurso do presente. O modo de pensar, a cultura e os valores de uma determinada época, de um determinado grupo social pode ser percebido à base do resíduo de um período anterior, produzindo uma literatura contemporânea em constante diálogo com a tradição.

Assim, para procedermos à análise do romance, é necessário estabelecer como se configura a tradição no meio literário. Para essa compreensão, é preciso reconhecer a tradição não como um peso morto, tampouco como o registro de um passado estagnado. Trata-se, pois, de um passado que se inscreve no presente à base do resíduo, de modo que a tradição é, de forma geral, um ponto de referência de onde parte o processo de criação de todo artista, seja para estabelecer com ela um diálogo simétrico, seja para criar um espaço de assimetria. Conforme Lourival Holanda (2019), negar a tradição ou dispensá-la seria ―perder o norte‖.

1.1. TRADIÇÃO: uma herança cultural

O autor, ao emitir seu brado em direção ao passado, fá-lo trazendo-o para o seu presente histórico, como quem se lança na articulação do tempo. Sabe que o passado não lhe surge como fardo pesado, mas como fonte de criação com a qual dialoga para converter seu legado cultural num movimento de tensão entre a cultura herdada e o desejo de afirmação de uma nova singularidade cultural, entre o que se avança a partir do que se herda. Nessa perspectiva, quem se move para o passado,

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é válido dizer, faz também o movimento inverso: move-o para o presente, de modo que essa dinâmica se dá a partir de dois princípios nucleares: por um lado, ele faz do passado uma matéria de culto, uma celebração que constitui a própria tradição (BORNHEIM, 1987) que será reenviada a gerações vindouras; por outro, ele procede a uma atitude literária de recriação desse mesmo passado, convertendo-o num fluir permanente. É o que sugere, no romance ora analisado, a cena a seguir: ―Mulher em motocicleta carrega uma velha na garupa e tange três vacas magras. Dois mitos se desfazem diante dos meus olhos, num só instante: o vaqueiro macho, encourado, e o cavalo das histórias de heróis, quando se puxavam bois pelo rabo.‖ (BRITO, 2008, p. 8). A cena descrita pelo narrador o faz revisitar o passado, através de uma rotina típica do espaço sertanejo: tanger vacas. Porém, essa cena, ao mesmo tempo em que traz a representação da cultura regional, recria o passado, evidenciando as modificações sofridas pela influência de processos de modernização. Em comparação com a conjuntura testemunhada durante a infância, a cena representava uma mudança de padrões sociais e de técnicas, percebida também pelo personagem no caminho de volta, na sequência à saída da fazenda:

Duas mulheres tangem o gado numa motocicleta. A mesma cena que vi antes agora me parece graciosa. O poder masculino cede lugar ao feminino. Antônio buzina, aceno com a mão, elas também buzinam e sorriem para mim. São bonitas. O que pensam dos homens? Com certeza já não se escondem na cozinha e nos quartos da casa, atravessam as salas, ganham os terreiros, as ruas, as cidades (BRITO, 2008, p. 227).

A reflexão em relação à ―mesma cena‖ dá-se por uma questão de adaptação a uma realidade em transformação que o próprio narrador-personagem vinha testemunhando em função da estada na Galileia. O que causa estranheza na chegada, já se apresenta ―graciosa‖ na saída, porque o passado se faz presente de maneira ressignificada. Tal cena nos remete à emancipação feminina do território doméstico e domínio patriarcal, ―ganham as ruas, as cidades‖. O papel social feminino agora não se limita às restrições de espaços e ao controle de suas condutas a partir de uma dimensão de mando e subordinação. O romance revela uma nova imagem da mulher, assim como faz, por exemplo, Francisco Dantas em

