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2. RASTROS E RESÍDUOS DA TRADIÇÃO REGIONALISTA ATUALIZADOS

2.1. A GALILEIA À BASE DO RESÍDUO CULTURAL

Raymond Williams (1979), em sua obra Marxismo e Literatura, consagra, dentre outras discussões, um estudo crítico acerca de três categorias teóricas caras ao seu pensamento, a saber: dominante, residual e emergente. Trata-se de pensar, a partir de tais categorias, a relação entre os mais variados modos de vida e de cultura, sistematização do pensamento reflexivo do autor voltada para o contexto da Inglaterra, mas que também serve de base para refletirmos e analisarmos a literatura brasileira, na interpretação que esta faz da realidade do país e dos indivíduos. Nesta tese, em particular, nosso interesse incide sobre a obra Galileia, de Ronaldo Correia de Brito, como já mencionamos anteriormente.

Nesse sentido, o texto literário reflete reminiscências de experiências passadas que são absorvidas e modificadas no presente. Embora a modernidade nos imponha culturas dominantes, elas sofrem a influência dos aspectos culturais formados no passado que ainda vigoram no espaço atual, ou seja, resíduos. Além disso, as constantes transformações do mundo contemporâneo também fazem surgir novas matrizes culturais que também participam dessa relação interativa. Por isso, é preciso identificar no texto literário o que ele apresenta de resíduo do passado, atualizado pelo discurso dominante do presente, elaborando uma concepção emergente para compor o cenário futuro.

De acordo com as definições de Raymond Williams (1979), a perspectiva ―dominante‖ refere-se ao modelo reconhecido pelos indivíduos, que tem o poder de estabelecer as normas sociais de uma comunidade, possui forte presença e uma

grande influência nos valores, comportamento, pensamento e linguagem. É o

espaço das práticas consolidadas como referentes a uma determinada cultura. Como a cultura dominante centraliza em si o que é vigente em determinada sociedade, ela também assume a forma de opressão e controle diante de grupos minoritários. Nesse caso, fica-se diante de culturas marginalizadas que não são reconhecidas pela hegemonia como força social, porque ―representam áreas da experiência, aspiração e realização humanas que a cultura dominante negligencia,

subvaloriza, opõe, reprime ou nem mesmo pode reconhecer‖ (WILLIAMS, 1979, p.127).

Porém, no mundo moderno, ampliaram-se as formas de diálogos culturais, ainda que uma seja tomada como tom dominante, não anula a influência que ela pode absorver das demais. Sendo assim, observa-se que as diferentes culturas e os diferentes costumes, tradicionais e modernos, podem interagir sem a necessidade de uma superação, mas de uma inovação, ressignificação. Nas palavras de Williams, essa interação ocorre, porque ―nenhum modo de produção e portanto nenhuma ordem social dominante e portanto nenhuma cultura dominante, nunca, na realidade, inclui ou esgota toda a prática humana, toda a energia humana e toda a intenção humana‖ (1979, p.128). Por mais que a modernidade tenha a intenção de padronizar o modo de vida social do presente com base em uma referência dominante, ela não é capaz de fazer expirar os valores tradicionais, que resistem na condição de resíduo e fonte inesgotável de sentidos.

O discurso do passado nunca é retomado em sua inteireza, é disseminado, reenviado às gerações posteriores com nova possibilidade de interpretação, como quer a tradição, segundo Borheim (1987). Nesse processo de comunicação entre a cultura residual e a cultura dominante, os valores de outrora são incorporados aos do presente, sofrendo as devidas adaptações para fazer sentido dentro do contexto renovado. É aí que se estabelece a perspectiva emergente que tenciona as práticas residuais e dominantes em função do surgimento do novo:

O que importa, finalmente, no entendimento da cultura emergente, em distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma questão de prática imediata. Na verdade, depende crucialmente de descobrir novas formas ou adaptações da forma. (WILLIAMS, 1979, p.129)

A perspectiva emergente nasce dessa interação entre relações sociais anteriores (residuais) e os valores estabelecidos pela nova ordem social (dominante), representando a descoberta de ―novas formas ou adaptações da forma‖ alternativas ou opostas. São ―novos significados e valores, novas práticas, novas relações e tipos de relação que estão sendo continuamente criados‖ (WILLIAMS, 1979, p.126) e passam a alternar ou contrapor as práticas residuais e dominantes existentes, trazendo inovações. Levando em consideração a tradição regionalista com a qual a obra Galileia mantém laços interativos, a ressignificação

consiste na capacidade de disseminar e divulgar os elementos tradicionais, resíduos regionais para além de suas fronteiras locais. Na expressão de Candido (2000), consiste na dialética do localismo e do cosmopolitismo, discutido no capítulo anterior.

