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A eficácia da transferência – em maior escala - dos ativos públicos para a iniciativa privada por meio de concessões ou arrendamentos requeria outro espectro de regulação. Essa demanda estava latente desde meados dos anos 1990, no espírito das medidas redefinidoras do papel do Estado. A lógica da atuação estatal não estava mais em redirecionar os rumos da economia diretamente, mas oferecer as ferramentas institucionais necessárias para que os agentes econômicos nacionais pudessem ser competitivos internacionalmente. O Estado empresário ficava no passado, sendo suplantado pelo Estado regulador. A reforma do aparelho de Estado defendida por Bresser Pereira, em que se transitava da administração burocrática para a gerencial, guardava características análogas às do avanço da regulação no âmbito da prestação dos serviços públicos (Souza Junior, 2008).

Coube ao Conselho de Reforma do Estado (CRE), órgão consultivo, analítico e de articulação composto por conselheiros não integrantes da administração pública, a formulação do formato das agências reguladoras como as conhecemos hoje. Em 31 de maio de 1996, fora formulado o desenho dessas novas instituições com (a) autonomia e independência decisória; (b) ampla publicidade de normas, procedimentos e ações; (c) celeridade processual e simplificação da relação entre consumidores e investidores; (d) participação de todas as partes interessadas no processo de elaboração de normas mediante a realização de audiências públicas; e (e) limitação da intervenção estatal ao indispensável (Nunes et al., 2007, pp. 46- 47).

A organização jurídica seria de autarquia especial, os dirigentes indicados por critérios de mérito e posteriormente sabatinados pelo Senado Federal, as decisões colegiadas. Buscava- se, dessa forma, a maior autonomia decisória possível ao regulador, para que pudesse exercer com neutralidade e isenção a sua tarefa institucional de mediar a interação entre o poder público e o mercado. Com atuação transparente, célere e eficiente, as agências reguladoras seriam os pilares institucionais para o funcionamento da abertura da infraestrutura ao capital privado que se configurava.

Em 1997, instaurou-se o novo modelo institucional, que criava as primeiras agências reguladoras nos setores de energia, petróleo e telecomunicações. A modelagem seguia as experiências de regulação consolidadas internacionalmente, em que se separa a atuação do (a) Estado, como formulador de políticas; (b) das empresas, como prestadoras de serviços; (c) dos usuários, beneficiários dos serviços prestados; e (e) das agências reguladoras, como controladoras e reguladoras dos mercados (Souza Junior, 2008).

82 Somente em 5 de junho de 2001, o setor portuário conheceria a sua agência reguladoras com a criação da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), por expediente da Lei nº 10.233 (Brasil, 2001). Com 124 artigos, além da referida autarquia, o diploma dispunha também da reestruturação dos transportes aquaviários e terrestres, criando também o Conselho Nacional de Integração das Políticas de Transporte (CONIT), a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) e o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). Também se extinguiam a Comissão Federal de Transportes Ferroviários (COFER), o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem (DNER) e ficava dissolvida a Empresa Brasileira de Planejamento de Transportes (GEIPOT). A referida Lei ainda seria alterada por meio da Medida Provisória nº 2.217-3, de 4 de setembro de 2011, a qual realizou alterações pontuais no texto original, sendo que a principal definição da área dos portos organizados seria feita por Decreto do Presidente da República, por proposta do Ministério dos Transportes, ouvida a ANTAQ (Brasil, 2001).

A ANTAQ nasceu com dois objetivos: a implementação das políticas formuladas pelo CONIT, pelo Ministério dos Transportes, e, posteriormente, também pela Secretaria de Portos; e a regulação ou supervisão das atividades de prestação de serviços e de exploração da infraestrutura, exercidas por terceiros, no seu espaço institucional. A Agência baliza-se pelos princípios de eficiência, segurança, conforto, regularidade, pontualidade e modicidade nos fretes e tarifas e a meta de harmonizar os conflitos de interesse decorrentes da exploração da atividade econômica do transporte aquaviário. Sua área de atuação está circunscrita (a) à navegação fluvial, lacustre, de travessia, de apoio marítimo, de apoio portuário, de cabotagem, e de longo curso; (b) aos portos organizados; (c) aos terminais portuários privativos; e, (d) ao transporte aquaviário intermunicipal e urbano (Brasil, 2001).