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Trazia essa mania muito feia de passar na frente do marido lhe desfazendo as virtudes. Benzia os quefazeres que lhe cabiam e se enfronhava nos dele com uma gana desapoderada, a ponto de passar da conta desse território reservado à pessoa mulher. [...] Por insistência dela, este Cassiano se tornou um homem módico, sensato, morigerado, mas sem erro algum a reparar – não esqueçam esse porém! Mulher franca, sem um pingo de pedantismo, aberta aos sacrifícios. Com ela viva, de chave no cós da saia e rédeas presas na mão, sabendo dar bom governo, o sobrado entrou nos eixos, e a Varginha prosperou, vicejando em vários melhoramentos. Se Arcanja andava pelo meio, não havia prejuízo: todo negócio rendia. [...] Ela vestia calças e saía a tomar conta da diária, fiscalizar o serviço, fazendo cair em bicas o suor dos empregados, reparando em tudo como um fazendeiro calejado em boas transações, e coisa e tal. Mulherzinha atirada! [...] O povo até debicava que nascera para macho. (DANTAS, 1997, p. 298-299)

Quanto ao romance em questão, conforme Medeiros (2013), Arcanja sonhava em ser professora de piano e independente da ideologia que aprisionava as mulheres ao domínio masculino. Porém, não viver em conformidade com as regras da sociedade patriarcal levava a personagem a um julgamento social que a condenava ao fracasso associado à imagem da solteirona. Assim, Arcanja se vê obrigada a recorrer ao casamento para fugir da hostilidade social. Casa-se com o primo, Cassiano, estabelecendo mais um arranjo que um matrimônio, já que ambos se beneficiam dele. Cassiano livra Arcanja da repressão social e Arcanja salva os negócios da família de Cassiano. Porém, ao mesmo tempo que Arcanja adere a ordem tradicional, através do casamento e anulação dos seus sonhos, ela também a subverte, uma vez que é ela quem toma o contorno de chefe do lar, capaz de gerir a casa e buscar os meios para sustentá-la, dirigindo os empregados e regendo os negócios da família. Desse modo, Arcanja inverte os papéis estabelecidos na ordem patriarcal que determina como função do homem manter o poder da família e à mulher os trabalhos domésticos. Representa uma espécie de transição da figura feminina dividida entre os conflitos psicológicos e sociais, com dificuldade em se adaptar aos deveres e espaços reservados a mulher. Assim, representa, simultaneamente, a mulher tradicional e a mulher moderna. Segundo Herasmo Braga de Oliveira Brito (2017), a autonomia do personagem feminino é uma das marcas que singularizam o regionalismo contemporâneo, ‖sobretudo no exercício da posse de si tanto nas questões subjetivas como os sentimentos, desejos, vontades, como na defesa das suas ideias, na valorização pela igualdade de ser mulher‖ (BRITO, 2017, p.23)

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Ambas as cenas são ilustrações de um passado que se faz presente de forma atualizada. Nessa perspectiva, os dois autores contemporâneos, Ronaldo Correia Brito e Francisco Dantas3, estabelecem uma interação dialógica, conforme Bakhtin (1997), com a tradição regionalista. Porém, o discurso e a mentalidade patriarcal internalizados no sertão absorvem novos códigos de conduta que adaptam o passado ao contexto social do presente, o que, de acordo com Kristeva (2005), constitui um movimento contínuo de ―absorção e transformação‖. Em outras palavras, o discurso do passado está ativo no presente, mas de forma atualizada, exatamente porque se adaptou ao novo ambiente, como estabelece a teoria de Raymond Williams (1979) acerca do resíduo e de Walter Benjamin (2006) sobre o rastro que será desenvolvida no segundo capítulo.

Seja na perspectiva de afirmação do passado regional, seja na perspectiva de promover um passo adiante, conforme Roberto Schwarz (2005), vemos interações dialógicas e discursivas da literatura contemporânea com a tradição literária constituída, nesse caso estudado nesta tese, com regionalismo brasileiro como se trata de uma herança recebida (CANDIDO, 2014).

