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2. RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA ATUALIZADOS

3.3. O LABIRINTO DE ADONIAS

Na bíblia, Adonias foi o quarto filho do Rei Davi. Após a morte de seus irmãos mais velhos, Amnon e Absalão, tornou-se herdeiro do trono. Mas Salomão, um irmão mais novo, filho do adultério do pai com Betsabeia, mulher do general Urias, morto indiretamente por ordem do soberano para que este pudesse ficar legalmente com a viúva, foi preferido por seu pai, por causa de uma promessa feita a Deus. No Templo de Jerusalém recebeu o apoio e o incentivo do sacerdote Abiatar e do general do exercito israelita Joab. Era pretensioso e sonhava em herdar de seu pai a monarquia de Judá e para que isto acontecesse armou uma conspiração. ―Ora, Adonias, cuja mãe se chamava Hagite, tomou a dianteira e disse: "Eu serei o rei". Providenciou uma carruagem e cavalos, além de cinquenta homens para correrem à sua frente‖ (BÍBLIA, Reis, 1,5). Seu pai entretanto nomeou para substituí-lo Salomão e Adonias com receio pediu refugio no Templo. Armou uma última cilada ao pretender para si Abisag, que tinha sido a última esposa do seu pai Davi. Salomão se indignou e mandou executá-lo.

Lothammer (2019, p. 117), destaca que tanto o Adonias da narrativa bíblica quanto o da Galileia desejam uma posição de prestígio na família a que pertencem. Um deseja ser herdeiro do trono, enquanto o outro luta para conquistar o respeito e a admiração de seus familiares, sendo reconhecido pelo conhecimento profissional e cosmopolita que adquiriu fora da Galileia. Ambos fracassam nas tentativas de conquistar seus espaços e cativar os vínculos familiares, sentindo-se deslocados. No sertão do Inhamuns, a imagem que fazem de Adonias pode ser percebida na seguinte fala d Davi:

Você pensa demais, sofre pelo que não compreende. Finge o mesmo fascínio da família diante de mim. Mente, controla o que faz e diz. Gostaria de mexer as pedras do jogo da onça, sozinho. Lembra o jogo que tio Josafá nos ensinou? Uma onça solitária acuada por doze cães. Quem de nós é a onça? Você? Ismael? Elias? Ou serei eu? Acho que a onça naõ é você, primo. O seu lugar na história da família é medíocre. Você não passa de um existencialista tomando nota numa caderneta. Falaram que escreve um romance. É verdade? Contribuirei para o seu livro, mas não acredito que ele seja grande coisa. Pretende escrever sobre nós, mas não sabe de nada. É incapaz de tocar feridas, sujar-se de sangue. Nem parece médico, lembra mais um cineasta por trás das lentes de uma câmera, Adonias, você filma panorâmicas, grandes angulares. Os pequenos enquadramentos, os quartos escuros não lhe interessam. (BRITO, 2008. P.80)

Médico, possível escritor da biografia familiar, Adonias, ainda sim não goza de todas as honrarias oferecidas pelos parentes, ocupando um ―lugar medíocre‖ no seio familiar, tanto que desabafa: ―Cansei de ser maltratado. Natan debocha de minha conduta médica e Salomão nem considera as investidas que faço na literatura.‖ (BRITO, 2009, p. 166). Adonias quer escrever sobre a família que ele mesmo ―não sabe de nada‖, a maior parte do tempo narra carregado de dúvidas e ―acuado‖ pelas próprias memórias e pelo medo de encarar a verdade por trás de suas origens. Narra através de ―lentes panorâmicas‖, incapazes de capturar imagens precisas, com detalhes de ―enquadramentos‖, construindo uma história fragmentada, ambígua. Quando se aproxima de alguma resposta, afasta-se, traçando um caminho de fuga, como quem se perde num labirinto. Adonias fala a partir de uma visão falha, fragmentada que o impede de desvelar os segredos da família ou conquistar o respeito dos parentes que o desafiam como tio Josafá:

Pegou o meu braço e me arrastou para um quarto, onde desenhara na parede um labirinto de pontos. Desafiou-me a chegar ao centro da arapuca, pulando a cada três obstáculos. Alguns pontos obrigavam o jogador a retornar ao princípio, ou o eliminavam do jogo. Não tive paciência de ouvir as regras do invento mirabolante. Fiz cinco avanços, mas sofri ataques e morri logo adiante. Desisti facilmente. O tio gargalhava me chamando de tolo, o que significa idiota. [...] Fez questão de repetir o que cansei de ouvir: que nunca fui bom nos jogos e não matava a charada mais besta. Somando às incompetências que os outros parentes lançam em minha cara, todos os dias, concluo que não valho nada. (BRITO, 2008, p.179)

Adonias, além de não alcançar o mesmo nível de atenção e carinho de Davi nas relações familiares, ainda é ridicularizado e feito de ―tolo‖, ―idiota‖. O que os tios pretendem ao lançar desafios mentais para o sobrinho é, na verdade, confrontar a utilidade do seu conhecimento acadêmico no sertão. A profissão de médico tão exaltada nas famílias tradicionais abastadas não encontra os mesmos aplausos na Galileia. Tanto que o avô fica sob os cuidados de uma curandeira e rezadeira. Ou seja, o conhecimento científico de Adonias é questionado e desvalorizado, porque, na família Rego castro, quem ocupa o lugar de sábio é o tio Salomão com todo suas teoria sertanejas.

Levando em conta ainda o nome do personagem, Adonias, outra analogia pode ser feita com a figura mitológica de Adonis, que, na mitologia grega, segundo Fernandes (2009), nasceu da relação incestuosa entre Mirra e o rei Cíniras de Chipre. Tal incesto é fruto da vingança de Vênus sobre Mirra, por ter perdido para ela o posto de mais bela. A vingança se efetiva quando Vênus, que também é deusa do amor, usa do seu poder para despertar a paixão da filha, Mirra, pelo próprio pai, induzindo-a ao quarto rei, sem ser vista, para manter relações com ele. Irado, ao descobrir a traição da filha, o rei planeja condená-la à morte, mas antes disso, Mirra foge e perde-se pelo mundo. Adônis é então o fruto de incesto. O abandono inexplicável de Ester e a escolha do nome de Adonias pelo avô faz surgir a seguinte insinuação elaborada por Davi:

– Adonias, por que o avô escolheu esse nome pra você, querido primo? É preciso investigar. Os únicos mistérios não são os meus. Comporte-se e pare de me olhar com assombro! Olhe pra você, primeiro, o menino dividido entre o avô e a mãe, que partiu da Galileia e nunca mais voltou. (BRITO, 2008, p. 47).

Em seu questionamento, Davi revela que o nome de Adonias fora escolhido pelo avô. Raimundo Caetano, invertendo a ordem natural em os pais escolhem os nomes dos filhos, ele é quem nomeia Adonias. A atitude do avô não só causa estranhamento como, segundo Davi, é digna de investigação. Isso produz a desconfiança de uma relação incestuosa entre pai e filha: Raimundo Caetano e Ester, a mãe de Adonias que também é mencionada por LOTHAMMER (2019, p.118). Essa suposta relação incestuosa, ganha nova entonação na voz de Ismael: ―– Adonias, não se faça de santo! Ninguém presta na família. Pergunte a Davi o que ele sabe de sua mãe Ester! Por que ela foi embora daqui?‖ (BRITO, 2008, p. 141). Adonias, tomado pela raiva, desfere uma pedra em direção à cabeça de Ismael, que o faz desmaiar ensanguentado. Ao lançar a pedra, Adonias faz a seguinte consideração: ―Ismael pronunciou o nome de minha mãe sem lavar a boca suja. Mexia em suspeitas sem provas.‖ (BRITO, 2008, p. 141). Mais uma vez, Adonias recua diante da possibilidade de se chegar à verdadeira história da família Rego Castro e, consequentemente, conhecer de fato suas origens. Em sua fala, admite a hipótese do incesto, mas não dá espaço na narrativa para o assunto, por considerar a falta de provas, nem explica o motivo de Ester se recusar a voltar à Galileia, ainda que na doença do pai.