O residual compreende vestígios dos valores estabelecidos no passado, podendo alternar-se, ou mesmo, opor-se ao modelo dominante. Como descreve Williams (1979, p.125), ―o residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está vivo no processo cultural, não só como elemento do passado, mas como elemento efetivo do presente‖. É o que podemos perceber, por exemplo, nos rastros ou vestígios da tradição do pensamento clássico na poesia modernista de Álvaro de Campos, no poema ―Ode triunfal‖:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica Tenho febre e escrevo

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto, Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos. (...)

Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro Porque o presente é todo o passado e todo o futuro

E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes elétricas (...) (PESSOA, 1969, p.364)

Platão e Virgílio representam resíduos ou rastros da antiguidade no presente, da tradição na modernidade, porque o presente é uma síntese do passado e do futuro. Os tempos entram em simbiose: ―o presente é todo o passado e todo o futuro.‖ Convém notar que, embora o poema seja uma exaltação da civilização moderna, a força do progresso representada pelas máquinas expressa pelo sujeito poético é interrompida pela imagem de homem adoentado, enfraquecido pela febre. Ao mesmo tempo em que a modernidade emerge como motivo inspirador de uma ode, ela também submerge o eu poético, fragilizando-o, já que em meio a Revolução Industrial, a máquina parece ter mais valor que o homem. Por isso, faz-se necessário a evocação do passado, que, segundo Williams (1979) consiste num resíduo que ainda ―vive no processo cultural do presente‖. Nesse caso, o resíduo surge na referência à sabedoria de grandes figuras do passado, grandes filósofos da Antiguidade Clássica, como meio para atingir o conhecimento presente, ―há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas‖. Platão e Virgílio significa a representação de um passado reativado e ativo no presente.

A partir dessas considerações, é possível refletir sobre Galileia, procurando não resumi-la a uma espécie de anacronismo dos quadros classificatórios da literatura regionalista de 30, mas defendendo um ponto de vista segundo o qual o autor traz o passado regional à base do resíduo para a feitura de seu romance. Trata-se de um regionalismo que ―continua presente‖ e inesgotado de sentido por apresentar a tensão histórica entre o local e o global, ainda presente no Brasil em função das diferenças sociais, culturais, econômicas, políticas e geográficas tão representadas na literatura atual. Assim, a prosa regionalista contemporânea, embora se utilize também de tensões tradicionais, (re)elabora-as de forma ressignificada, com particularidades de nosso tempo que não foram suprimidas pela globalização. Nessa perspectiva, o diálogo entre a obra em análise e a tradição não se faz através de uma reprodução do modelo constituído, mas através de relações comunicativas e intertextuais, segundo as quais se mantêm as singularidades da nova obra. Nessa compreensão, esta tese considera como categoria analítica a tradição regionalista como um elemento residual, buscando identificar, em sua trama narrativa, traços, vestígios, rastros do passado literário, dentre os quais cito:

Como é austero o mobiliário sertanejo. Não existem curvas nos móveis, apenas ângulos retos. Tudo é feito com madeira, tiras de sola e couro cru. Nenhum estofado ou almofada que nos acaricie. Somente as redes envolvem e aconchegam. As casas e seus objetos provocam aspereza e tensão. O poder masculino dita as normas do desconforto, ninguém relaxa nem se entrega à preguiça. Sentamos empalados em cadeiras eretas. Por que as mulheres permitiram essa tirania? (BRITO, 2008, p.211)