Segundo Bornheim (1987) a tradição significa entregar, passar algo para outra pessoa, ou passar de uma geração a outra geração como uma herança cultural. Por meio da tradição, o passado é retomado e convertido em matéria do presente, isto é, a herança recebida é continuamente refeita pelo presente, participando de um processo de recriação pela modernidade. No entanto, isso não retira de cena a pretensão de a tradição se afirmar como continuidade permanente, numa movimentação em que ―algo é dito e o dito é entregue de geração em geração.‖ (BORNHEIM, 1987, p.18)

Desse modo, a tradição é o que permite ao passado vigorar e permanecer ativo, como resíduo (WILLIAMS, 1979), confrontando-se com o presente e dando uma forma conflitante e sempre inacabada ao que somos. O que se busca na tradição não é uma mera repetição do vivido como experiência, nem a superação do seu legado. O que se observa é que ela interage com a modernidade, uma interação entre o antigo e o novo, onde as gerações posteriores absorvem novos costumes sem abandonar sua herança cultural, num procedimento em que algo se repete e se

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Esclarecemos que não é intenção nossa, no presente trabalho, analisar as duas obras, mas apenas ilustrar ou demonstrar, tendo identificado a recorrência nas obras, como a literatura contemporânea mantém relações de afirmação e descontinuidade em relação ao passado regional.

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reinventa. Tal procedimento pode ser notado, por exemplo, no romance Galileia durante a viagem dos primos pelo sertão. O cenário percorrido é de mudanças, é assim que o narrador apresenta a paisagem do presente, comparada a do passado, de modo que o mundo percebido não é mais o mesmo, é de completa estranheza:

Imagino a casa dos meus avós derrubada por tratores, dando lugar a uma rodovia. O barulho forte das máquinas e as luzes dos faróis me deixam a impressão de que estou noutro planeta. Mas não estou. O sertão continua na minha frente, nos lados, atrás de mim. O asfalto fede. Já chorei por causa dessa ferida preta, cortando as terras. (BRITO, 2009, p.8)

Aqui há um embate entre o mundo considerado rudimentar – o do sertão – e o tomado como civilizado – o espaço urbano, representado pelo asfalto, pelas máquinas e luzes dos faróis, porém, o sertão permanece, sobrevive aos elementos da modernidade, como diz Adonias ―continua na minha frente‖. Em certo sentido, a fala do narrador faz ecoar a voz de Riobaldo de Grande sertão: veredas de Guimarães Rosa: ―O sertão está em toda a parte.‖ (1983, p. 9), ―Sertão: é dentro da gente.‖ (1983, p. 220), ―O sertão é do tamanho do mundo.‖ (1983, p. 55). Riobaldo, diferentemente de Adonias, nunca saiu do sertão, conhecendo-o através do que vê e do que experimenta, mas assim como Adonias, que, mesmo não vivenciando as transformações desse ambiente, reconhece-o como dimensão maior, é travessia infinita para o homem e como tal, revela-se a cada instante, fazendo-se presente em toda parte. Portanto, o sertão não se configura como realidade una, delimitada pelo aspecto geográfico ou fronteiras espaciais, alarga-se, tornando impossível estabelecer suas demarcações. É o que se irradia no romance ora em análise, conforme veremos mais adiante, no capítulo dedicado à análise.

Ao que parece, o sertão não cabe em um conceito que dê conta da sua dimensão, pois está sempre se transformando. A ideia de um sertão onde tudo se transforma ou onde tudo é muito misturado faz com que o homem se desprenda de uma concepção de mundo sertanejo carregado de verdades consolidadas, pois nenhum sujeito é uma realidade una. Por isso, a linguagem, os discursos estão em permanente evolução. É através da linguagem que se inscrevem pontos de vista e visões ideológicas inseparáveis das transformações de mundo em constante atualização, o que o texto literário apreende e representa a seu modo:

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É pela linguagem poética que se renova o mundo, em nós fazendo ver diferente. Pois, se a visão que cada um tem da realidade está relacionada com seus hábitos e associações verbais, então o escritor, quando revolve a estrutura da língua, está libertando o homem de seus condicionamentos mentais. Assim, ele ajuda a enxergar realidades novas, explorando as possibilidades latentes dentro do sistema da língua. (HOLANDA, 2019, p. 35).