―Incapaz de tocar feridas‖, Adonias prefere as lacunas dos segredos familiares, incluindo os seus, principalmente no que diz respeito a sua sexualidade. É perceptível a homossexualidade presente em Adonias ao transparecer um envolvimento afetivo mais profundo entre o narrador e seu primo, Ismael: ―Beije-me, Ismael, você não recusa ninguém. Beije-me do jeito que beijaram seu irmão Davi, antes que o sangrassem como um cordeiro de Páscoa‖. (BRITO, 2008, p.144). Adonias revela um sentimento que vai além de uma relação fraternal. Ao comparar o beijo que ele necessita com o beijo que supostamente antecedeu o abuso sexual de Davi, fica implícito a intensidade com a qual quer ser beijado e o contexto afetivo que pretende protagonizar com o primo. Embora Adonias não aceite e não admita, para si e para os outros, o verdadeiro sentimento que o aproxima de Ismael, essa atração é percebida por Davi que o confronta com a seguinte provocação: ―A propósito, você precisa confessar a Ismael sua paixão por ele.‖ (BRITO, 2008, p. 211). Mas ele não confessa, ainda que muitas cenas evidenciem a suposta relação homoafetiva entre Adonias e Ismael como uma que ocorre no início da viagem no interior da caminhoneta:

Pôs a mão direita sobre a minha coxa e olhou para mim. Os homens da família costumam tocar o interlocutor enquanto falam. O toque me provoca medo. Não mudaram os meus sentimentos pelo primo, desde que éramos pequenos. Sinto vontade de confiar nele, mas temo cair numa armadilha. (BRITO, 2008, p. 13).

Apesar do toque ser uma característica comum dentre os homens que se comunicam na família Rego Castro, no caso de Adonias, o toque de Ismael revela uma interpretação além da fala. O tato reativa na memória do personagem um sentimento despertado desde a infância e silenciado durante toda uma vida. Por isso, provoca medo, uma vez que ameaça revelar o que foi devidamente calado, correndo o risco de ―cair numa armadilha‖. Por mais que Adonias tente esconder, outras cenas evidenciam a forte atração física do narrador por Ismael:

Despe a camisa e finjo não reparar no peito musculoso bordado de tatuagens, nos braços igualmente tatuados. Viro o rosto para a estrada. Não seguro a curiosidade por muito tempo, volto os olhos, quero ver o restante da encenação, o stripper arrancando o cinto da calça, abrindo o zíper e deixando a cueca à mostra. (BRITO, 2008, p. 18-19).

O olhar de Adonias o trai. Ao tirar a roupa, Ismael, é observado com tanta eroticidade que é comparado a um ―stripper‖. Ao vê-lo assim, o narrador denuncia-se como aquele que vê e aprecia o que vê. Vira o rosto na tentativa de resistir ao desejo que aflora nele diante da nudez do primo, mas a curiosidade domina seus olhos. Adonias vive sob o signo da ambiguidade, dividido entre a imagem que ele esculpe de si mesmo para a família, médico bem sucedido da cidade grande feliz no casamento, e a que ele ―finge não reparar‖, sertanejo mal resolvido com tendência homoafetiva. O contato com Ismael acentua ainda mais os conflitos internos de Adonias, revelando um personagem também com identidade ―flutuante‖.

Trata-se de episódios eróticos do romance entre os dois primos, a trama da narrativa aponta para isso, e como não é, aos olhos do leitor, uma relação plenamente realizada, porque em desassossego, em conflito, a noção de erotismo, segundo Octavio Paz (1994), em A dupla chama: amor e erotismo, reforçaria seu pensamento. O erótico não é, necessariamente, uma relação concretizada relacionada ao sexo, o ato erótico consiste na manifestação do desejo, na troca de olhares, tudo traduzido pela insinuações ou pistas que a obra literária nos dá.

O retorno à Galileia e o contato com seus parentes, em especial, Isamel, coloca Adonias em confronto com sua própria identidade, que se configura sob o signo da ambiguidade. Médico criado em Recife desde os cinco anos de idade. Gosta de identificar-se como sujeito profundamente cosmopolita, tendo, portanto, superado suas raízes sertanejas e se tornado defensor dos valores da civilização que representa ao lado da família constituída dentro dos padrões sociais. Tamanha convicção cai por terra, no entanto, quando o protagonista vê-se em contato com as memórias trazidas à tona pelo percurso até Galileia, o contato com a família e os sentimentos reprimidos durante anos: ―reluto em voltar a Arneirós, temendo o encontro com a família. Sua história escrita em três séculos de isolamento guardou-se em baús que não arejam nunca, por mais que debandemos em busca de outros mundos civilizados‖ (BRITO, 2008. p.9).