Conferindo à nova autarquia independência administrativa, autonomia financeira, funcional e normativa, o legislador almejava atribuir previsibilidade à regulação do setor, gerando expectativas em todos os interessados – fossem integrantes do poder público, empresários ou usuários - de uma atuação especializada e desburocratizada. A atuação do regulador, ao fim, é referência para a tomada de decisão dos agentes econômicos, portanto, o adequado funcionamento desse ente constitui-se, por si só, fator dinamizador do setor em que atua, atraindo o interesse e os investimentos privados. Como salvaguarda às situações de litígio, a Lei nº 10.233/01, art. 25, inciso XVI, ainda previu que os contratos deveriam conter regras para a solução de controvérsias por mecanismos extrajudiciais como a conciliação e a arbitragem (Souza Junior, 2008).

83 A instalação e início das operações pela ANTAQ deu-se somente após a edição do Decreto nº 4.122, de 13 de fevereiro de 2002, que aprovou o seu regulamento e os seus quadros demonstrativos de cargos comissionados e comissionados técnicos, permitindo o seu funcionamento. O texto previa também que o regimento interno da Agência seria aprovado pela sua Diretoria no prazo de 90 dias (Brasil, 2002a). Ato contínuo, a ANTAQ assumia também o papel de poder concedente, com competências legais para “publicar editais, julgar licitações e celebrar contratos de concessão para a exploração dos portos organizados” (Brasil, 2001).

Contudo, o Decreto nº 4.391, de 26 de setembro de 2002, regulamentou os arrendamentos de áreas e instalações portuárias, delegando a proposição dos terminais e a serem arrendados e a sua execução à autoridade portuária, no âmbito do Programa Nacional de Arrendamento de Áreas e Instalações Portuárias. Para tanto, elaboraria proposta de arrendamento de áreas do porto organizado, que após aprovada pela ANTAQ, integraria o Plano Geral de Outorgas de Exploração de Infraestrutura Aquaviária e Portuária e de Prestação de Serviços de Transporte Aquaviário (PGO) a ser apresentado ao Ministério dos Transportes. Isso posto, a autoridade também procederia aos procedimentos licitatórios, à celebração dos contratos de arrendamento e sua fiscalização e gerenciamento, exercendo – dentro da jurisdição do porto organizado – as funções típicas, cumulativamente, de poder concedente e de regulador (Brasil, 2002b).

Ainda em 16 de dezembro de 2002, a ANTAQ, utilizando de suas competências normativas, emitiu a Resolução nº 055/2002, que dispõe sobre o arrendamento de áreas e instalações portuárias destinadas à movimentação de cargas e ao embarque e desembarque de passageiros. Coube à norma infra legal, definir as diretrizes para a operacionalização do Programa Nacional de Arrendamentos, orientando a autoridade portuária quanto ao escopo das atividades delegadas e os princípios gerais que deveriam guiar a sua condução. Destaca-se a vinculação do programa de arrendamento ao Plano de Desenvolvimento e Zoneamento do respectivo porto organizado. Outro ponto relevante foi o trazido pelo art. 52, que previa que os contratos de arrendamentos firmados previamente à Lei dos Portos deveriam ser licitados quando do seu encerramento, caso não fossem adequados o final de 2003, hipótese em que seriam prorrogados por metade do prazo previsto originalmente (ANTAQ, 2002).

A Resolução nº 517, de 18 de outubro de 2005, talvez o mais significativo movimento de inflexão da ANTAQ desde a sua criação, colocando novamente em voga a tônica da ampliação da intervenção estatal na economia, reinaugurando a discussão que se acirraria nos

84 anos seguintes, como apresentado no sexto capítulo desta dissertação. O texto, entre outras disposições, fixou critério para a habilitação técnica necessária à obtenção de autorização para construção, exploração e ampliação de terminal portuário de uso privativo, entre os quais se encontra exigência de “movimentação anual mínima estimada que justifique, por si só, de conformidade com estudo técnico especializado, a sua implantação, e, com relação à carga de terceiros, se houver, a natureza destas” (ANTAQ, 2005, alínea c, II, art. 5º). Dessa forma, afastou-se o entendimento até então vigente da liberdade para a movimentação de cargas de terceiros. Ao ser questionada sobre a decisão, a Procuradoria Federal da ANTAQ manifestou- se pela eliminação da restrição, o que nunca ocorreu (Guimarães, 2015).