Ao sentar em uma cadeira desconfortável, Adonias repara como é ―austero o mobiliário sertanejo‖, observando como ele representa vestígios do passado regionalista em que o modelo de família patriarcal impunha uma espécie de ―tirania‖ à figura feminina, causando-lhe o mesmo desconforto de uma ―cadeira ereta‖. Por mais que a fazenda tivesse outro funcionamento no qual as mulheres tinham participação efetiva, a estrutura física indicava traços de uma tradição regionalista como elemento residual. Elemento esse, que na concepção de Williams (1979), é identificado através de algumas experiências, significados e valores que não podem ser verificados ou não podem ser expressos nos termos da cultura dominante (moderna). Por isso, são vividos e praticados como resíduos de formações sociais

anteriores, como o ritual de Júlia, uma senhora rezadeira e contadora de estórias, que compõe o quadro de lembranças da infância de Adonias:

Acordei com a voz de Júlia entoando um bendito. O avô pediu que ela viesse para rezá-lo. O canto ressoava pelos espaços da casa, abalando os nervos das pessoas. Senti-me fora do mundo real. [...] Júlia sacudia ramos de erva e dançava em volta do enfermo. [...] Valia-se de cantos e rezas para despachar o doente. Do quarto onde estava deitado eu ouvia tudo. As casas de telhado alto e paredes divisórias abertas não escondem segredos. Ouvem-se os menores sussurros e gemidos. Levantei-me. E se eu fosse até Júlia e bradasse contra a ignorância e o obscurantismo? Melhor deixar o avô entregue à benzedura e continuar na rede, rememorando histórias. Os anos de formação médica não me garantiam que o meu conhecimento fosse único e verdadeiro. (BRITO, 2008, p.121-122)

A cultura tradicional é vista em sua força mística e reconhecida em seu estatuto de conhecimento frente a outras formas de saber. No caso deste episódio, é a medicina moderna que é relativizada em sua hegemonia enquanto saber absoluto. A medicina popular é uma medicina tradicional cujo modo de transmissão é oral, através de ―cantos‖ de preces e gestual, através de ―danças‖ e movimentos corporais. Desenvolve-se a partir de fórmulas que utilizam ―ervas‖ e plantas naturais como remédios. Os benzedores, como Júlia, atuam como intermediários entre o ser humano e o sagrado, devendo conservar o ritual de ―rezas‖ e amuletos protetores retirados da flora como ―ramos de ervas‖. A busca dos seres humanos por alívio para seus males corporais ou espirituais nas plantas, através dos chás, banhos, unguentos ou benzeções corresponde a uma prática antiga e tipicamente regional. Apesar de ser uma tradição praticada no espaço doméstico local, não é apenas herdada, mas também ampliada e diversificada através dos relacionamentos existentes entre as pessoas de diversas regiões e diversos níveis de conhecimento. O uso das plantas na medicina não oficial da cultura tradicional em determinadas localidades impulsionou o estudo do manejo e tipos de uso dos recursos vegetais. Assim, o que Adonias considerou como ―ignorância‖ e ―obscurantismo‖ serviu de subsídio para o conhecimento do potencial científico da flora na medicina moderna. Ou seja, o resgate dessas práticas tradicionais pela ciência garante o contínuo processo de ressignificação do resíduo regional em uma instância universal.

O sertão em Galileia aparece remodelado, revisto, em uma perspectiva que possibilita analisá-lo como um recorte regional atualizado, ressignificado. Porém, é

preciso entender que aquilo que a obra em análise apresenta de novo está, na verdade, impregnada de resíduos culturais anteriores. Isto é, o ―resíduo‖ é um elemento do passado que se mantém plenamente ativo no presente, atuando no processo cultural, como podemos constatar nas palavras de Raymond Williams (1979, p. 125):

Por ―residual‖ quero dizer alguma coisa diferente do ―arcaico‖, embora na prática seja difícil distingui-los. Qualquer cultura inclui elementos disponíveis do seu passado, mas seu lugar no processo cultural contemporâneo é profundamente variável. Eu chamaria de ―arcaico‖ aquilo que é totalmente reconhecido como um elemento do passado, a ser observado, examinado, ou mesmo, a ser ―revivido‖ de maneira consciente, de uma forma deliberadamente especializante. O que entendo pelo ―residual‖ é muito diferente. O residual, por definição, foi efetivamente formado no passado, mas ainda está vivo no processo cultural, não só como um elemento do passado, mas como um elemento ativo do presente. Assim, certas experiências, significados e valores que não se podem expressar, ou verificar substancialmente, em termos da cultura dominante, ainda são vividos e praticados à base do resíduo – cultural bem como social – de uma instituição ou formação social e cultural anterior.