Ao transitar entre duas realidades distintas: a rotina de médico com Joana e os filhos em Recife e as experiências na Galileia, Adonias se vê como estrangeiro tanto na cidade como no sertão. Não se identifica nem com o lar de origem, nem com o lar que ele próprio construiu. Essa fragmentação identitária potencializa as contradições do personagem. Ao mesmo tempo em que rejeita o sertão do Inhamuns, sente-se culpado por abandoná-lo, mesmo que fosse em função de satisfazer aspirações pessoais que não se concretizariam em Arneirós:

─ O prefeito animou-se em receber um médico filho da terra, membro de uma família ilustre. Mostrou-me o hospital sem recursos, o ambulatório acabrunhado, a equipe despreparada. Eu sonhava com residência, mestrado e especialização em Londres. Admiro os generalistas que fazem partos, pequenas cirurgias, são pediatras e clínicos. Para mim eles representam os verdadeiros médicos. Mas eu sou metido a intelectual, queria outras coisas (BRITO, 2008, p. 72).

A precariedade e o despreparo humano e estrutural que o hospital do sertão apresentava não se encaixava nas aspirações de Adonias. Não tinha o perfil de médico ―generalista‖, já que era incapaz de lidar com suas próprias urgências. Gostava mais do contato com a teoria do ―mestrado‖ e da ―especialização‖ do que com a prática dos ―partos‖ e ―cirurgias‖. Como intelectual, merecia um consultório confortável, com público mais selecionado. Por isso seu conhecimento acadêmico, puramente científico e pouco humanizado, é ferozmente criticado por alguns membros da família, em especial, o tio Salomão.

O retorno à Galileia representa um reencontro com seu passado fantasmagórico que volta a assombrá-lo na medida em que ele se distancia da esposa: ―Se Joana estivesse comigo, seria mais fácil controlar a angústia. Eu falaria dos meus receios, ou de coisas aparentemente sem significado, para refazer os laços com o mundo‖ (BRITO, 2008, p. 11-12). Por mais que o personagem tente manter o elo com a família, com a vida de médico em Recife e tudo que lhe confere segurança, os conflitos familiares o consomem e seus fantasmas o absorvem na Galileia, causando uma divisão identitária que, na verdade, o distancia dos dois mundos. Porém, enquanto se depara com as transformações do sertão, durante a viagem de volta, Adonias tenta se manter conectado às duas realidades. Na tentativa de fugir dos traumas e dos sentimentos que essa travessia desperta, o narrador compara aspectos do sertão com elementos referentes às suas experiências na capital:

As costas começam a doer e a bunda procura conforto na areia. As poltronas do consultório são bem melhores. O consultório vai bem, só aceito clientes particulares. Os planos de saúde pagam uma miséria. Preciso conferir os boletos de cartão de crédito, antes de pagar as contas. Anoto gastos na agenda. [...] Joana não se liga em contas, ganha e gasta. Joana, Marília, Pedro. O celular fora de área, máquina inútil no bolso da calça. Vou deixar na mala, enquanto permanecer na Galileia. Dormi! Sofro de narcolepsia. Apago quando estou cansado. A pele queimou demais. Esqueci o protetor solar. Esqueci de tudo nessa viagem (BRITO, 2008, p. 135-136).

Adonias não só possui uma identidade dividida, como tem consciência de sua própria fragmentação. Deseja pertencer à estabilidade e segurança da cidade moderna, mas não consegue se libertar dos rastros do seu passado na Galileia e das raízes tradicionais que o aprisionam no sertão. O resultado desse conflito é o dilaceramento do personagem que, ao final da narrativa, busca um lugar neutro, para aliviar suas angústias. A parada se dá na cidade de Russas, no momento da festa do padroeiro, São Gonçalo. Julgando estar num ambiente livre de referências conflituosas, Adonias se perde em meio a multidão, mas o seu conflito o persegue na figura de um santo de gesso que um transeunte deposita em suas mãos. Ícone de uma tradição que Adonias despreza, mas não consegue se desligar, o santo causa ainda mais desorientação no personagem. O cuidado com que o narrador não permite que o objeto caia, apertando-a contra o peito, sinaliza o poder que essa tradição exerce sobre ele, ainda que pareça ser indiferente a ela.