O diálogo entre essas obras e seus autores constitui uma tradição, segundo a visão Bakhtiniana que reconhece a importância do dialogismo na produção literária, na medida em que para ele um indivíduo, neste caso um escritor, não pode ser inteiramente compreendido se considerado isoladamente. O sentido de tradição corresponde a uma compreensão de temporalidade e atemporalidade, simultaneamente, pois dessa união temporal surge no sujeito a sua concepção de contemporaneidade. Uma obra há de ser relacionada a toda uma ordem que lhe é anterior, para que possa ser compreendida. Mais importante que a ênfase dada aos sentimentos e características pessoais é a necessidade de que o autor desenvolva uma consciência do passado para que estabeleça, segundo Holanda (2019) seu ―norte‖. Nessa perspectiva, a obra de um escritor se inscreve numa ordem discursiva que o antecede, porém ele retoma o discurso e lhe dá novo sentido.

As inovações empreendidas por um escritor se dão pela capacidade e necessidade de mutação do ser humano que se encontra refletida em sua obra. Por isso, pode-se afirmar que existe uma relação entre a experiência humana e a de escritor desenvolvida pelos artistas, onde a primeira é baseada na realidade empírica e a segunda pautada na imaginação, na fantasia, no fingimento ou na fuga:

A necessidade de mudar decorre da necessidade intrínseca do artista de desenvolver a si mesmo e seu instrumento de trabalho. Pressupor a imutabilidade de ambos ao longo do tempo é imaginar possível a imutabilidade do próprio ser humano ao longo de toda uma vida. Por conseguinte o artista mal ou bem, carrega dentro de si o germe da mudança. Não é verdade, porém, ―que o desenvolvimento de um escritor é uma função do seu desenvolvimento como homem, mas é possível dizer que existe uma estreita analogia entre a espécie de experiência que desenvolve um homem e aquela que desenvolve um escritor. (DAUNT,2004, p. 51)

Diríamos, pois, que a tradição não se afirma a partir de uma repetição passiva, uma vez que não se pode apenas seguir os mesmos aspectos que a geração predecessora, a herança cultural tem que apresentar inovações, sem as

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quais o passado não teria sentido. Portanto, na literatura, a tradição não consiste num legado a ser repetido resignadamente pelas novas gerações, mas ―um patrimônio, um potencial inesgotável que deve ser constantemente desconstruído, isto é, reinterpretado e relançado ao futuro.‖ (PERRONE-MOISÉS, 2016, p.52)

Assim, na perspectiva de Jacques Derrida, retomada por Leyla Perrone-Moisés (2016), todo escritor pode ser tomado como um herdeiro de um passado de ordem preexistente, cuja totalidade é alterada pela irrupção do novo, mas à qual este deve se adaptar harmonicamente, sob pena de não sobreviver, visto que essa adaptação é o seu teste de valor e garantia de vida: ―o herdeiro deve responder a uma intimação dupla e contraditória: reafirmar o que veio antes e se comportar livremente com respeito ao passado. Ser fiel à herança não é deixá-la intacta; é transformá-la, relança-la, mantê-la viva‖ (PERRONE-MOISÉS, 2016, p.52). Pensada assim, a tradição com a qual a nova obra dialoga se torna mais que um ponto plácido de referência (DAUNT, 2004), mas uma ―família literária‖, cuja herança não se pode recusar.

Desse modo, é importante ressaltar que a literatura está em constante diálogo com a tradição, sofrendo influência tanto de fatores sociais como de outros textos que constituem um legado cultural. Porém, uma literatura influenciada pela tradição, não se restringe a um diálogo com seu país de origem ou região, pois vivemos em um mundo interligado. Nesse caso, retomar uma tradição significa também, alargar o seu território de permanência e sua capacidade de atualização e ressignificação. O escritor, por essa via, manifesta, em sua literatura, a consciência de seu passado histórico, e isso lhe permite interagir com contextos e culturas distintas. A literatura depende de certa continuidade da tradição, se configurando ao longo da história literária para que ela de fato se consolide. Como descreve Roberto Schwarz (2005), o sentido do ―nacional subtraído‖ aponta para uma dinâmica da cultura nacional em que, historicamente, o Brasil e a América Latina carecem de um influxo próprio, importando as tendências culturais conforme o prestígio do país imitado. No entanto, a preocupação de Schwarz não é com a cópia em si, mas com a troca ideológica sem o desgaste da doutrina anterior, que deixa a cultura do país sem métodos ou concepções e não desenvolve uma produção amadurecida.