Em suja, a década de 2000 foi marcada pela institucionalização da regulação setorial, com a criação da ANTAQ em 2001. A Agência demorou alguns anos para se firmar como ator importante na gestão portuária, por meio das suas funções primordiais de regulação e fiscalização. Somente a partir de 2005, essa presença passou a ser efetiva, quando foi realizado o seu primeiro concurso. Em paralelo, foi notória o esfriamento dos investimentos no setor, após a onda findada em meados da década. Desse momento em diante, deterioraram- se as condições dos portos nacionais, expondo as suas ineficiências a todos os stakeholders do subsistema. O reduzido número de novas licitações de arrendamentos e os questionamentos judiciais sobre a operação de TUPs (Terminais de Uso Privativo) mistos, com destaque para os que haviam se especializado em carga geral, associados à gestão deficiente das Companhias Docas no período, inauguraram ambiente de incertezas para o setor.

O período que se seguiu aos acontecimentos relatados neste capítulo será alvo de análise em maior detalhe no capítulo 6 (seis), em que será feita uma apreciação do período 2007 a 2016 por meio da aplicação dos conceitos e do código de análise próprios do ACF. Antes disso, contudo, o capítulo a seguir apresentará a agregação dos resultados obtidos a partir da análise documental e das entrevistas, preparando o terreno para o capítulo final e para as conclusões desta dissertação.

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5 A APLICAÇÃO DO ACF AO SUBSISTEMA BRASILEIRO DE INFRAESTRUTURA PORTUÁRIA (2007-2016)

Neste capítulo será operacionalizada a aplicação do ACF ao subsistema brasileiro de infraestrutura portuária no período de 2007 a 2016, trazendo todos os aspectos do framework, inclusive incorporando os conceitos clássicos (Sabatier & Jenkins-Smith, 1988, 1993, 1999) e suas revisões e atualizações posteriores (Sabatier & Weible, 2007; Jenkins-Smith et al., 2014). Como ponto de partida, o subcapítulo 5.1 tratará de questões sistêmicas e conjunturais que afetam o subsistema em análise, ultrapassando as fronteiras temáticas, podendo afetar, inclusive, outros subsistemas. O segundo capítulo, 5.2, por sua vez, remeterá ao interior do subsistema brasileiro de infraestrutura portuária, detalhando as crenças existentes no setor em seus três níveis (deep core, policy core e aspectos instrumentais). No subcapítulo seguinte, 5.3, será realizada a identificação atores relevantes e a sua agregação em coalizações que atuam no subsistema, por meio do uso do instrumento denominado de “crenças preditoras de coalizão”. No mesmo subcapítulo, identificar-se-á ainda atores relevantes na negociação das políticas, os chamados policy brokers e policy entrepreneurs. Por fim, o último subcapítulo destacará as questões centrais para o subsistema em tela, a serem verificadas a partir da análise documental realizada e discutidas em função de suas nuances e dos posicionamentos das coalizões em relação às mesmas.

Quanto aos aspectos exógenos ao subsistema, destaca-se que o período compreendido entre 2007 e 2016 apresentou relativa estabilidade em termos conjunturais amplos, caracterizado por relativa estabilidade econômica e a presença de uma coalizão política dominante ocupando o poder central (base de governo do PT). Apenas nos dois últimos anos, foi possível verificar alterações profundas na matriz política e econômica, deflagradas pela crise econômica em meados de 2015 e pelo processo de impeachment em 2016. Não se percebe, contudo, a ocorrência de relevantes alterações na dinâmica interna do subsistema brasileiro de infraestrutura portuária, com ressalva para pontuais alterações administrativas que se traduziram, sobretudo, na supressão do status de ministério da Secretaria de Portos (SEP).