Apalpo o bolso não encontro o aparelho celular. Agito-me. As motos aceleram o giro, os bailarinos aumentam o frenesi da dança. Um desconhecido me entrega o santo, tento recusá-lo, mas o homem desaparece na multidão. Sustento a imagem de gesso enfeitada de fitas e flores de papel. Aperto-a contra o peito, pois temo deixa-la cair. Passam-me a garrafa de aguardente, e bebo mais (BRITO, 2009, p. 235-236).

Portanto, no final do romance, Adonias fica pelo meio do caminho, opta pela travessia.Isso aponta para algo não plenamente concluído, acabado, pois o caminho sugere a ideia de movimento e a travessia como algo que está permanentemente acontecendo. Enquanto o percurso de volta à Galileia foi acompanhado pelo desespero de quem tem medo do reencontro com seu passado, a saída da fazenda rumo a Recife ocorre com ares de tranquilidade. Porém, a distância que toma da Galileia não o distancia das incertezas que carrega sobre suas referências identitárias, ora sertanejo, ora cosmopolita. Por isso, escolhe permanecer em transito, ―não quero o Recife. Ao lado do avô e dos parentes só pensava em voltar para casa. Agora prefiro esse espaço neutro, um caminho que me leve a lugar nenhum‖ (BRITO, 2009, p. 23). Esse ―espaço neutro‖ revela a condição de estrangeiro do personagem, que não se reconhece em ―lugar nenhum‖, simboliza um desenraizamento, mas não indica falta de referências.

Conheço intimamente os dois lugares, mas não pertenço completamente a nenhum deles. E esta é exatamente a experiência diaspórica, longe o suficiente para experimentar o sentimento de exílio e perda, perto o suficiente para entender o enigma de uma ―chegada‖ sempre adiada. (HALL, 2003, p.415)

A identidade de Adonias se assemelha a uma ―experiência diaspórica‖, em que o personagem se sente estrangeiro mesmo em lugares familiares, o que o leva a um movimento de migração constante. A sensação que a travessia dá é paradoxal: ao mesmo tempo em que ela não leva o personagem a lugar nenhum também não o deixa parado. Estar na fronteira indica um posicionamento de rejeição tanto do lugar de saída quanto de chegada, como se o narrador analisasse outras opções de mover-se em busca de respostas para os seus conflitos. Adonias parece, então, seguir a cartilha de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas quando diz que ―o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da

travessia‖ (ROSA, 1994, p.86). Enquanto a travessia pode ser uma escolha, Adonias se sente livre dos limites que o aprisiona.

Apagam as luzes da praça, e a única claridade agora vem dos fogos. Acho impossível encontrar Antônio, ou ser encontrado por ele. Os sons se misturam; a dança torna-se furiosa, as pessoas se empurram, gritam, esfregam os corpos molhados de suor. O círculo de motos não me permite seguir adiante, estou ilhado. Procuro novamente o celular no bolso, mesmo sabendo que ele desapareceu. Olho o relógio da torre, iluminado pelas girândolas, mas não distingo os ponteiros. – vou perder o avião para o Recife – constato aterrorizado. A embriaguez cessa de repente. Sem a chance de partir, tudo parece sombrio e feio; o coração se tranca, a boca amarga. Os dançarinos passam cantando e arrancando o Santo dos meus braços. Tento alcançá-los, mas eles desaparecem. Sinto-me sozinho. Procuro alcançar o outro lado da praça e encontro a mesma paliçada de motos. Recuo porque não consigo transpô-la. Já não sei que direção tomar. Até bem pouco tempo, o mundo em volta de mim era compreensível e amável. Agora, seu significado me foge por completo. (BRITO, 2008, p. 236)

O desfecho de Adonias é a perda de direção, sem saber se retorna para Recife ou se volta à Galileia, opta pela estrada, um lugar incerto como sua identidade dividida entre o sertão e a cidade. Como o significado do mundo foge a compreensão do narrador, ele é incapaz de reconhecer o lugar de ida e o lugar de partida, fazendo da travessia seu labirinto interno, estrangeiro em sua terra de origem, estrangeiro na terra que se fixou, não encontra saída para sua divisão identitária. Seu lugar, portanto, é o meio, em uma metáfora da imprecisão, da fragmentação, da inconstância e da falta de direção do indivíduo perdido no seu próprio labirinto, experimentando um eterno voo migratório, tal qual ave de arribação sem pouso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar o romance Galileia, constatou-se a pertinência da obra de