é fácil observar que só raramente a passagem de uma escola a outra corresponde, como seria de esperar, ao esgotamento de um projeto;

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no geral ela se deve ao prestígio americano ou europeu da doutrina seguinte. Resulta a impressão decepcionante da mudança sem necessidade interna, e por isso mesmo sem proveito. O gosto pela novidade terminológica e doutrinária prevalece sobre o trabalho de conhecimento, e constitui outro exemplo, agora no plano acadêmico, do caráter imitativo de nossa vida cultural. (SCHWARZ, 2005, p.110-111)

Nesse sentido, o que importa é a novidade. Esta, tanto no plano literário como no intelectual, era bem-vinda, uma vez que, ―as correntes de pensamento teórico-críticas eram invariavelmente substituídas por outras, mais recentes, sem que as primeiras estivessem plenamente solidificadas‖ (SILVA, 2005, p.50). Porém, o gosto pela novidade gera um outro problema: a desvalorização das gerações predecessoras. Segundo Schwarz, um dos poucos que soube retomar criticamente o trabalho de seus predecessores foi Antonio Candido, o qual já havia apontado para uma sensação de inadequação e descontinuidade baseada na não imitação e na não reprodução de uma tendência para se chegar a uma vida intelectual substantiva.

A nenhum deles faltou informação nem abertura para a atualidade. Entretanto, todos souberam retomar criticamente e em larga escala o trabalho dos predecessores, entendido não como peso morto, mas como elemento dinâmico e irresolvido, subjacente às contradições contemporâneas. (SCHWARZ, 2005, p.112)

Antonio Candido não deixou de absorver as novidades, mas também não desprezou seu legado cultural, compreendendo a geração predecessora como fonte inesgotável de sentidos. Assim, podemos vivenciar o passado como uma dinâmica que persiste no presente, porém carregada de inovações. O que a produção de Antonio Candido sugere é que a imitação (tradição) não pode se configurar como uma cópia inerte do passado, pois a falta de inovação levaria à estagnação da tradição e sua consequente morte. O verdadeiro sentido da tradição se dá pela capacidade de um escritor modificar nossa concepção do que passou, bem como há de modificar o futuro, pois rever o passado implica reescrever o futuro. Afinal, a literatura não consiste num ―patrimônio imóvel‖, ao contrário: ―é incessantemente disseminada e inseminadora, infinitamente reinterpretada.‖ (PERRONE-MOISÉS, 2016, p.53)

Em Formação da Literatura Brasileira, Candido faz uma distinção entre o que ele considera manifestação literária e literatura propriamente dita. O período

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correspondente ao século XVI até meados do século XVIII configura-se como uma produção de cunho formativo, anterior à constituição de uma literatura brasileira. São manifestações literárias escritas por jesuítas, com o intuito de catequização dos índios e pelos colonizadores, que pretendiam descrever o território brasileiro ao rei de Portugal como uma espécie de mina de exploração. Embora Antonio Candido reconheça o valor dos sermões e peças literárias produzidas pelo padre José de Anchieta, é importante lembrar que ainda não havia a consolidação de uma tradição literária, pois não existia uma obra que desse continuidade a outra e, muito menos, leitores. Em relação ao autor Gregório de Matos, representante do Barroco, Candido enfatiza que, apesar do destaque de sua obra, ele reproduzia os moldes da tradição europeia, o que dava à sua produção o caráter, ainda, de manifestação literária. Nesse contexto, a literatura brasileira é considerada como um ―galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas. Os que se nutrem apenas delas são reconhecíveis à primeira vista, mesmo quando eruditos e inteligentes, pelo gosto provinciano e falta do senso de proporções‖ (CANDIDO, 2014, p.11). O crítico reconhece como literatura propriamente dita um fenômeno de tradição composto pela tríade autor-obra-público que permite a formação de um sistema tradicional capaz de formar herdeiros culturais. Quando a literatura toma dimensões de um sistema ―nacional‖ que permite a consolidação do triângulo defendido por Candido, desenvolve a possibilidade de transmissão das obras tanto no espaço quanto no tempo, produzindo a tradição que consente reconhecer a produção literária local como uma literatura nacional. Nessa dinâmica, segundo Candido, a literatura consiste em um ―aspecto orgânico da civilização‖ a partir da:

existência de um conjunto de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor, (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros. O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana, a literatura, que aparece sob este ângulo como sistema simbólico, por meio do qual as veleidades mais profundas do indivíduo se transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das diferentes esferas da realidade (CANDIDO, 2014, p.25).

A partir desse sistema de tradição literária desenhado por Antonio Candido, podemos considerar o Arcadismo como ponto de partida da literatura brasileira propriamente dita. A obra Caramuru (1781), de Santa Rita Durão e O Uraguai

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(1769), de Basílio da Gama, por exemplo, apesar de ainda representarem padrões europeus de criação, traziam a expressão de certa originalidade através da preocupação com a cor local e os relatos épicos de histórias e personagens tipicamente brasileiros. Esse mesmo aspecto de originalidade se intensifica com a produção intelectual dos românticos. Ou seja, ao desenvolver o projeto literário iniciado no Arcadismo, os românticos passam a integrar o sistema de Candido, garantindo o princípio básico da tradição: formação de uma continuidade literária. A partir de então, podemos considerar a formação de uma literatura nacional produzida não por sujeitos isolados, mas, por autores inseridos num ambiente cultural compartilhado, capazes de contextualizar sua obra ao seu meio e a sua realidade, assim como a do seu público leitor. O sistema estava consolidado. Através das obras, não só o público entraria em contato com os autores, mas também estes se comunicariam entre si, seriam herdeiros uns dos outros. Em outras palavras, o sistema é tradição.

Quando a atividade dos escritores de um dado período se integra em tal sistema, ocorre outro elemento decisivo: a formação da continuidade literária, – espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo. É uma tradição, no sentido completo do termo, isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar. Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização (CANDIDO, 2014, p.25-26).

Para o crítico, a literatura é um processo dinâmico, um ―fenômeno de civilização‖, que garante ―a formação da continuidade literária‖, ou seja, uma tradição. É através dela que a ―transmissão da tocha‖ se firma como propagação de ideias e valores sociais de uma determinada época que podem ser respeitados ou rejeitados. Independente do procedimento de recepção da ―tocha‖, a tradição cumpre seu papel de fazer suscitar reflexões e diálogos que consiste na literatura propriamente dita. Assim, ―sem tradição não há literatura‖.

Nessa perspectiva, pode-se dizer que Ronaldo Correia Brito integra o sistema literário brasileiro, já que Galileia estabelece um diálogo com o passado regional no mundo contemporâneo, considerando o sistema não apenas como Candido pensou acerca do período de formação de nossa literatura, mas também como aberto a permanente renovação no contexto atual. Essa relação dialógica dá sinais não

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apenas de retomada da tradição regionalista, mas da inserção de sua obra na ―formação da continuidade literária brasileira‖, reinscrevendo-a e atualizando-a.

1.2. GALILEIA: da tradição regionalista à prosa cosmopolita

No Brasil, segundo Afrânio Coutinho (1986), a prosa de ficção praticamente inexistiu durante o período colonial. Os prosadores românticos, a partir da década de 1840, viram-se imbuídos do mesmo espírito nacionalista que os poetas, mas acrescido da missão de criar as bases de uma tradição. Ainda que o processo de configuração do sistema literário de Candido e o interesse de uma produção literária autêntica tenham florescido tardiamente em solo brasileiro, causando falhas no desenvolvimento cultural e contribuindo para a inexistência de precursores, o Romantismo conseguiu avançar a passos largos na formação de uma tradição literária brasileira.