Assim, o que a noção de resíduo aborda é o que remanesce de ―mentalidades‖ anteriores, ou seja, como a maneira de sentir, pensar, agir e viver de um determinado grupo social de uma determinada época pode ser percebido em outro grupo social de um período posterior. Porém, a forma como os resquícios do passado são retomados no presente é o que diferencia arcaico de residual. O arcaico impede o avanço cultural, na medida em que, conscientemente, se escolhe reviver o passado sem possibilidade de ressignificação. Já o residual tem origem no passado, mas atualiza-se em contato com o presente, incorporando-se a ele de maneira adaptada a nova cultura, ao mesmo tempo em que relembra a cultura tradicional. Com o passar dos séculos, as culturas entram em contato umas com as outras e, dessa forma, vão-se influenciando mutuamente, num processo denominado ―hibridação cultural‖.

Na trama de Galileia os elementos culturais tradicionais, ao serem absorvidos pela modernização, sofrem mudanças, às vezes, tão radicais que correm o risco de extinção. Dessa forma, a banda de forró, em detrimento do trio pé-de-serra que tradicionalmente utilizava sanfona, zabumba e triângulo, incorporou a guitarra, o teclado, o baixo, a sanfona e a bateria. O seu vocalista, que mais lembra um ―híbrido‖ roqueiro-forrozeiro, ―usa três argolas na orelha esquerda, um piercing no

nariz e roupa preta brilhosa. Passa a mão nos cabelos pintados de louro, endurecido pelo excesso de gel fixador‖ (BRITO, 2008, p. 34). Essa sorte de mudança ainda pode ser percebida na troca de atividade do Tio Salomão que ―nunca deixou de investir em caprinos, e agora planta mamona, de olho nos biocombustíveis‖ (BRITO, 2008, p. 114), no desaparecimento da lavoura de algodão que cede lugar ao cultivo da maconha, na substituição dos vaqueiros montados a cavalos com gibões de couro por mulheres montadas em motocicletas pastoreando a criação. Esta cena indica a mudança do papel exercido pela mulher no contexto a que se refere: ―mulher em motocicleta carrega uma velha na garupa e tange três vacas magras. Dois mitos se desfazem diante dos meus olhos, num só instante: o vaqueiro macho, encourado, e o cavalo das histórias de heróis, quando se puxavam bois pelo rabo.‖ (BRITO, 2008, p.8), de modo que o animal, mesmo com a larga experiência dos vaqueiros no tanger do gado, tradicionalmente servindo ao homem do campo para os fins mencionados, cede lugar à experiência de modernização, já que o espaço, no relato do romance, é ocupado por motocicletas.

Essa ―hibridação cultural‖ resulta de um novo sistema social paradoxalmente ―dotado de duas naturezas diversas‖ (PONTES, 2017, p.14). No caso de Galileia, constitui-se da experiência rural e da experiência urbana, da tradição e da modernidade. Assim, de acordo com a teoria de Berman (2007) a modernidade e o homem moderno estão impregnados de componentes contrários e adversos, uma vez que os novos tempos trazem possibilidades de acesso à vida de forças industriais e ao progresso, ao mesmo tempo em que mantém experiências, valores e concepções antigas.

Em razão dessas modificações que sofrem as culturas no decorrer do tempo, o que remanesce de outro período não é a mentalidade em si, mas sua essência, isto é, resíduos da mentalidade, que vão adquirindo nova roupagem, numa espécie de adaptação ao novo espaço e à nova época. Nessa compreensão, o passado não é, absoluto, esquecido, tampouco vem ao presente em sua inteireza ativa. A sua ativação, no presente, vêm por meio de vestígios, restos, que é a forma como resiste e permanece no tempo de agora. É o que a teoria da residualidade chama de ―cristalização‖:

Consiste numa recolha de material artístico, literário, no caso vertente, que recebe tratamento semelhante ao dado pelo lapidário à

rocha bruta para que dela surja uma gema preciosa. Trata-se de um polimento estético que depende da maior ou menor habilidade do artista, mas é assim que vêm à luz as obras artísticas, inclusive as obras-primas do repertório universal. (PONTES, 2017, p.17)

