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6.1 A retomada do planejamento estatal (2007-2012)

6.1.2 O Decreto nº 6.620/2008 e os Terminais de Uso Privativo (TUPs)

A dualidade de regimes de exploração da infraestrutura portuária sob a vigência da Lei nº 8.630/93 sempre foi ponto sensível no arranjo institucional vigente à época. Os operadores portuários arrendatários de terminais públicos, que haviam vencido licitações, sempre questionaram os limites da movimentação de terminais de uso privativo mistos, conforme conceituados pela Lei de Modernização dos Portos, alegando que haveria assimetria regulatória, gerando competição antieconômica entre portos que atuavam sob diferentes regimes jurídicos (Moreira Neto & Freitas, 2015).

Logo após a aprovação da Lei de Modernização em 1993, uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn 929/1993), foi levada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela FENCCOVIB, FNP, PSB, PCdoB e PDT, questionando a suposta violação constitucional quanto à definição constitucional de que os portos deveriam ser prestados como serviços públicos (art. 175). A controvérsia, contudo, acirrou-se com a autorização de seis TUPs para

114 movimentar contêineres entre 1999 e 2006, e a consequente expansão das suas operações (Goldberg, 2009).

Conforme relatado no quarto capítulo, a ANTAQ ainda em 2005, aprovou a Resolução nº 517, por meio da qual solicitava entre os documentos necessários para a autorização de novos TUPs, a demonstração de que a implantação do terminal se justificaria pela operação preponderantemente de carga própria, podendo ser a carga de terceiros somente complementar. Esse foi um dos gatilhos para que a ABRATEC ingressasse no STF em abril de 2008 com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 139/2005), a qual questionava a validade das autorizações concedidas em Santa Catarina para a exploração de 3 (três) TUPs mistos: Portonave, Imbituba e Itapoá (Moreira Neto & Freitas, 2015; Goldberg, 2009).

Convém registrar, nesse ponto, que os autores das ações movidas no STF contra a liberalização da movimentação de cargas de terceiros dos terminais privados enquadram-se todos na Coalizão Estatista identificada pela aplicação do ACF nesta pesquisa, reforçando a percepção de que suas crenças estão alinhadas e que atuam em cooperação não trivial, caracterizando a formação da coalizão, como conceituado por Sabatier e Jenkins-Smith (1988, 1993, 1999). Há, portanto, indicativos de que a defesa da imposição de restrições à movimentação de cargas de terceiros em terminais privados é uma das principais crenças que, embora instrumental, une os referidos atores em torno de crenças centrais comuns.

Havia duas teses competindo quanto ao equilíbrio concorrencial, uma própria da coalizão que defendia os interesses estabelecidos, confundidos nesse caso com a orientação estatista, e outra daqueles que gostariam de ver uma maior liberalização do setor. O primeiro grupo argumentava que a não realização de licitação imputava discriminação com aqueles que haviam passado por esse processo, ademais, a prestação de serviço público os princípios da generalidade e sujeita a prazo definido de vencimento imputaria condições desleais de concorrência se comparada com atividades prestadas sob o regime privado, não atrelado a regras desse tipo. Do lado oposto, os operadores de terminais privados defendiam que os termais localizados fora de portos organizados não contavam com investimentos de infraestrutura realizados com recursos públicos, como dragagens, melhoramentos nos canais de navegação e nos acessos portuários (rodovias e ferrovias), além de terem que incorrer nos custos de propriedade do imóvel em que se instalariam, diferentemente dos arrendatários (Moreira Neto & Freitas, 2015).

115 O conflito foi, todavia, endereçado pelo governo federal por meio da edição do Decreto 6.620, de 29 de outubro de 2008, que regulamentava a Lei de Modernização dos Portos, inclusive quanto ao caráter subsidiário e eventual que deveria ter a movimentação da carga de terceiros em instalações portuárias de uso privativo (Brasil, 2008). O Decreto, portanto, ratificou o entendimento previsto na Resolução nº 517/2005 da ANTAQ, criando forte restrição à expansão dos terminais privados e gerando insegurança jurídica para aquelas que já operavam volumes substanciais de cargas de terceiros, principalmente afetando os operadores de contêineres. Conforme pode ser contatado pelos relatos dos entrevistados e pela análise documental, é possível atribuir ao influente lobby dos arrendatários as inflexões ocorridas entre 2005 e 2008 o quais eram transpostos para o discurso sob a argumentos de isonomia, legalidade e de interesse público, encontrando em crenças ideológicas (deep core) compartilhadas com a coalizão desenvolvimentista, que ocupava o governo à época.