Para Antonio Candido (2002), na literatura brasileira, o regionalismo nasceu articulado ao ideal de independência nacional, pois a luta por liberdade política, econômica e social se estendeu ao campo cultural e literário, uma vez que os escritores desempenharam o papel de revelar o Brasil encoberto pelo domínio colonial. Na visão de Candido, o Romantismo desenvolveu uma produção literária de cunho nacionalista baseada na exibição de aspectos locais, regionais. Assim, o regionalismo romântico expressa o sentimento ufanista através da exaltação da terra e do homem tipicamente brasileiros, ainda que numa perspectiva de representação reduzida ou restrita do nosso país.

Quanto ao regionalismo no Romantismo, Candido (1997) afirma que o romance brasileiro tem origem regionalista e de costumes, desenvolvendo enredos e tipos humanos restritos as descrições das experiências de vida social urbanas e rurais. De acordo com Tezza (2010, p. 17), embora o romance do século XIX, na Europa, apresente características de um gênero predominantemente burguês e urbano, os românticos brasileiros o importaram de maneira adaptada às suas necessidades literárias, transformando-o em um ―veiculo‖ para exprimir ―a realidade segundo um ponto de vista diferente, comparativamente analítico e objetivo, de certa maneira mais adequado às necessidades expressionais do século XIX‖. (CANDIDO, 1997, p.109)

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Desse modo, o objetivo dos autores regionalistas do século XIX consiste em representar um sertão contrário à cidade, em especial o Rio de Janeiro por ser considerada a única com aspectos efetivamente urbanos do Brasil nesta época. A figura do homem sertanejo aparece como um recurso para expressar o ideal nacionalista dos românticos, já que o indianismo enfraquecera nas décadas de 1860 e 1870. O homem do sertão, ao contrário do índio, ganha o status de representante fiel do homem brasileiro, por permanecer avesso às influencias europeias que predominavam no ambiente citadino. O sertanejo, então, passa a protagonizar os romances de Bernardo Guimarães, Taunay, Franklin Távora e José de Alencar, em substituição à imagem do índio materializada, por exemplo, no personagem central de O Guarani (1857), Peri, de José de Alencar. Seguindo a produção regionalista romântica, podemos destacar o romances O gaúcho (1870), de José de Alencar mostrando como pano de fundo a Revolução Farroupilha e Manoel Canho como domador de cavalos, com final trágico para ele e a amante que o traía; Inocência (1972), de Visconde de Taunay, romance ambientado no sertão do Mato Grosso, tendo como protagonista uma jovem de 18 anos, cujo nome intitula a obra, que vive sob o domínio de um regime patriarcal em que a honra familiar estava acima de tudo; A escrava Isaura (1975), de Bernardo Guimarães, que narra as desventuras de uma escrava branca de caráter nobre, vítima da obsessão de seu senhor, evidenciando os ideais abolicionistas da época; O sertanejo (1875) inspirado no ciclo do gado, conta a própria saga de Arnaldo, alter ego do autor José de Alencar, em cenário do interior cearense; e O cabeleira (1976), de Franklin de Távora, que conta a história de José Gomes e seu pai Joaquim Gomes, precursores do cangaço do Pernambuco. Ainda que o sertanejo, nessas obras, não seja corrompido pelos padrões europeus de produção como o índio, ele sugere uma idealização heroica, típica do Romantismo, que o afasta da realidade brasileira.

O regionalismo romântico não foi eficaz na tentativa de consolidar os conflitos humanos na figura do sertanejo, dando maior destaque para os aspectos exóticos e pitorescos desse personagem. Segundo Candido (2014), a artificialidade do regionalismo inicial não estava apenas na reprodução do linguajar da região ou na representação de seus hábitos, mas na dificuldade de perceber que o homem sertanejo também era humano, e não mais um elemento regional.

Os primeiros autores regionalistas, José de Alencar, Visconde de Taunay, Franklin de Távora e Bernardo Guimarães, escreveram suas obras a partir de uma

Referências

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