É o refinamento de um elemento do passado que está ativo no presente, e que está ativo exatamente porque se adaptou ao novo ambiente, através de um processo ―lapidário‖. Entenda-se ―refinamento‖ não como algo que se tornou melhor, mas como ―polimento‖, algo que se adaptou a outro tempo e/ou espaço, adaptação possível graças às trocas culturais sempre ocorridas com o passar dos séculos, como na cena descrita a seguir por Adonias:

Prossigo entre campos de futebol de areia, margens comuns em estradas do Brasil. Rapazes se atracam em cima de uma bola, índios de tacape arrasando o inimigo. Cidades pobres, iguais em tudo: nas igrejas, nas praças, num boteco aberto às moscas [...] Mulher em motocicleta carrega uma velha na garupa e tange três vacas magras. Dois mitos se desfazem diante dos meus olhos, num só instante: o vaqueiro macho, encourado, e o cavalo das histórias de heróis, quando se puxavam bois pelo rabo. (BRITO, 2008, p.8)

O romance não traz a representação do sertão como sendo instituído pelo signo da novidade, livre das mazelas e dos arcaísmos de outrora. Expõe a imagem geográfica e social de um sertão invadido por elementos da modernidade, passando por vilarejos e arruados, extremamente desprovidos de recursos humanos, mas já com demonstrações vitais de produtos urbanizados, como ―motocicleta‖ e ―praças‖. Tais elementos permitem verificar as mudanças de hábitos e comportamentos daqueles habitantes, cuja identidade se estabelece a partir de um resíduo cultural: o ato de tanger vacas. Porém, esse antigo costume, que ainda se faz presente no contexto atual, aparece adaptado, ressiginificado, pois desfaz a mentalidade patriarcal, destituindo o poder masculino e cedendo lugar ao feminino. Além disso, o agenciamento entre a tradição de pastorear o gado e a modernidade se estabelece através da troca de um elemento natural, o cavalo, para uma máquina, a moto.

Essa reação das culturas locais, um dos vieses da globalização, se faz presente no romance também através da passagem em que é mostrada a apresentação de um conjunto musical, descrito da seguinte maneira:

Os músicos arrumam os instrumentos: teclado, guitarra, baixo, sanfona e bateria. Um rapaz que bebia no balcão se encaminha para

o grupo. É o vocalista. Usa três argolas na orelha esquerda, um piercing no nariz e roupa preta brilhosa. Passa a mão nos cabelos pintados de louro, endurecidos pelo excesso de gel fixador. Repete o gesto inúmeras vezes, mas nem um único fio de cabelo se move. [...] O dono da bodega reconhece que somos de fora, outro tipo de gente. Retorna à nossa mesa, desculpa-se pelo transtorno, é apenas o ensaio de uma banda de forró.‖ (BRITO, 2008, p.34)

Como revelado no final do parágrafo, trata-se de uma banda de forró. O ritmo que deu sonoridade e sentido ao Nordeste é mostrado em seu envolvimento com outras tendências. O ―tradicional‖ trio nordestino composto por sanfona, triângulo e zabumba transforma-se através da agregação de instrumentos musicais que lhe dão nova configuração. O romance aponta para a natureza multifacetada da cultura brasileira, considerando a representação moderna e arcaica, por exemplo, a ―bodega‖ sinaliza que a cidade é atrasada; a ―guitarra‖, o ―baixo‖ e a ―bateria‖ são modernos, a ―sanfona‖ é tradicional. Como elementos antigos (residual) mesclam-se a elementos novos (emergente) em sinônimo de uma negociação que torna cada vez mais diluída a fronteira entre a tradição e a modernidade, a recriação do ritmo e da performance não está condicionada ao desaparecimento do modelo anterior. Podemos dizer assim, que o forró se mantém ―vivo‖ diante da cultura dominante à base do resíduo cultural.

Galileia constitui um novo universo em que os costumes dos sertanejos

sofrem mudanças provindas de um processo de modernização, resultando numa fusão entre resíduos culturais do passado e elementos culturais do presente. Isso reforça a ideia de que ―a cultura consiste numa contínua transfusão de resíduos indispensáveis ao recorte próprio da identidade nacional, qualquer que seja esta‖ (PONTES, 2017, p.14). O membro da família, tio Josafá, por exemplo, que todos