Durante as discussões no Congresso Nacional, a senadora Kátia Abreu, cuja atuação no subsistema sempre se mostrou muito ativa, externou a sua reprovação em relação às restrições impostas aos terminais privados. A pesquisa documental demonstrou o seu engajamento na defesa das crenças ligadas à promoção da competitividade no setor portuário. Um trecho emblemático de discurso proferido na sessão conjunta das comissões de infraestrutura e de agricultura realizada em 2010, que caracteriza a estrutura de crenças centrais da coalizão liberal, é reproduzido a seguir:

A Lei 8.630 permite a exploração de instalação portuária de uso público, de uso privado e de uso misto para movimentação de carga própria e de terceiros. A lei ali, na letra “b”, ela não escreveu “misto para movimentação de carga própria e de terceiros, mas tudo do mesmo dono, tudo do mesmo concessionado, tudo do mesmo autorizado”. Não, não disse isso. Não colocou proporcionalidade de cargas, não disse que tinha que ser tantos por cento de um e tantos por cento de outros. Mas, aqueles que primam e adoram a estatização, o estado grande, o estado forte e que quer excluir a iniciativa privada e a concorrência no país, prefere continuar aquela frase através da canetada, através do decreto, impondo um formato novo que não está ali, na lei. (Senado Federal, 2010, p. 365)

Sistematizando os acontecimentos do período, em resumo, percebe-se que a criação da Secretaria Especial de Portos em 2007 foi uma tentativa de retomar o planejamento estatal e a capacidade de indução ao desenvolvimento do setor. O diagnóstico era de que deveriam ser ampliados os investimentos no setor portuário, com ênfase nas necessidades eminentes de dragagem dos portos públicos, os quais ficavam restritos à atração de embarcações menores, ficando de fora do circuito mundial dos grandes navios, como o capesize¸ devido às limitações de calado (profundidade). Além disso, visava-se controlar melhor a formulação das

116 políticas do setor, conferindo status de ministério à SEP, e, dessa forma, aproximando-a dos decisores centrais e entregando-lhe a tarefa de elaborar o planejamento de médio e longo prazo do setor por meio da instituição do Plano Nacional de Logística Portuária (PNLP).

O setor, contudo, sofreu um duro golpe no seu ambiente de competição com a edição do Decreto nº 6.620/2008, o qual, retomando a Resolução nº 517/2005 da ANTAQ, restringia a movimentação de carga de terceiros nos TUPs mistos. A instalação privada deveria ter a sua viabilidade justificada somente com cargas próprias, afastando a possibilidade da movimentação de carga geral (contêineres) nessa categoria de portos. Muito embora essa medida tivesse fundo na intenção do governo federal de usar as autorizações para fomentar investimentos produtivos associados, na lógica porto-indústria, acabou por restringir duramente a competição no setor, ao reservar privilégios aos arrendatários de terminais públicos. Mesmo que o referido decreto tenha excetuado dessa regra os TUPs já em operação, gerou-se substancial insegurança jurídica para o setor com ações sendo peticionadas alegando a ilegalidade da operação desses terminais junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), ao Tribunal de Contas da União (TCU), ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) e ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) (Moreira, 2015).

Com o passar dos anos após a criação da SEP e da edição do Decreto nº 6.620/2008, ficava evidente a ineficácia do modelo estatizante criado. Em que pese alguns avanços tenham sido feitos em função das obras de dragagens alavancadas pelos recursos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), aplicados pelo Programa Nacional de Dragagem (PND), o diagnóstico governamental apontava para a saturação do modelo em vigor. Os investimentos haviam minguado exatamente quando o país mais dependia da sua infraestrutura para seguir sua trajetória de crescimento após o boom das commodities da década anterior. A capacidade institucional do governo promover todos os investimentos necessários passava a ser questionada na conjuntura de 2012. Nesse contexto, o governo federal, por intermédio da Casa Civil, liderou edição de Medida Provisória que reformaria a Lei de Modernização dos Portos.